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quinta-feira, 7 de junho de 2012

"QUERIDA HELENA SERGUÊIEVNA"

Elenco de "Querida Helena Serguêievna", no momento em que os alunos encontram a
professora Helena em sua casa.  Da esq. para a dir: Fabio Enriquez (Pacha), Marina Provenzano (Liália),
Gabriel Vaz (Vítia), João Pedro Zappa (Volódia) , de costas Helena Varvaki  (professora Helena)                                                                                                                                                        
                                                                                                                                                                                      (foto divulgação) 
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Criticos de Teatro - AICT)
(Especial)


     "Querida Helena Serguêievna", de Ludmila Razumovskaia, está em cartaz no Teatro Poeirinha, anexo do Teatro Poeira, em Botafogo. Quem assiste às peças encenadas no Poeirinha não se desliga do palco, pois o espaço é mínimo e a escolha do repertório é determinante. Diante desse contexto, o público acaba sendo "sequestrado", e adere. A proposta inicial de "Querida Helena" é a visita inesperada, doce e idílica, dos alunos da professora Helena (Helena Varvaki), no dia de seu aniversário. A presença da professora, sozinha em cena, delicada, de gestos precisos, é de um realismo levado à minúcias (no dia em que assisti, tivemos a "perfeição do real", quando a professora oferece, gentilmente, um copo d'água a uma espectadora acometida de um acesso de tosse. Mas realista impossível) e, o que não é muito comum, tal gesto vem acompanhado de uma delicadeza de desarmar espíritos. Delicadeza que não é o tom da peça, conforme veremos a seguir. À propósito, Helena Varvaki é uma atriz que transmite os sentimentos de seu personagem com um simples olhar.         
     A plateia, a um primeiro olhar, impressiona-se com o cenário de Doris Rollember, a divisão da casa da professora, os objetos de cena que transmitem a personalidade da moradora: a sala com seus livros, a música (há o cuidado do tom regional, a música russa), o chá sendo preparado pela professora, os pequenos detalhes que revelam o "recolhimento", a paz de espírito. Palavras não são necessárias, para o espectador saber quem é Helena Serguêievna. Somente gestos.
     E eis que se inicia a ação, com a chegada dos alunos invadindo a casa da professora, para festejar o seu aniversário... Quem não teve contato anterior com a texto, aconselha-se a assistir a peça desconhecendo seu final. Certamente que essa observação tolhe qualquer propósito de explicação das motivações dos personagens. Tolhe qualquer crítica. É consciente, essa tomada de posição, senão poderia não resistir à tentação de compará-la com a violência que se estabelece em "Clokwork Orange" (Laranja Mecânica), filme de Stanley Kubrick... Passemos aos comentários.
     "Querida Helena" foi escrita nos anos 80, quando a União Soviética ainda era exemplo, para seus admiradores (categoria em que a crítica se inclue), de ensino exemplar e de cultura valorizada. Aliás, dentro do contexto, é impressionante o conhecimento técnico dos alunos/personagens cursando o que é, para nós, o segundo grau. Uma observação: o cuidado com que é feita a escolha do elenco, preenchendo o phisique du rôle dos personagens. Tem-se a impressão de que se foi até a Russia, para contratar Volódia (João Pedro Zappa), o cérebro que transmite a potência da educação soviética e o uso que faz dos conhecimentos adquiridos. Será a educação, a cultura, um erro, não importa o país?, somos levados a perguntar, diante do texto. Não lhe fica atrás em violência "dostoievskiana" o jovem Pacha (Fabio Enriquez), como também o "epilético" Vítia (Gabriel Vaz), que ainda conserva traços humanos, diante do inesperado da transformação da cena. Mas já estou transpondo a proposta inicial - nada revelar - e Lialia (Marina Provenzano), outro exemplar eslavo no teatro brasileiro, com uma reação epidérmica, apaixonada. Curioso e interessante elenco.
     Isaac Bernat, na direção (assistido por Karin Dreyer), tem um ótimo material em mãos para trabalhar o crescendo de emoções de peça de Ludmila, e desempenha com acerto o seu papel como diretor. É impressionante a força da  dramaturgia, mas há, talvez, excesso nesta força, há falas que parecem não conviver com os personagens, não lhes serem familiares, tornando-se artificial, empostada. Como quando eles se referem à cultura russa, citando autores. Meu Deus, será que ninguém observou isso? É erro de dramaturgia, mesmo, é excesso. Talvez o diretor tenha tido pudores de dar um toque mais intelectual, ou cortar, mesmo, certo excesso do que nos pareceu algo pueril. Tem-se a impressão de primeira escrita, a dramaturga ainda não conseguindo controlar a palavra.
    Enfim, joga-se - e aí faz parte da natureza da peça - com a cultura, como se ela nada valesse. Certamente, é essa a visão de mundo dos personagens. É possível que o problema dos estudantes, não importa a latitude, seja semelhante. Não importa a origem, é algo inerente ao ato de aprender. É doloroso. Talvez essa tenha sido a intenção da montagem: questionar a educação na nossa sociedade. Talvez o público saia se questionando em relação aos seus adolescentes, com a célebre pergunta: onde foi que erramos?
      A peça seria uma obra-prima, se Ludmila Razumovskaia tivesse refreado o seu deslumbramento diante da palavra. Compreendemos que não é fácil escrever algo sobre o que se está vivendo, e Ludmila escreveu sua peça nos anos 80, portanto, quando a ambição soviética de um mundo melhor estava naufragando. Em tempos como aqueles, a cultura e a educação poderiam se tornar simples degraus para ambições inconfessáveis. Alguma semelhança com o Brasil atual e o ensino médio? Talvez tenha sido essa a intenção. 
     Ficha técnica de primeira grandeza, com Tato Taborda na direção musical; movimento corporal de Maria Alice Poppe; iluminação, Aurélio di Simoni; figurino Ney Madeira, Dani Vidal, Pati Faedo. Espetáculo interessante, que deixa uma questão no ar: como vencer a "desvalorização do humano"? "Querida Helena Serguêievna" é uma ferida aberta, exposta em todos os tempos, e ainda sem solução.                    

Um comentário:

  1. Ida, não me admiro somente com sua cultura e conhecimento teatral, mas com a perspicácia e a sabedoria da própria natureza humana que você apresenta em suas crônicas. Fascina-me. Obrigada por compartilhar comigo. Beijos.

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