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segunda-feira, 12 de outubro de 2015

"PUZZLE (D)"

                                "O Brasil é Bom", da cena de Felipe Hirsch, PUZZLE (D).
                                                         (Foto Christina Carvalho)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

      Sente-se, às vezes, "o borbulhar do gênio", em Hirsch, como diria  Castro Alves de sua própria lavra, observado por Mário Quintana, que constatou ser esse "um dos versos mais medíocres do condor baiano". Entretanto, não se pode negar que Filipe Hirsch, em sua seleção de textos para construir esse "Puzzle (D)", é bem original. O espetáculo, recentemente apresentado no Rio de Janeiro, no Tempo Festival,  surpreende pelo inusitado e pela variedade de temas. Nenhum deles otimista. Mas quem falou em otimismo, tratando-se de brasileiros, não é mesmo? De grandioso, mesmo, só o cenário, que vai se construindo/desconstruindo (como queriam os modernistas?), e sendo carregado por golpes de tinta, tal como queria Pollock em suas telas: ideia luminosa de Rafael Coutinho, artista convidado, e da Direção de Arte de Daniela Thomas e Felipe Tassara?
     Mas há o imperdoável, na seleção dos textos de Hirsch; é aquele em que o autor (tinha que ser André Sant'Anna) desconstrói o povo brasileiro. O texto? "O Brasil é Bom". Coisa de quem vê o povo brasileiro como cachorro vira lata. E dizem que tal espetáculo foi apresentado em Frankfurt. Com certeza não é o mesmo, apresentado no Festival do Rio de Janeiro, pois o espetáculo está em constante mudança, e em Frankfurt durou 7 horas, contra pouco mais de 1 hora no Brasil. O quebra cabeça desse Puzzle é composto de várias partes: A, B, C... nós só assistimos a parte "D" (de "desconstrução"), e suas improvisações, o "cachorro vira lata incluso".
     Voltando a Frankfurt (o espetáculo foi apresentado na Feira de Livros de lá, em 2013, quando o Brasil foi homenageado). Concordamos que "Puzzle (D)" foge aos clichês de "bunda, futebol e carnaval", tão chegado aos brasileiros... mas é impregnado de outros clichês com que batizam o Brasil da atualidade: a violência, a burrice... Temos certeza do que os alemães, assim como os americanos, franceses, ingleses, enfim, toda a "nata" da humanidade, jamais sairiam a público para rir das próprias mazelas. Ainda mais na Feira de Livros de Frankfurt! Agir assim como Hisrsch só faz alimentar estereótipos. A "nata" da Europa se acha viril, guerreira, inteligente e, apesar de serem povos com virtudes e defeitos, defendem as suas qualidades. No caso do alemães, por exemplo, o máximo que eles fazem, atualmente, para se redimir de seu complexo de culpa hitleriano é se "condoer", e pedir desculpas pelas loucuras de Hitler. Êta povinho com complexo de culpa! Resolveu, agora, receber todos os refugiados de uma guerra que nem é deles, provocada pelos malucos dos Estados Unidos... Dá para entender: eles querem mão de obra barata. O que está em jogo, agora, para eles, é receber novos escravos.
      Mas, se Felipe Hirsch quer chamar atenção (e quer, porque é um artista) o conseguiu. Afinal, seu teatro é para "épater les burgueois", e não só isso: é, principalmente, para pensar na loucura humana. Vamos dar uma olhada "positiva" no espetáculo, agora. Vamos lá: ele tem  fôlego, memória  e a interpretação de grandes atores que acreditam no espetáculo e emprestam o seu vigor ao que apresentam. Eles são Georgette Fadel, Isabel Teixeira, Danilo Grangheia, Guilherme Weber, Magali Biff,  Luna Martinelli, Javier Drolas, Luiz Paetow, Caio Blat...
      Espetáculo extremamente sofisticado, que nos faz lembrar a vanguarda do teatro europeu. Temos uma equipe régia,  com a composição e execução da trilha sonora (ao vivo, em piano e guitarra elétrica) feita por Arthur de Faria, em ritmo alucinante, e também, às vezes, soturnamente delicado. Houve redução do aparato musical, para a apresentação carioca, simplificaram a parte "D", ou criaram uma nova, com a  ideia de improvisação.
