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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

"UM INIMIGO DO POVO"

Os irmãos Stockmann, Tomas, o médico (Marcello Escorel), e Peter, o prefeito (Charles Myara), em  "Um inimigo do Povo", de Herik Ibsen.
(foto Marcelo Carnaval)         

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)


Todo ato é político. Mais político ainda se torna quando é realizado em um Tribunal de Justiça, como é o caso do presente trabalho de direção teatral de Silvia Monte, à frente do Centro Cultural do Poder Judiciario (CCPJ) do Rio de Janeiro. O CCPJ-Rio, como é conhecido, foi criado para investigar o tema do “poder”. Nada mais justo, em se tratando de teatro na Justiça. Porém, este “Um Inimigo do Povo”, do norueguês Henrik  Ibsen, em cartaz no CCPJ, vai além do poder (embora fale a respeito de homens ligados ao poder), e seu principal foco é a corrupção, sua aliada. 
     Entretanto, é preciso analisar o problema, procurando, se for possível, não estabelecer paralelos. Se o fizermos, deixaremos de refletir sobre o assunto, e falharemos ao analisar um problema universal, referente à alma humana. A questão de Ibsen foi justamente colocar um problema, humano, com as suas distorções e limitações, e tentar resolvê-lo do ponto de vista jurídico. A corrupção, no caso, consegue absorver todos os princípios. No programa da peça, diz a diretora Silvia Monte: “Vivemos hoje no Brasil [...] momento em que todos os cidadãos esclarecidos do país tentam acompanhar e compreender o que de fato acontece” – ela refere-se a esse obscuro jogo político de muitas faces, a que fomos apresentados recentemente.   
      Não é o mesmo problema apresentado por Henrik Ibsen. No caso de Ibsen, há o desdém pela verdade, e o interesse particular impera. O caso assemelha-se antes aos grandes julgamentos da História, como foram o de Joanna D’Arc, ou o de Mary Stuart, cujo veredicto já era conhecido, antes mesmo de o julgamento começar. Assim foi com o Dr. Stockmann, proibido de falar, de se fazer entender. Impossível assistir a “Um inimigo do povo” sem tomar partido. Assunto bastante delicado, como podemos constatar. O mais interessante, no trabalho de Silvia Monte, desde os tempos de teatro na Escola de Magistratura, é que ela aponta os erros jurídicos, e deixa para a plateia chegar às próprias conclusões. Sempre foi assim, ao menos nos espetáculos a que me foi dado assistir, como “O Processo”, de Kafka, ou “Os Físicos”, de Dürrenmatt. 
     Ora, sabemos que “Um inimigo do Povo” trata do acobertamento de fatos que podem prejudicar a comunidade, e esse acobertamento é feito, justamente, pelos homens que detém o poder: no caso, o prefeito da cidade, o jornalista e o gráfico, que é também o presidente da Associação dos Moradores do lugar. Portanto, é a burguesia que se coloca contra a iniciativa de um médico honesto, o também burguês Dr. Stockmann (interpretado por Marcello Escorel), preocupado com a saúde da população. Ibsen partiu de um caso exemplar – o envenenamento da água de um povoado, e as consequências maléficas que tal fato pode trazer. A questão acaba envolvendo interesses econômicos de grande vulto. O resultado das investigações do médico é ignorado pelo prefeito e pelos moradores do local, pois os faria arcar com enormes despesas. O problema  detectado pelo médico envolve o encanamento do parque aquático, principal fonte de renda da cidade: eles abrigam água poluída. O médico alerta para o perigo, e se transforma no inimigo numero um da cidade. Está criado o problema.
     O impasse transforma homens cordiais em agressivos defensores do erro. Tal atitude os vai conduzir à fraude e à corrupção. Está aberta a questão: de um lado, o poder; do outro, o ponto de vista humanitário do Dr. Stockmann, o médico, e no meio, o povo do local. Os três homens, de cordiais amigos do médico, e respeitadores de sua comunidade, se transformam em defensores de um ponto de vista  que os levará, fatalmente, ao erro.
