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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

"INÚTIL A CHUVA"

"Inútil a Chuva", texto e direção de Paulo de Moraes, com a Armazém Companhia de Teatro.
(Foto de Mauro Kury)
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional dos Críticos de Arte - AICT)
(Especial)

"INUTIL A CHUVA"
     Assistindo ao espetáculo "Inútil a Chuva" passou-nos pela cabeça a semelhança das criações do Armazém Companhia de Teatro com as criações "sensitivas" do "Grupo Corpo"... E tal imagem surgiu pela maneira que ambos têm de contar uma historia. Os dois grupos vão desenhando historias, narrando-as em quadros que se sucedem,  e que ficam flutuando no ar, qual uma reposição de imagens em uma exposição: arte plástica pura. O trabalho de Paulo de Moraes, ao menos neste "Inútil a Chuva", assemelha-se ao dos irmãos Pederneiras: mais do que historias a serem narradas, são momentos belos, ou não, para serem  apreciados. No caso de Moraes, estes momentos, às vezes, transformam-se em historias compreensíveis, em narrativas.  Como as da vida.
     Neste "Inútil a Chuva", dirigido por Paulo de Moraes, vemos, no decorrer da peça, as situações se sucederem, vagueando entre acontecimentos inacabados. O mesmo acontece com muitas de suas criações. Dessa historia de Lotta (Patricia Selonk) e seu marido desaparecido, o pintor de quem só se ouve falar, há uma vaga, e incontestável, crítica às injustiças praticadas contra a arte e os artistas. Focalizam-se, na peça, as artes plásticas, cujo autor fica célebre depois de desaparecido, tornando-se o ídolo de milhões de dólares e admiradores. Deixa uma carta de suicida. Em vida não tem sequer para o sustento da família. And so it goes...
     Tudo gira em torno de um Tríptico, procurado pelos colecionadores e pelos donos de galerias de arte. A incompreensão e a inutilidade da compreensão. Aprende-se, a cada momento, que o "Cânone" é o que está valendo. E a família vai, sempre remando, apesar da chuva e do naufrágio, em um barco que os deixa à deriva. Os três irmãos e a mãe já não têm mais nada a provar, para ninguém. E a ação vai se arrastando, ora poética, ora brutal e incompreensível. Como a vida.
     A peça, esteticamente, aproxima-se das artes plásticas. A conferir, a beleza das imagens iluminadas pelo mestre Maneco Quinderê, lembrando quadros, iluminuras (a cena das bandejas com as taças, equilibrando-se no ar; ou a tela branca onde as tintas do filho tímido e artista, Slavoj (Leonardo Hinckel) vão se identificando com a pai ausente. Há várias maneiras de passar o tempo, há várias maneiras de fazer arte, e há várias maneiras de denunciar os maus tratos à arte. Esta peça é uma delas.
     E a exposição se faz história, com quadros que são acontecimentos que se refletem na vida da família. Uma jornalista, Vivian (Amanda Mirasci),  antes de iniciar seus trabalhos de pesquisa, declara que a história que vai contar não é nada autobiográfica. E não existe nada mais falso, pois na verdade é uma história universal: a historia de cada um.
