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terça-feira, 23 de outubro de 2012

"MACBETH"

Lady Macbeth (Claudio Fontana), Macbeth (Marcello Antony)
Shakespeare
(foto João Caldas)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Acho que fui a única crítica do Rio de Janeiro que gostou do "Macbeth" dirigido por Gabriel Villela, e aqui apresentado no fim de semana (dias 10 a 14 de outubro, no Teatro dos 4). Enfim, o julgamento crítico acaba ficando algo muito subjetivo. Vamos aos pontos positivos: antes de tudo, a segurança dos atores, a impostação da voz, a sua movimentação. Francesca Della Monica, com a sua "antropologia da voz", diz-nos: "Em Macbeth, Shakespeare renuncia à convenção aristotélica de espaço único, fazendo explodir a ação em uma multiplicidade de ambientes físicos e simbólicos".
     Na montagem de Villela, o simbólico é enfatizado pelo diretor. A tal ponto, que causa estranheza aos mais ortodoxos admiradores do dramaturgo, pois muitas vezes a palavra, neste espetáculo, é trocada pelo gesto enfático. Unindo-se à proposta, a iluminação de Wagner Freire enfatiza o clima simbólico, com suas lamparinas e pontos de luz. O trabalho de movimento de Ricardo Rizzo se harmoniza com o todo, estabelecendo o desempenho preciso dos atores. Ainda sobre a ficha técnica: a ambientação musical de Ernani Maletta  capta o ritmo da palavra falada  - e como os atores de Villela externam bem esse ritmo! e o responsável pela trilha sonora, ainda o diretor Villela, tem a sensibilidade de colocar, pontuando o final da tragédia, a modernidade incontestável de uma frase musical de Jim Morrison na música "The End", repetindo o refrão: "This is the end, my friend".
     Tocamos em seis pontos importantes que dão força ao espetáculo. O sétimo (não obrigatoriamente nessa ordem) é o figurino, de Shicó do Mamulengo e Gabriel Villela,  onde funciona perfeitamente uma estética que une Oriente e Ocidente, neste país cosmopolita que é o Brasil. É a marca registrada do diretor: das cabeças coroadas da velha Europa às mais ousadas representações do barroco nordestino brasileiro.  Dessa vez foram destacados os colarinhos engomados de um passado longínquo. Usanças de uma época, são concessões aos velhos símbolos. Quanto ao mais, temos os bordados espelhados da Índia, os adereços estilizados de Shicó,  coroas, guilros e arames, representando as "tecedeiras" do nordeste brasileiro. Eles  enfeitam as cabeças coroadas. São rendas, teares, agulhas, que se transformam em espadas, em cetros - em palácios, estabelecendo uma dinâmica que dá vida ao espetáculo. E tudo termina em rock.
     Aliás, depois do Macbeth de Fauzi Arap (onde os atores declamavam Shakespeare ao som de rock!), nada mais provocador apareceu nos palcos brasileiros em relação a Macbeth, ultimamente. O espetáculo de Villela está recheado de símbolos, talvez por isso tanta liberdade com o texto (tradução de Marcos Daud), pois os gestos e os olhares substituem as enfatizadas passagens de ação e horror. O assassinato dos filhos e da esposa de Macduff (Helio Cicero) fica, assim, só na vingança. Não há o habitual impacto da narrativa com a chegada dos assassinos, e o terror de Lady Macduff, pois os fatos, simplesmente, só foram  relatados! Talvez o horror da nossa imaginação seja mais terrível que a cena em si. Talvez. Esse corte pode ser considerado (por alguns) a grande falha do espetáculo. Mas foi assim que o diretor pensou a ação que iria contar. Mexer com o texto também faz parte das encenações bem sucedidas. Outra foi a bondade de Duncan (Helio Cicero) ser confundida com placidez. Entretanto, Duncan é apresentado, neste espetáculo, como um Rei simpático e cheio de urbanidade. 