     A cena se passa em uma antiga sala do CCPJ, na qual os presos aguardavam seu julgamento. Hoje é a sala multiuso, de 54 lugares, que se transforma em um acolhedor teatro de câmara. No presente espetáculo, a sala multiuso é adaptada em meia arena, onde palco e plateia convivem muito próximas. Assim, podemos observar bem de perto como o médico, um cidadão hospitaleiro e de agradável convivência (Marcello Escorel atuando com simpatia e verdade), recebe os amigos em sua casa. Neste primeiro movimento a situação começa a ser desenhada. A atriz Nedira Campos vive a Sra. Stockmann, doce solidária companheira do médico. É nesta primeira cena que entramos em contato com os personagens de Ibsen. Todos bem desenhados, elenco e diretora  enfatizam o realismo da cena.
     Assim, temos o irmão e cunhado do médico, o Prefeito da cidade, Peter Stockmann, interpretado com arrebatamento por Charles Myara. Enfim, os personagens de Ibsen estão bem representados, e a ênfase é necessária. Lauro Góes surpreende como o sentencioso Morten Kill, e Paulo Japyassu apresenta um desempenho sutil, interpretando o Sr. Aslaksen, o representante do povo (leia-se da burguesia do local), defensor da “moderação”. Ele é o impressor (o gráfico) do jornal A Voz do Povo, editado por Hovstad (interpretado pelo sempre correto Gustavo Ottoni). Há ainda o casal de jovens, a filha do médico, uma senhorita pré-sufragista, Petra Stockmann, à qual a atriz Brenda Jaci dá vida. E o Capitão Horster, uma figura honesta, interpretado por Eduardo Diaz.
     Em um segundo movimento, somos introduzidos a um novo espaço cênico, com a simples troca de posição do mobiliário. Agora o ruído das máquinas  nos faz compreender que estamos em uma redação de jornal. Observamos que é muito agradável ver este tipo de teatro realista acontecendo, de maneira singela, sem a impostação cerimonial, tradição nas montagens de Ibsen. Assim, elenco e espaço cênico apresentam uma saudável disposição para contar essa história, que deixa a nu o comportamento egoísta de alguns personagens. Estabelece-se, entre os atores, um momento teatral que confere verdade ao espetáculo e o torna de fácil entendimento. O público participa atentamente, identificando-se, às vezes, ou repelindo, outras, os acontecimentos do palco. No final, o médico será julgado e condenado como “um inimigo do povo”. A frase final do Dr. Tomas Stockmann, “o inimigo número um” da cidade, é pronunciada com envolvimento por Marcello Escorel, causando impacto: “O homem mais poderoso que há no mundo é o que está mais só”. Esse poder, a que Stockmann se refere, não o leva a jogar com a fragilidade humana, mas à transformá-la. O final fica em aberto. E o público se emociona.    
     O interessante, neste trabalho de Silvia Monte, desde seu início, é a sua determinação de desvendar os perigos do poder. Há sempre um caso a ser julgado, uma opinião a ser defendida. Trata-se do surgimento de algo digno de atenção.
     Na ficha técnica temos cenário e figurinos, bem cuidados, de Ronald Teixeira. Iluminação: José Henrique. Trilha sonora de Silvia Monte, para movimentos de Edvard Grieg em “Peer Gynt”. O espaço é limitado, e a entrada é franca. A finalidade é interessar o público por peças de valor dramático, desenvolvendo o interesse pelo teatro. Trata-se de uma boa iniciativa do CCPJ-Rio. Até 19 de dezembro.                           


2 comentários:

  1. Ida, assistir a uma peça, depois de ler o que você escreve, com certeza é uma experiência bem mais enriquecedora. Como sempre, me curvo à sua inteligência e cultura. A disposição desses atores em se doar a um espetáculo com entrada franca é também de tirar o chapéu.

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