     Vejamos agora o complicado desempenho da literatura: o já citado complexo de vira-lata de autoria de André Sant'Anna. Como não poderia deixar de ser, Sant'Anna é identificável, e o seu "O Brasil é Bom" soa bastante preconceituoso, sendo contra as mudanças de padrão que o governo operário está tentando estabelecer no Brasil. Emprestar para o FMI é um verdadeiro achado que desmoraliza por completo e coloca a nu o roubo do "Fundo Monetário Internacional". Quase que o fundo acaba na desmoralização, com este empréstimo. Pena que a Kishner também não se tornou credora...! Agora eles estão querendo, novamente, cantar de galo, o FMI, querendo criar uma atmosfera surreal na política brasileira, dizendo "que o país está caindo de posição." Ora, ora! Quem eles pensam que são? E André não percebe. Mas dele também é o ponto alto do espetáculo, o texto "A Lei", com o soldado fardado (um genial Caio Blat), que horror! Meia platéia de atores burgueses deixa a sala...! E algo ainda  sobre "Sexo" (imaginamos que seja de André, já li cada coisa dele!): é o pronunciamento do ótimo Guilherme Weber, interpretando um "pastor" desenfreado. Conseguir localizar quem diz o texto de quem, neste espetáculo, é meio complicado, mas imaginamos que o texto (ótimo, dentro de sua proposta de tornar o sexo escatológico!), seja de Sant'Anna...
      (Sei que poucos críticos se arriscariam a esta adivinhação, a este verdadeiro jogo de cabra cega, feito de puzzles...)
     Prossigamos: já Bernardo Carvalho acha que seu texto "Amigos e Inimigos" foi tão transformado que já nem é dele, mas uma criação do coletivo de atores. Está certo. Não podemos dizer o mesmo de Verônica Stigger (de quem já fui fã), com o seu "No Teatro": pelo visto está na íntegra, pois é a cara da autora, essa entrada em cena de um tumultuado casal, cuja "forçada" companheira é uma espectadora que  detesta ir a teatro. Impactante.
     Mas impactante mesmo é "A Lei" (e volto a eles: Sant'Anna e Caio Blat), que faz alguns espectadores deixarem o teatro intempestivamente. O texto é hilário, por vezes, e repugnante, na maioria das vezes. And so it goes... "Ultraliricos", o novo grupo de Hirsch, que se quer ligado à literatura, já se chamou "Sutil Companhia de Teatro". Eles agora, como já deu  para notar, estão lendo trechos literários ditos em um só fôlego, por atores tão bons que ler literatura já faz parte da arte deles. E que literatura!
     Desculpem se não deu para citar todos os autores. Ficamos condoídos com o gelo no interior do Teatro Carlos Gomes, que nos fez perder a última parte (noblesse oblige, permanecer, mas eu poderia ter pego uma pneumonia!), na qual o excelente ator argentino Javier Drolas citava um trecho do chileno Roberto Bolaño, sobre a distância dos poetas e romancistas da Latino America, e seu olhar direto para os acontecimentos culturais de além mar. Nada mais normal, somos todos "crias" do Continente Europeu, precisamos, e estou de acordo com Hirsch - o paranaense Hirsch, discípulo de Leminski - precisamos abreviar essa distância, ou acabar com ela. Para Hirsch, "Puzzle" é como um Samurai, "provocador". Penso que sim. E, como diz a Hannah Arendt, "teatro é a arte mais política que há" - Pois não é? Pena que não há mais tempo de os cariocas assistirem a este espetáculo. Voltem sempre, "Ultralíricos".
Alguém da técnica:
Idealização e Direção Geral: Felipe Hirsch; Iluminação (sem ela, impossível viver), de Beto Bruel; Figurino (ótimos e usuais), Cristina Camargo; Visagismo: Emi Nagano; Diretora Assistente: Isabel Teixeira; Execução da Trilha Sonora: Gustavo Breier; Produção Musical: Arthur de Faria & Gustavo Breier; Critico Interno: Ruy Filho; Diretor de Palco: Nietzsche; Assessoria de Imprensa Rio: Marina Ivo.


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