     Vivian se  aproxima da família atraída pela fama do pintor, e dela se distancia quando percebe que eles não têm a menor importância, são seres perdidos, que não compreendem o que está acontecendo. Sua busca de compreensão transforma-se em uma descrição de quadros, tintas e cores, que se acumulam nas luzes, na música e nos reflexos da cena. É assim que se faz um arremedo de "vernissage", sem saber o que se comemora, pois o famoso pintor não existe, somente a sua obra - e ninguém quer saber nada sobre ele, a não ser a sua família. A peça termina com a procura de algo que nunca começou, e o remar se reinicia, constante, para não deixar o falso barco (a vida?) à deriva.
     Talvez o momento mais empolgante desse espetáculo "crepuscular" seja o instante em que o amigo do pintor, Matthias (marcos Martins), ensina Slavoj, o temeroso filho do pintor, a se defender. O quadro da luta lembra a pesquisa de Bertold Brecht em busca de uma linguagem física para seus atores. O espetáculo, dirigido  por Paulo de Moraes, com dramaturgia do diretor, e de Jopa Moraes, é uma sucessão de possibilidades: a luta de Slavoj, a nudez de Slavoj, o seu cansaço e abandono da procura. Os desafios do filho Claude (Tomás Braune), e a procura de Sarah (Andressa Lameu),  os filhos que nunca se encontram. A impressão que se tem é que Slavoj é o único personagem que sonha em realizar algo, é o único romântico que ainda se propõe a viver.
      Pergunta-se: o que proporcionou a estagnação dessa família? Em geral a Armazém Cia de Teatro inspira-se em literatura, já tendo montado textos inspirados em Beckett, Shakespeare, Lewis Caroll, e até Mahabharata, como  "Meu Leito Após a Água". A técnica e a construção do espetáculo se dão durante os ensaios. A impressão de desamparo deste "Inútil a Chuva" deixa-nos a mesma sensação bergsoniana de todos os seus espetáculos a que tivemos acesso, com exceção de "Alice através do Espelho". Extremamente intelectualizados, a impressão que nos fica desta Companhia é a de uma Suécia brasileira que atingiu o que procurava, sentindo-se a caminho de algo que talvez virá, algo  que o sonho sempre renovado não deixa fenecer, mas que está cada vez mais distante. Talvez essa saciedade seja o sonho realizado. Receberá todos os prêmios, mas qual será seu caminho? Nossos votos é o de que seja a sua  renovação constante.
     O espetáculo é de uma riqueza evidente, saciada. Os figurinos de Rita Murtinho, principalmente os do momento de festa, apresentam uma realidade falsa, como é falsa a vontade de estar ali. Algo acontece com aqueles três filhos, e a mãe abandonada. Deixemos para os poetas e os intelectuais a solução deste problema. Colaboração de Dramaturgia: Mauricio Arruda Mendonça. Preparação Corporal, Maíra Maneschy e Patrícia Selonk. Não conseguimos perceber se "Inútil" a Chuva" é alguma adaptação literária, o certo é ser uma imitação da vida.
"INUTIL A CHUVA" É UM INTERESSANTE ENSAIO SOBRE A NEGAÇÃO DA VIDA, E UM ALERTA PARA AS ARMADILHAS QUE ELA NOS PREPARA.                                         

