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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"IL PRIMO MIRACOLO"

Roberto Birindelli em "Il Primo Miracolo", de Dario Fó
(foto: Fernando Pires)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Os monólogos de Dario Fo, assim como as peças de Ionesco, estão sempre surgindo,  inesgotáveis e autênticos. Alguns monólogos, Dario Fó os criou com sua mulher e parceira, Franca Rame. O que está em cartaz no teatro Cândido Mendes de Ipanema/RJ, "Il Primo Miracolo", com tradução e interpretação de Roberto Birindelli, é uma sátira aos primeiros anos da vida de Jesus Cristo. Talvez um 5º Evangelho, à maneira de Dario Fó. Um desafio. Foram muitos os autores, católicos ou não, que ambicionaram (ou mesmo só esboçaram) tal feito. Alguns o tentaram a sério, como José Saramago, em "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", no qual chega a mencionar que Jesus tinha irmãos; ou Eric-Emmanuel Schmitt criando "Mes Évangiles". Não é o caso de Fó, apesar de parecer à procura dos famosos primeiros anos da vida de Cristo - tão desconhecidos de  todos nós - apesar do tom satírico.
     Anteriormente, como sabemos, temos notícia de Jesus menino através de sua visita ao Templo, em Jerusalém, aos 12 anos. "O resto é silêncio", como diria certo dramaturgo, em outro contexto. Agora, a "adaptação" de Fó recria, em cima de histórias populares do Sul da Itália, diretamente de Palermo a Jerusalém -  com direito a São Francisco de Assis e seus passarinhos voadores - e inspira o menino Jesus em  recriações e milagres. O primeiro desses milagres é feito em torno de pássaros e outras imagens de barro que conseguem voar. Um exagero, até pedra voa, nessa história. De certa forma, voltamos aos primeiros tempos, bíblicos, da criação do homem, assoprado pelo Pai em um punhado de terra... Lembram?
     Em "Il Primo Miracolo" Roberto Birindelli segue à risca os passos de Dario Fó, relatando o nascimento em Belém e fazendo um "aquecimento" com o público através de uma provocação: "alguém aqui conhece os evangelhos?", pergunta e, a partir do pressuposto de uma negativa, o ator enfrenta, com irreverência clownesca, a plateia divertida. (Os monólogos de Fó abrem caminho para o histrionismo, e Birindelli é um bom exemplo). Uruguaio radicado "no mundo", escolheu o Rio de Janeiro para um longo período de reflexão teatral, e sente-se, ao que parece, "em casa". Há 20 anos recria, nas ruas e praças do Rio (segundo fui informada), o mesmo espetáculo. Porém, dessa vez, estreia com uma nova abordagem, inspirada pela direção de Ernesto Piccolo. O texto, uma descrição fescenina da chegada dos reis magos, amplia seu caráter popular através de um relato muito vivo e encadeado de eventos. Começa com a descrição do primeiro Rei "Mago" (eram eles astrólogos descobridores de estrelas?), Melchior, "um rei com muito ouro na cabeça... cara fechada e nariz adunco que xingava e maldizia todos os santos porque tinha furúnculos desse tamanho na bunda e a cada cavalgada NHAC! Eram espremidos!"
     Com esta apresentação irreverente podemos nos preparar para o que vem depois: as brincadeiras do menino deus com os meninos da redondeza, que não querem recebê-lo e o chamam de "palestina"; não querem aceitá-lo com amigo, até que ele começa a fazer passarinhos de barro voarem, a um sopro seu, interessando os meninos interesseiros! O texto é entremeado de críticas políticas e sociais, reforçando-as quando aparece o "filho do patrão" - o reizinho do lugar - e acaba com a brincadeira destruindo os brinquedos a chutes de cavalo. Vendo a cena JC chama O Pai, lá do céu, e diz pra ele que quer "matar!" o filho do patrão! O pequeno Jesus tem ódio no coração, o que determina toda uma admoestação do Pai sobre a paz entre os homens, etc.                
     O texto é irresistível, engraçado, e requer muito talento do ator. É um teatro de contato imediato com a plateia. Birindelli comenta o que está sentindo, se dirige ao público, diz, por exemplo, que "já não é o mesmo de 20 anos atrás", em relação ao seu fôlego, e cumpre seu papel com técnica e entrega. Não podemos esquecer que há outro monólogo de Fó rodando há anos pela cidade: é o interpretado por Julio Adrião, "A Descoberta das Américas", no qual também os papéis são alternados, exigindo enorme versatilidade do ator. Entretanto, o que particulariza "Il Primo Miracolo" é a tentativa, bem sucedida, de satirizar um assunto que deixou de ser canônico para se tornar "a voz do povo": os dogmas da Igreja Católica.
     E assim vemos satirizada a virgindade de Maria; a falta de paciência de José, que de santo não tem nada; a mãe de Maria, a "santa" Anna, que de piedosa e tranquila se transforma em uma alucinada "avó". E por aí vai, tudo interpretado por um só Birindelli. O ator se desdobra, e se diverte. Nem pensar em fazer isso com Maomé, não é mesmo? Há um deserto que se coloca entre as duas civilizações, e é preciso respeitá-lo. Ninguém vive, impunemente, no deserto. Vocês conhecem o deserto republicano dos americanos? Acho que lá Dario Fó não seria bem recebido, se os satirizasse. Mas isso já é outra história.
     Concluindo: o monólogo interpretado por Roberto Birindelli cumpre a sua missão, nos moldes que nos deixou o autor. Prevejo uma longa vida a essa versão do evangelho de Cristo, uma parte não desvendada, mas muito imaginada, da infância do Salvador. Um monólogo cuja única pretensão é ser irreverente e iconoclasta: o que não é pouco. Trata-se de um espetáculo que se reinventou. Não sabemos até que ponto, porém nos assegura  Ernesto Piccolo que "reinventar-se não é uma tarefa fácil". Constatamos que, em seu aspecto externo, a versão atual dos Evangelhos necessita apenas de um palco em forma de arena, público, e um ator. Não há figurinos, apenas a roupa masculina cotidiana, e a iluminação. Ficha técnica: luz de Tiago Mantovani; preparação vocal Rose Gonçalves; direção de produção Cássia Vilasbôas; assistência de direção Edward Boggiss. 

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