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domingo, 16 de março de 2014

"O DUELO"

Pascoal da Conceição (Von Koren), Vanderlei Bernardino (Aleksandr Samóilenko) e Fredy Állan (Diácomo Pobêdov)

IDA  VICENZIA   
(da  Associação  Internacional  de  Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Talvez ninguém tenha registrado a avassaladora modernidade da recente montagem de Tchecov, feita pela Mundana Companhia. A adaptação, para teatro, de uma história curta, (novela), de Tchecov, "O Duelo", é uma das mais belas e dantescas representações da natureza em fúria.

No início, o mistério do teatro simbolista. A entrega a essa inesperada mistura de linguagens nos surpreende agradavelmente. A primeira cena, o misterioso encontro do moderno e do supra-moderno: esse cadáver (fantasma?), com gestos impulsionados pelo balanço da embarcação é também uma verdadeira obra-prima de linguagem corporal, mérito de Tarina Botelho e do ator Sergio Siviero.

Parece incrível que o teatro, somente agora, tenha destacado, de maneira livre, o momento de Tchecov. Explico: oriundo de uma época cultural muito rica, o autor russo procurou entender, passo a passo, nesta novela, o que prometia o futuro, ou seja, os conflitos políticos e religiosos que viriam.

Nesta montagem de Tchecov não há estrelas, somente pessoas querendo entender os acontecimentos. Há uma entrega total de seus participantes, começando pelo trabalho de Georgette Fadel, na direção. A adaptação do texto, feita por Vadim Nikitin e Aury Porto deve ter sido prazerosa, pois a novela "O Duelo" é extremamente teatral. Primorosa e forte é a concepção da cenografia e a direção de arte de Laura Vinci. A preparação corporal de Tarina Quelho, como já foi observado, não poderia ser mais exata, estendendo a sua sensibilidade à atuação do elenco. E Guilherme Bonfanti, na iluminação, unindo seu trabalho à direção musical e operação de som de Otávio Ortega, fazem um belo dueto. É tudo tão bem resolvido que temos a impressão de que as vastas terras do Cáucaso e seus desmandos naturais, sempre estiveram ali, próximos de nós. Há outro personagem, talvez o mais importante de todos: o Mar. A voz de Tchecov reforça a poesia desse gigante: e "... foram encobertos por uma grande onda, que depois foi quebrar nas pedras e, de volta ao mar, desabou uivando sobre os pedregulhos". O espaço Tom Jobim,e a nossa imaginação, receberam muito bem as embarcações e o mar.

Há um mundo isolado, e personagens que se adaptaram a viver neste mundo. Há, porém, uma força desafiante, incorporada no personagem de Von Koren, esse "mau leitor" de Darwin. Pascoal da Conceição defende muito bem este ser provocador e culto. Talvez, para os espectadores mais afoitos, esse mau leitor de Darwin seja o representante do Mal. Na verdade ele é a força que analisa e discorda. 

Pela primeira vez em seu trabalho Tchecov não nos dá a representação da nobreza decadente, embora alguns dos personagens sejam nobres (e decadentes!). O autor se debruça sobre uma sociedade acomodada, e sobre os rígidos padrões impostos às mulheres. Dessa vez, ao que parece, os padrões são ditados pela pequena burguesia. Não importa, para as mulheres todos os tempos são iguais. Carol Brada, na sua magnífica interpretação da bem casada Mária Bitiugova, faz de sua intervenção um misto de bondade e preconceito. O ponto alto de Brada é a visita que faz a Nadiejda Fiódorovna, (uma Camila Pitanga inteiramente entregue ao teatro), tentando convencer a "desviada", que abandonou o marido por outro homem, a voltar ao rebanho da sociedade. (Uma observação: o figurino de Bitiugova , de Diogo Costa, é o responsável pela cena que enaltece a sociedade estabelecida...Ele é belo).

São tantas as situações, nesta avalanche de seres. O médico Aleksandr Samóilenko (há sempre um médico nos trabalhos de Tchecov) é uma figura vaidosa e bondosa, interpretada com a emoção requerida por estes sentimentos, aliada à rigidez com que controla seus servos Reginaldo (Rafael Matede) e Damião (Victor Galli). Embora pareça estranho, esse é um toque bem humorado no espetáculo. Além de, é claro, os momentos descontraídos de picnics e conversas de bar. Diferentes dos servos de Shakespeare, Reginaldo e Damião não dão seu recado sobre a sociedade em que vivem...


Há o sorridente Diácono Pobêdov (Freddy Álan), personagem puro que troca memoráveis questões religiosas com o nosso Von Koren, a quem chama de "judeu-alemão" (ou estarei delirando?) Há também música ao vivo, orientada pelo "Mestre de Instrumentos" (Otávio Ortega). E a excelente ideia de reunir profissionais apaixonados por teatro e construir com eles uma comunidade livre foi de Aury Porto. Esse ator interpreta o jovem e desorientado Ivan Laiévski, um nobre! A trajetória do homem egoísta ao homem consciente é acelerada por Atchmiánov (Guillherme Calzavara) um jovem apaixonado pela companheira de Ivan; por Kiríln (Sergio Slaviero) o capitão também apaixonado por Nadedja... e Von Koren! (odiado por Ivan Laiéviski). Mas estou revelando o final. Não posso deixar de acrescentar que, pela primeira vez em se tratando de Tchecov, há um espaço aberto para o futuro. Verificamos que "avançar, avançar sempre...", é o lema do autor neste "O Duelo". Trata-se de um trabalho de imaginação e que faz pensar. É bom ver bom teatro.

5 comentários:

  1. e ler uma boa descrição crítica da obra...

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  2. excelente texto! o que melhor descreveu as sensações que tive ao ver (3 vezes) o espetáculo. Parabéns!

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  3. Está no Teatro Tom Jobim - interior do Jardim Botânico/RJ. Transporte: descer no Baixo Gávea. Podes ver no jornal horário e data de encerramento.

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