     

"KISS ME, KATE !"

José Mayer e Alessandra Verney em "Kiss me, Kate!", direção Charles Möeller, inspirado em "A Megera Domada", de Shakespeare. (Fotos Produção)
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

KISS ME KATE
"Chama o Shakespeare! "

E eis-me eu, de volta aos musicais! Cole Porte, William Shakespeare, Charles Möeller, Claudio Botelho: "Kiss me Kate! - o beijo da megera". Um incrível coreógrafo: Alonso Barros; um incrível maestro: Marcelo Castro. Direção de Charles Möeller. Versão e supervisão musical de Claudio Botelho. Ótimos bailarinos e cantores! Cenário de primeira grandeza de Rogerio Falcão, e eis que esquecemos as maldições da vida.
     Möeller e Botelho relembram 1935 e o tempo "dos Lunts", o casal que sacudiu a historia do teatro americano. Suas brigas de bastidores (e que chegavam até a cena) inspiraram Cole Porter e o casal Spewack (texto de Sam e Bella Spewack) a criar uma versão musical da peça que levava o casal às turras: "A Megera Domada", de Shakespeare!
     E somos convidados a testemunhar, com detalhes de grande arte, a esta bela montagem que está no Teatro Bradesco, Barra, Rio de Janeiro. Assisti ao revival da Broadway, 2001, de "Kiss me Kate"! E  sai encantada com as "turras" teatrais e a perseguição ao casal, feita pelos dois gangsters. E com as músicas de Cole Porter, claro! Nesta versão carioca temos José Mayer como Petruchio e Fred Graham, (personagem e ator de "Kiss me Kate"), com sua voz  de barítono, seu domínio de palco e, pasmem!... seu talento tão natural para o ofício. Mayer parece ter nascido e convivido nos bastidores dos musicais! Atenção produção, dêem um chicote decente para o Petruchio, um daqueles de domadores de feras, pois Kate merece!   
     Outra grande atriz de musicais! Alessandra Verney, (Kate e Lili Vanessi), grata surpresa. Ela atinge todos os tons, e não tem cara de boneca estereotipada. Uma verdadeira fera teatral! Sei que vou me exceder, e os que me lêem podem até rir, mas eu amei este espetáculo! Único senão: a abertura: Cáspite! Pensei. Eis que fui pega em uma armadilha! O tal de "Another Opening, Another Show" não acabava mais, com fala entremeada com música, um "Oklahoma" à vista! E algumas canções românticas... Mas depois chegou "Wunderbar", com Fred e Lili (Mayer e Verney), e fiz as pazes com o espetáculo.    
     Vamos a ele: são 22 atores em cena, entre bailarinos e cantores temos, além dos já citados, Jitman Vibranovski fazendo o pai da megera, Batista (uma delícia); Ruben Gabira (Paul) arrasando em "To Darn Hot" (aliás, os bailarinos/cantores em cena, com a orquestra do Maestro Marcelo Castro abrindo o "Ato 2" são um delírio!). Destaque para Ruben Gabira. Mas eles todos, os bailarinos: Tomas Quaresma, Thiago Garça, Patricia Athayde, Mariana Gallindo, Lana Rhodes (alguns criando um tique para se destacar, tal e qual fazem os bailarinos nos musicais... Aliás, a crítica aos "pequenos tiques" nossos, da nossa sociedade e do nosso tempo, é o que não falta nesta sábia versão brasileira de Claudio Botelho, dirigida com acerto por Charles Möeller); João Paulo de Almeida, Giselle Prattes, Augusto Arcanjo... e  Beto Vandestein (Pop's), que rodopia... Depois de tanto trabalho (de perder o fôlego), um dos maquinistas da montagem, ou será o diretor? manda todo mundo trabalhar!         
     E agora a dupla Chico Caruso e Will Anderson (Shake adoraria!), maior "caras de pau" e timming pra comédia. Às vezes Chico se atrasa, mas Will não deixa por menos, empurra seu companheiro e tudo volta ao normal ... talvez esse jogo faça parte do charme da dupla! Quem sabe? E temos Fabi Bang (Lois e Bianca), com "Eu sou sempre fiel". Há para todos. Essa dupla MB é de uma generosidade exemplar, basta só ter talento. E também estão em cena Guilherme Locullo (Bill/Lucentio), e Leo Wainer (irreconhecível) como o General Harrisson Howell.
    E não faltaram Ivanna Domenyco (Hattie); Igor Pontes (Grêmio); Leo Wagner (Hortêncio) e Marcel Octavio (Ralph) para animar a cena. 12 músicos: Kelly Davis e Luiz Henrique Lima (Violinos 1 e 2); Saulo Vignoli (Cello); Zaida Valentim e Gustavo Salgado, (Teclados 1 e 2); Nocchi (Picollo, Clarineta, Flauta e Sax Alto); Dilson Balbino (Clarineta e Sax Alto); Whatson Cardozo (Clarone, Clarineta e Sax Barítono); Matheus Moraes (Trompete e Flügel); Vitor Tosta (Trombone); Omar Cavalheiro (Contrabaixo); Marcio Romano (Bateria e Percussão). Orquestração Original de Don Sebesky; Direção Musical, Regência e Arranjos Musicais do Maestro Marcelo Castro.
     Paulo Cesar Medeiros faz acontecer a iluminação do espetáculo. Os figurinos de Carol Lobato são broadway, com adequação de plumas e paetês, 'pero no' exagerados. Elegantes, o das mulheres. Um pequeno senão no figurino de Petruchio, na cena do marido malvado. Trata-se de um pirata, ou de um pobre (o que Kate certamente odeia). É de propósito? Como já foi definido anteriormente, até o chicote não funciona. Desconheço os motivos. Mayer, apesar do "deslize" de Carol, consegue fazer muito pela cena. Ele é um cavalheiro.
Abstraindo o que foi falado acima, este Beijo da Megera é implacável em seu acerto. ACONSELHA-SE A NÃO PERDÊ-LO!         
                  
