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sábado, 9 de agosto de 2014

UMA VIDA BOA

Julainne Trevisol e Amanda Vides Veras em "Uma Vida Boa", direção de Diogo Liberano (foto Paula Mello)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Como dizia o nosso Paschoal Carlos Magno "teatro é humildade". O papel do crítico também "é um ato de humildade", e incensar um espetáculo não deveria incentivar vaidades. "La critique est l'art d'aimer", e o olhar cansado desta crítica se detém, no caso de "Uma Vida Boa", na esperança de algo diferente. E encontra vida, fúria, loucura e humildade no texto, refletindo o humano. Os sentimentos primordiais nos levam a enfrentar o nosso "outro lado", o lado cruel que nos habita. É aí que reside o verdadeiro teatro. Em "Uma Vida Boa", ou em "Sinfonia Sonho", uma "inominável" caixa de segredos nos é desvendada pelo diretor Diogo Liberano. 

Na peça criticada somos apresentados a uma atriz. Ela se chama Amanda Vides Veras, que, interpretando B, o menino/menina, nos enche de ternura. Este sentimento, combinado com o ódio que nos desperta a testosterona em excesso do personagem de Daniel Chagas (que é uma doce criatura, conforme nos revela nos aplausos finais), e Julianne Trevisol, uma promessa de atriz que entende e ama aquele ser diferente. Na verdade, a peça é o retrato de um acontecimento real, um assassinato que assombrou o mundo, comprovando que o "outro", o diferente, provoca ódio. Nesta historia toda, Diogo Liberano faz questão de nos levar pela mão para caminhos que negamos, ou não queremos lembrar que existem. Temos a sensação de nos tornar melhores. Enfim, esta é a finalidade da arte. Sim, os massacres existem ("Sinfonia Sonho"), a fúria e a bestialidade também existem, e estão hospedados em "Uma Vida Boa". E, de repente, estamos amando (e odiando) os personagens fictícios (ou reais), que já fazem parte de nossas vidas. 

Os três atores são convincentes, e possuem uma técnica apurada. Meninos "também" choram, e passam do pranto ao riso. A tristeza do personagem B está em controle profundo; o menino sabe esconder a sua historia. Atores, dizem, são seres perigosos, com a sua "aura" e a sua técnica. No caso de Amanda, a voz e a postura feminina, quase infantil, apresentada quando se dirige ao público no final, é surpreendente. A sua mudança de atriz/menina para um rapaz, no palco, é também credenciada a João Pedro Madureira, com a direção de movimento, e a Verônica Machado com o seu trabalho de voz. Trata-se de um trio de grande qualidade. 

A trajetória do transexual é narrada com modernidade teatral. As mudanças de espaço e tempo são interpretadas como acontecimentos reais. Mas devemos ficar atentos a estas mudanças, pois vemos surgir, nas ruelas escuras de nossa imaginação, e nas barras das prisões, a menina "cuja alma está em desacordo com o seu corpo". Essas aparições nos transportam ao encontro final das duas meninas. Trata-se de algo simbólico. Um gramado é projetado em espaço ilusório, como se, para elas, houvesse futuro. E, finalmente, o assassinato de B. Este é o último olhar no drama. O cenário de Brunella Provvidente, e a iluminação de Daniela Sanchez nos transportam, assim como a trilha sonora de Diogo Ahmed Pereira, para os locais onde a trama se desenvolve.

No início do espetáculo nos deparamos com algo que se tornou a marca registrada do diretor. Através de molduras e transparências iluminadas com cores vibrantes, há a apresentação dos atores, que, com emoção contida, estabelecem o clima que virá depois. Quem viu o filme "Meninos não choram" nunca poderá imaginar o espetáculo do Centro Cultural da Justiça Federal. O cinema tem as suas limitações...

Finalizo com a frase do autor Rafael Primot: "As pessoas mentem, matam e se transformam em outras para esconder segredos e seus desejos. E a vida pode ser muito mais simples que isso - e muito menos dolorosa também. Então é preciso aceitar nossa pluralidade como seres humanos".

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