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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

AS BODAS DE FÍGARO

As Bodas de Fígaro, direção de Daniel Herz. Ernani Moraes (Almaviva); Leandro Castilho (Fígaro); Carol Garcia (Suzana) e Solange Badim (Condessa de Almaviva). Ao fundo, Alexandre Dantas.
                                                          (Foto Paula Kossatz).



IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

O diretor Daniel Herz exercita a sua já conhecida verve criativa neste As Bodas de Figaro, de Beaumarchais, no teatro da Casa de Laura Alvim.  Local precioso, para um trabalho precioso. Finalmente, para regozijo do público, foi-lhe dada a chance de assistir a uma peça em que tempos políticos e acontecimentos sociais se misturam. Um momento muito particular.
Podemos dizer que montar Beaumarchais, agora, no Brasil, não é somente um caso de diversão. O Figaro do século XVIII, na França, lutava contra os privilégios da nobreza; agora, no Brasil, a audácia inteligente de Fígaro talvez já esteja aí, desejando a dessacralização das "Excelências". Talvez seja um caminho aberto, como o de "uma certa deputada gauchita" que trata a todas as excelências com o "tu és"; "tu dizes" dessacralizador.  
 Por isto destacamos a maravilhosa cena em que Beaumarchais/Herz mostram o julgamento de Fígaro. No caso de Herz, um juiz caquético (um excelente Alexandre Dantas), faz o que costumam, em geral, fazer os magistrados: uma confusão que não leva a nada.  
Mas vamos falar agora do Conde de Almaviva e seus desmandos. Ernani Moraes é, realmente, aquele ator que dá vida a uma cena teatral. Está, claro, um excelente Almaviva, desafiando com vigor aquela juventude (atores e personagens) que o cercam. Todas as vezes em que ele joga com sua expressão facial, tudo para. O único reparo, no dia em que fui assisti-lo, refere-se a algum problema com a sua possante voz, que se desmontava, quando dirigida ao fundo de cena. Algum problema, talvez, de respiração, desmentido logo em seguida pelo vigor com que enfrentava o seu canto. Mistério.   
Há, para quem assiste ao espetáculo, uma deliciosa brincadeira com sutilezas de linguagem. E voltamos ao julgamento de Fígaro (um ótimo Leandro Castilho, por sinal. Soubemos, pela ficha técnica, que ele também é o responsável pela inacreditável música do espetáculo e pela distribuição dos instrumentos a cada ator, que os executam com esfuziante perícia).
Fígaro/Leandro Castilho está ao piano, ele dá o tom. O servo do Conde de Almaviva ensina também as sutilezas da linguagem, para o representante da Lei e seus "cúmplices". Esta brincadeira, em português, como em francês, é deliciosa. Ao que nos parece, o diretor Herz se baseou muito na montagem recente da Commédie Française, e nos faz pensar em quanto os franceses se transformaram em burgueses acomodados, frente à viva interpretação carioca. Principalmente As Bodas... da Commédie. Nem é bom lembrar que os franceses tiveram o extravagante Luís XIV, que era um artista embalando todo o movimento teatral da França.   
O início da ação, em nossa As Bodas... é fascinante. Estamos sendo apresentados a uma mélange de Mozart com maxixe e samba. E não há um momento do espetáculo em que os acontecimentos não possam ser trazidos para o Brasil, inclusive a parceria "serva e dama", amizade mesmo, tão comum entre nós (desde a escravidão), e que as duas atrizes, Carol Garcia (Suzana, a serva, amada de Fígaro) e Solange Badim (a Condessa de Almaviva), fazem com perfeição.
Em resumo: a história das peripécias de Fígaro para salvar a amada das "primícias" exigidas (por debaixo do pano) pelo Conde, na primeira noite de amor do casal, é o enredo. A ação se passa em um dia, e todos sabem como termina. A acrescentar, e com destaque, a presença cênica e boa atuação de Querubino (Tiago Herz), o adolescente apaixonado por todas as mulheres. E também a da ótima atriz que é Claudia Ventura, em uma inesquecível mulher que transborda amor, Marcelina. Suas peripécias para conquistar o amor de Fígaro tornam-se, no final da peça, um fator romance de folhetim.  Sua atuação é perfeita. 
A registrar a participação de Ricardo Souzedo como o Dr. Bartolo, outro que carrega um segredo. Barbarina (Carolina Vilar), como a serva que capitulou aos encantos do Conde, e seu pai, o jardineiro (Adriano Saboya), importantes peças para ligar os acontecimentos. Como a arte é um caminhar contínuo, estas Bodas refazem o interessante caminho da comédia. Constata-se que Beaumarchais utilizava, a seu bel prazer, todos os tipos de comédia, e de personagens; desde o esperto servo da Commédia dell  Arte, passando por Molière e seu teatro de caráter, e chegando até o que viria a ser a comedia de intriga, com o seu contato direto com o público. Em uma palavra, As Bodas de Fígaro, no Laura Alvim, é um momento fascinante do melhor teatro.    
A ficha técnica conta também com a participação sempre brilhante de Marcia Rubin, na direção de movimento; a cenografia, um constante abrir e fechar de portas e janelas, muito bem resolvido por Nello Marrese com cadeiras de acrílico, e a movimentação de flores e jardins (iluminados por Aurélio de Simoni), dão dinamismo ao espetáculo; figurinos de Antonio Guedes (não sabemos se é um homônimo do querido diretor, ou o próprio, em suas variadas funções artísticas). Muito bom, o figurino, com achados preciosos: a crinolina de Barbarina, as meias debruadas de vermelho de Suzana... Detalhes picantes; Iluminação perfeita, como sempre, do mestre Aurelio de Simoni; preparação vocal, Pedro Lima; aderecista Anna Luiza Azevedo; visagismo, Junior Leal; fotos Paula Kossatz; assessoria de imprensa Paula Catunda e Fernanda Lacombe. Parabéns a Leandro Castilho pelo seu trabalho com as versões das músicas e letras de Mozart e Da Ponte (?).  A tradução, divertida e competente, é de Bárbara Heliodora.    

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