    


               

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

"O PENA CARIOCA"


Cenas de "O Pena Carioca", de Martins Pena, direção de Daniel Herz
Na foto, Gabriela Rosas como Quiteria, Paulo Hamilton, "Dona Angelica", a Curandeira e Ana Paula Secco, Dona Joana.
(Fotos de Paula Kossatz) 


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     Neste ano em que se festeja uma data redonda, os 200 anos do nascimento de Martins Pena, nada mais divertido do que assistir, em sua homenagem, "O Pena Carioca", dirigida por Daniel Herz, e encenada pela Companhia Atores de Laura. A boa notícia é que o espetáculo vai permanecer conosco até novembro! Pelo menos, teremos a garantia dessa delícia que é Martins Pena, contada por  atores que parecem marionetes (estamos começando a ficar fã dessa "maneira Duda Maia" de dirigir movimentos), unida com o visagismo de Diego Nardes, a personalidade destes atores em cena é de estranhamento: maquiagens circenses, máscaras teatrais,  e movimentos de bichos da roça, acompanhados por cantos e ruídos de pássaros, dos quais Ana Paula Secco, em "A Família e a Festa na Roça", introjeta os movimentos. Mas  as novidades não param por aí.

     Desde "Desgraças de Uma Criança", montada por Antonio Pedro nos anos 70, não tínhamos visto um Martins Pena tão original. Na concepção de Herz há um espaço cênico aberto para a imaginação da plateia, e é neste espaço aberto para o público, onde tudo acontece: os figurinos estão ali, vigiando a cena e aguardando o seu momento de ganharem vida. Sim, porque a impressão que temos, ao observar aqueles vultos parados no claro-escuro, é a de que são personagens.

     E talvez sejam, pois os atores, revezando-se, vão relembrando os títulos das peças de Martins Pena. Mesmo as não encenadas, e este é o mistério de Fernando Melo da Costa, transformando, com seus "achados cênicos", pessoas em "caixilhos de janelas" utilizados com o próprio corpo (dos atores), para utilização dos "janeleiros" de província.

     São três histórias narradas: a já citada "A Família e a Festa na Roça", na qual o sotaque lusitano do fazendeiro Domingos João, interpretado por Anderson Mello, traz em constante "temor" a sua família. Mas a astúcia, e o descaramento da mulher luso-brasileira, levam sempre a melhor. Assim temos a Quiteria, filha do fazendeiro, (Gabriela Rosas), levando o pai com o jeitinho que a brasileira aprendeu com a lusitana, que aprendeu com a moura... que aprendeu.... Principalmente a mulher carioca! Há o Pau D'Alho (Marcio Fonseca), que pelo apelido deve ter um cheiro insuportável. Ele é um dos prometidos da bela Quiteria, que se apavora só ao pensar em casar com ele e ficar longe do Juca, o Estudante de Medicina (Luiz André Alvim), dono do seu coração. E por aí vai. Essa passagem, em particular, parece um "acertar de contas" como em Shakespeare ou Molière, com os seus "tudo está bem quando acaba bem". Aliás, não há descontentes, nestas histórias de Martins Pena.

     Os atores não lhe ficam atrás. Seria redundante falar sobre o desempenho de Paulo Hamilton, já nosso conhecido de "Beatriz", mas a sua interpretação de Dona Angelica, a Curandeira, é de uma desfaçatez contaminante, conseguindo a adesão do público. Aliás, nestas três peças há lugar para todos. Grande sabedoria do autor, que não perde uma de suas personagens, todas tendo o seu grande momento de atuação. O ambicioso Caixeiro Manuel, de Hamilton, em "O Caixeiro da Taverna", ou a viúva Pereira, de Ana Paulo Secco, ou ainda o sargento Quintino (Leandro Castilho), que resfolega qual cão raivoso sempre que os pretendentes de sua irmã Deolinda (Gabriela Rosas), se aproximam. É tudo muito divertido.      
       