     Os símbolos, Lady Macbeth (Claudio Fontana), os carrega com mais desenvoltura entre seus véus. Inesquecível a simbólica cena dos dois esposos, esvoaçando como dois morcegos noturnos, ao encontro de sua própria desgraça. O sangue que escorre desse trono fracassado é representado por fios de seda caindo das mãos ensanguentadas dos esposos (e das mãos do assassinado Duncan). Cenas extremamente visuais, como visuais são as marcações dos atores, dirigidos por César Augusto, Ivan Andrade e Rodrigo Audi, com supervisão geral de Gabriel Villela. O diretor seguiu à risca as orientações da Cia "Os Homens do Rei" (só para lembrar: Jaime I, sucessor de Elizabeth, filho de Mary Stuart, era também um apaixonado pelo teatro!). Naquele tempo não havia mulheres no palco. No Macbeth de Villela também não. E Claudio Fontana faz com galhardia o papel do efebo.
     Entre as cenas inesquecíveis temos ainda a da morte da Lady, voltando ao útero da criação, útero esse encarnado na figura do autor/narrador (Shakespeare?), interpretado por Carlos Morelli. Ele é o dono do destino de Lady Macbeth. O oitavo ponto culminante do espetáculo é a cenografia de Márcio Vinicius. Enquanto no The Globe eram feitas passagens com telões indicando os lugares percorridos e as cenas declamadas, Márcio Vinicius coloca a ação entre teares, esculturas representando árvores, muita renda e tecidos nordestinos,  caixotes, malas, e bancos. O cenário é provocante, instigante, é um campo de batalha desarrumado, como é desarrumado o espírito da peça. É a região onde tudo pode acontecer. Sim, dirão os que me lêem agora, há nesta crítica muita descrição da ficha técnica, mas Shakespeare é texto... é interpretação.
     Pois bem, falta pouco, já falei do trabalho de Francesca com a antropologia da voz. Falarei agora da "força de intenção", de Babaya, preparadora vocal, e a projeção da voz dos atores. Diz Babaya: "cuido da palavra [...] a montagem proposta por Gabriel Villela tem traços épicos [...] e isso exige uma projeção vocal de grande intensidade, mas o diretor quer delicadeza, simplicidade na interpretação e evitar os "exageros".  Perfeito. E percebemos, como resultado de seu trabalho, a respiração de Marcello Antony (Macbeth), chegando a surpreender o acerto nas inflexões do personagem: perplexidade, fúria, ambição, medo - tudo isso representado pelo tom da voz e a convincente expressão facial, sem exageros. Sem querer parecer iconoclasta, digo que Gabriel Villela foi ao ponto, com essa criação do guerreiro infame: os demais participantes, com exceção da Lady Macbeth, parecem coadjuvantes frente à magnitude desse excelente personagem. Destacam-se, além do casal, as três bruxas que desafiam o público, interpretadas por Marco Furlan, José Rosa e Rogerio Brito.      
     Há também atores que marcam seus personagens, neste Macbeth, e damos como exemplo o Banquo de Marco Antonio Pâmio; o Malcolm, de Marco Furlan, e os vários papéis em que se desdobra Rogerio Brito, principalmente o porteiro da noite, com as sacudidelas sonoras de ombros, guizos e moedas, e seu humor,  - abrindo as tão aclamadas intervenções do povo nas peças de Shakespeare. É sua, também, a interpretação do velho, que exclama: "Os poderes celestiais estão demonstrando o seu desagrado". Essa constatação é lamentada por todos os personagens "do bem", na tragédia. Entretanto, o "diretor geral" teve a delicadeza de não fazer nenhuma ligação com as coisas do nosso país, demonstrando com isso sensibilidade, ao mesmo tempo em que soube atender aos insights psicológicos do autor. Única falha, para quem gosta de efemérides assustadoras: as aparições do fantasma "não" têm os apelos aterrorizantes de montagens anteriores, embora a perplexidade e o terror estejam estampados nas expressões do Rei usurpador.
    A união São Paulo/Minas Gerais esteve, mais uma vez, bem representada. É sempre um prazer ver os espetáculos assinados por Gabriel Villela. Desejamos um pronto regresso de sua Cia ao Rio de Janeiro, pois muita gente não teve oportunidade de assistir a esse Macbeth! 

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