     Não sabemos qual das três historias é mais alegre, mas descarada. O "Judas em Sábado de Aleluia" traz a namoradeira Maricota (outra boa interpretação de Ana Paulo Secco, mostrando a sua veia cômica), em conflito com a boa Chiquinha, interpretada com acerto por Gabriela Rosas. O elenco é tão bom que a crítica não consegue encontrar uma falha! Momentos assim deviam fazer as pessoas compartilharem o teatro como uma extensão de suas vidas. O que ocorreu, naquele último dia da apresentação de "O Pena Carioca" no Teatro Poeira, é uma afirmativa do que se está colocando em questão: o teatro está mais vivo do que nunca, e aquela platéia lotada de jovens e não tão jovens, em busca do grande momento teatral - não saíram decepcionados. Teatro e alegria singela estão de mãos dadas neste espetáculo - mas sem esquecer a crítica mordaz à natureza falível dos homens - dos humanos - no que se refere à honestidade e aos padrões estabelecidos pela sociedade. O texto é uma tentativa de Martins Pena de colocar a nu a verdadeira alma do brasileiro. E o consegue, melhor ainda do que a "reverente" encenação dos franceses em relação ao seu "Molière"...

                          Na ficha técnica temos a iluminação de Aurelio de Simoni e os figurinos de Antonio 
                          Guedes - ambos muito bem resolvidos. A programação Visual é de Mauricio Grecco e a                             assistência de direção de Tiago Herz. Assessoria de Imprensa: Miniemeyer. Fotos: Paula                             Kossatz. EIS UM AUTOR QUE DEVE SEMPRE SER LEMBRADO. NÃO  PERCAM

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

"PEQUENOS PODERES"


      Todo o mistério da cena inicial de "Pequenos Poderes", texto Diego Molina, direção Breno Sanches.
                                                                (Foto Maya Zalt)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     Não se enganem: a vida é um jogo de perde/ganha. E a visão que temos dela, nestes "Pequenos Poderes", pensados por Diego Molina, em colaboração com os atores da peça e seu diretor Breno Sanches, nos leva a ver com humor (uma das características da inteligência dos humanos), as armadilhas.

     No programa da peça há uma ilustração de um grupo de pessoas ameaçada por um "pezão" (sem referências...), alertando o público para o que virá depois. A programação visual, bastante divertida, é de  Ivi Spezani. Nada de interpretações místicas ou "transcendentais" em torno do "pezão", afinal, constatamos que ele não é o pé de Deus, e que os humanos são movidos por sentimentos e ações que eles não dominam!

     Mas o que mais nos encanta na encenação (além da ética como tema), é a total entrega com que os atores são conduzidos pelo diretor.  Além da facilidade aparente dada ao espetáculo, a dedicação dos atores transmite uma satisfação estética muito grande para quem os assiste.

     Voltamos a Spezani: para realizar a programação visual há um convidado, o cartunista Nani, que cria imagens para a abordagem dos cinco temas que compõe a peça. Aí surgem as tais "visões éticas" da  Lei, Religião e Poder... entre outras. 

     É tudo muito "simples", desde a maneira com que os atores mudam a cena. O calmo preparar da cena seguinte nos leva a reconhecer o acerto no timming do espetáculo. São muitos os detalhes com críticas inteligentes aos bancos, ao preconceito (esse verdadeiro vírus!), onde surge o "bullying" espezinhando o "diferente", os problemas com a lei... O ator Andy Gercker, que interpreta o personagem excluído, é de uma precisão total. Há ótimos atores em cena. Bia Guedes, que interpreta uma loura maluca, se transforma em diabólica e hilária "entrevistadora de televisão". Sabemos que esse tipo de interpretação está se tornando "chave" no teatro carioca, mas há um teste de virtuosismo em Bia Guedes. Percebe-se que há muito trabalho dos atores, e acerto na direção de Breno Sanches, sustentando o bom resultado de "Pequenos Poderes".

     Mariana Consoli interpreta a bancária "eficiente", levando o cliente/assaltante a ser o assaltado. Mas não antecipemos... Zé Mauro Travassos é outro dos quatro atores que se destaca, no papel do cliente. Consoli, mutante, se transforma ainda em uma sofisticada "madame", vitima de uma entrevistadora de televisão (Bia Guedes), para depois, em um passe de mágica, se transformar de acusada em acusadora. Muito a propósito, pois nos tempos que correm ninguém mais escapa de uma boa acusação!  

     Há, em cena, sutis mudanças de figurinos, dando dinamismo à ação. A "madame" de Consoli  se  transforma em uma advogada. Muitas "mudanças" (ontem madame, amanhã deputada?, ontem deputado, amanhã ministro?). São "frenéticas mudanças" como as que acontecem em nosso cotidiano político. Mas um ponto positivo do espetáculo é que ele não é didático, ou toma partido, somente expõe a confusão do país.    
  
     É um prazer inesperado assistir a "Pequenos Poderes". Trata-se de uma iniciativa independente e, por mais absurdo que isso possa parecer, uma declaração de amor à vida. São cinco quadros sobre assuntos tão atuais como difamação, roubo, as loucuras da Lei, e muitos outros. Diego Molina, o autor, estava em um momento inspirado ao conceber estes temas. Porém o espetáculo não se candidata a  ser juiz de nada, apenas tenta compreender o que está acontecendo no Brasil (e no mundo): as grandes mudanças de parâmetro começam assim. Para o bem ou para o mal. No caso do mal, "Pequenos Poderes" é um alerta para nossos erros, talvez o principal deles sendo o preconceito.  
  
   Agora vamos falar em espaço cênico, algo vital para um espetáculo. O da Casa da Gávea é adequado para o desenvolvimento de "Pequenos Poderes". Registramos que a classe teatral quase perdeu este espaço. O que se espera agora é que ele seja prestigiado. Aliás, as promoções organizadas pela classe são exitosas. Atualmente a Casa da Gávea oferece um bar, nos moldes do Bar Belmonte (ele é o novo patrocinador), onde podemos tomar um cafezinho, ou uma cerveja, a partir das 17h, e bater um papo. Depois desfrutar dos espetáculos. Há espaços semanais para leituras de peças, shows de poesia, debates, etc. Vale à pena conferir. 
     
     "Pequenos Poderes" estreou na Sede das Cias., outro espaço determinante para o exercício teatral. Importante: o espetáculo em cartaz na Casa da Gávea provoca uma reflexão sobre o impulso inicial que leva as pessoas a agirem. VALE À PENA ASSISTIR! É MUITO BOM VER BOM TEATRO. 

     OBS: A ficha técnica é um fator do bom andamento do espetáculo. Na iluminação, Ana Luzia de Simoni, com supervisão de Aurelio de Simoni. Os Figurinos e direção de arte são de Bruno Perlatto.   Cenografia, que se revela a mecânica do espetáculo, é criada por Diego Molina. A Trilha sonora é de Armando Babaioff, e Breno Sanches (um mix de aperfeiçoamento técnico). A locução em off é de Ronaldo Julio e os adereços foram criados por Tuca. Fotografia Maya Zalt. Assessoria de Imprensa Sheila Gomes.  


segunda-feira, 12 de outubro de 2015

"PUZZLE (D)"

                                "O Brasil é Bom", da cena de Felipe Hirsch, PUZZLE (D).
                                                         (Foto Christina Carvalho)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

      Sente-se, às vezes, "o borbulhar do gênio", em Hirsch, como diria  Castro Alves de sua própria lavra, observado por Mário Quintana, que constatou ser esse "um dos versos mais medíocres do condor baiano". Entretanto, não se pode negar que Filipe Hirsch, em sua seleção de textos para construir esse "Puzzle (D)", é bem original. O espetáculo, recentemente apresentado no Rio de Janeiro, no Tempo Festival,  surpreende pelo inusitado e pela variedade de temas. Nenhum deles otimista. Mas quem falou em otimismo, tratando-se de brasileiros, não é mesmo? De grandioso, mesmo, só o cenário, que vai se construindo/desconstruindo (como queriam os modernistas?), e sendo carregado por golpes de tinta, tal como queria Pollock em suas telas: ideia luminosa de Rafael Coutinho, artista convidado, e da Direção de Arte de Daniela Thomas e Felipe Tassara?
     Mas há o imperdoável, na seleção dos textos de Hirsch; é aquele em que o autor (tinha que ser André Sant'Anna) desconstrói o povo brasileiro. O texto? "O Brasil é Bom". Coisa de quem vê o povo brasileiro como cachorro vira lata. E dizem que tal espetáculo foi apresentado em Frankfurt. Com certeza não é o mesmo, apresentado no Festival do Rio de Janeiro, pois o espetáculo está em constante mudança, e em Frankfurt durou 7 horas, contra pouco mais de 1 hora no Brasil. O quebra cabeça desse Puzzle é composto de várias partes: A, B, C... nós só assistimos a parte "D" (de "desconstrução"), e suas improvisações, o "cachorro vira lata incluso".
     Voltando a Frankfurt (o espetáculo foi apresentado na Feira de Livros de lá, em 2013, quando o Brasil foi homenageado). Concordamos que "Puzzle (D)" foge aos clichês de "bunda, futebol e carnaval", tão chegado aos brasileiros... mas é impregnado de outros clichês com que batizam o Brasil da atualidade: a violência, a burrice... Temos certeza do que os alemães, assim como os americanos, franceses, ingleses, enfim, toda a "nata" da humanidade, jamais sairiam a público para rir das próprias mazelas. Ainda mais na Feira de Livros de Frankfurt! Agir assim como Hisrsch só faz alimentar estereótipos. A "nata" da Europa se acha viril, guerreira, inteligente e, apesar de serem povos com virtudes e defeitos, defendem as suas qualidades. No caso do alemães, por exemplo, o máximo que eles fazem, atualmente, para se redimir de seu complexo de culpa hitleriano é se "condoer", e pedir desculpas pelas loucuras de Hitler. Êta povinho com complexo de culpa! Resolveu, agora, receber todos os refugiados de uma guerra que nem é deles, provocada pelos malucos dos Estados Unidos... Dá para entender: eles querem mão de obra barata. O que está em jogo, agora, para eles, é receber novos escravos.
      Mas, se Felipe Hirsch quer chamar atenção (e quer, porque é um artista) o conseguiu. Afinal, seu teatro é para "épater les burgueois", e não só isso: é, principalmente, para pensar na loucura humana. Vamos dar uma olhada "positiva" no espetáculo, agora. Vamos lá: ele tem  fôlego, memória  e a interpretação de grandes atores que acreditam no espetáculo e emprestam o seu vigor ao que apresentam. Eles são Georgette Fadel, Isabel Teixeira, Danilo Grangheia, Guilherme Weber, Magali Biff,  Luna Martinelli, Javier Drolas, Luiz Paetow, Caio Blat...
      Espetáculo extremamente sofisticado, que nos faz lembrar a vanguarda do teatro europeu. Temos uma equipe régia,  com a composição e execução da trilha sonora (ao vivo, em piano e guitarra elétrica) feita por Arthur de Faria, em ritmo alucinante, e também, às vezes, soturnamente delicado. Houve redução do aparato musical, para a apresentação carioca, simplificaram a parte "D", ou criaram uma nova, com a  ideia de improvisação.
     Vejamos agora o complicado desempenho da literatura: o já citado complexo de vira-lata de autoria de André Sant'Anna. Como não poderia deixar de ser, Sant'Anna é identificável, e o seu "O Brasil é Bom" soa bastante preconceituoso, sendo contra as mudanças de padrão que o governo operário está tentando estabelecer no Brasil. Emprestar para o FMI é um verdadeiro achado que desmoraliza por completo e coloca a nu o roubo do "Fundo Monetário Internacional". Quase que o fundo acaba na desmoralização, com este empréstimo. Pena que a Kishner também não se tornou credora...! Agora eles estão querendo, novamente, cantar de galo, o FMI, querendo criar uma atmosfera surreal na política brasileira, dizendo "que o país está caindo de posição." Ora, ora! Quem eles pensam que são? E André não percebe. Mas dele também é o ponto alto do espetáculo, o texto "A Lei", com o soldado fardado (um genial Caio Blat), que horror! Meia platéia de atores burgueses deixa a sala...! E algo ainda  sobre "Sexo" (imaginamos que seja de André, já li cada coisa dele!): é o pronunciamento do ótimo Guilherme Weber, interpretando um "pastor" desenfreado. Conseguir localizar quem diz o texto de quem, neste espetáculo, é meio complicado, mas imaginamos que o texto (ótimo, dentro de sua proposta de tornar o sexo escatológico!), seja de Sant'Anna...
      (Sei que poucos críticos se arriscariam a esta adivinhação, a este verdadeiro jogo de cabra cega, feito de puzzles...)
     Prossigamos: já Bernardo Carvalho acha que seu texto "Amigos e Inimigos" foi tão transformado que já nem é dele, mas uma criação do coletivo de atores. Está certo. Não podemos dizer o mesmo de Verônica Stigger (de quem já fui fã), com o seu "No Teatro": pelo visto está na íntegra, pois é a cara da autora, essa entrada em cena de um tumultuado casal, cuja "forçada" companheira é uma espectadora que  detesta ir a teatro. Impactante.
     Mas impactante mesmo é "A Lei" (e volto a eles: Sant'Anna e Caio Blat), que faz alguns espectadores deixarem o teatro intempestivamente. O texto é hilário, por vezes, e repugnante, na maioria das vezes. And so it goes... "Ultraliricos", o novo grupo de Hirsch, que se quer ligado à literatura, já se chamou "Sutil Companhia de Teatro". Eles agora, como já deu  para notar, estão lendo trechos literários ditos em um só fôlego, por atores tão bons que ler literatura já faz parte da arte deles. E que literatura!
     Desculpem se não deu para citar todos os autores. Ficamos condoídos com o gelo no interior do Teatro Carlos Gomes, que nos fez perder a última parte (noblesse oblige, permanecer, mas eu poderia ter pego uma pneumonia!), na qual o excelente ator argentino Javier Drolas citava um trecho do chileno Roberto Bolaño, sobre a distância dos poetas e romancistas da Latino America, e seu olhar direto para os acontecimentos culturais de além mar. Nada mais normal, somos todos "crias" do Continente Europeu, precisamos, e estou de acordo com Hirsch - o paranaense Hirsch, discípulo de Leminski - precisamos abreviar essa distância, ou acabar com ela. Para Hirsch, "Puzzle" é como um Samurai, "provocador". Penso que sim. E, como diz a Hannah Arendt, "teatro é a arte mais política que há" - Pois não é? Pena que não há mais tempo de os cariocas assistirem a este espetáculo. Voltem sempre, "Ultralíricos".
Alguém da técnica:
Idealização e Direção Geral: Felipe Hirsch; Iluminação (sem ela, impossível viver), de Beto Bruel; Figurino (ótimos e usuais), Cristina Camargo; Visagismo: Emi Nagano; Diretora Assistente: Isabel Teixeira; Execução da Trilha Sonora: Gustavo Breier; Produção Musical: Arthur de Faria & Gustavo Breier; Critico Interno: Ruy Filho; Diretor de Palco: Nietzsche; Assessoria de Imprensa Rio: Marina Ivo.