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sábado, 10 de dezembro de 2016

"CEMITERIO DAS DELÍCIAS"

O trio de amigos do bem, da peça "Cemiterio das Delícias", textos de Arrabal.
Na foto, Yuri Faragi (Tope), Mitzi Evelyn (Fodere)
      e Rodrigo Candelot, (Emanu).
     Direção Delson Antunes  (Foto Fernanda Sabenca)

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     E eis que Arrabal retorna, com seus personagens que vivem entre o limite da bondade e da crueldade. Delson Antunes, o diretor do espetáculo, selecionou, com seu grupo de atores e a nova Cia. "Disparato", várias peças do poeta dramaturgo e deu-lhe o nome de "Cemitério das Delicias - Arrabal em cena" - (tradução de Wilson Coelho). A idéia, excelente, resultou em um espetáculo Barroco! As peças, ou melhor, os trechos das peças que foram selecionadas, Fando e Lis, Oração, Guernica, Cemiterio dos Automóveis, A Bicicleta do Condenado e O Jardim das Delicias são um painel muito elucidativo da obra deste poeta dramaturgo. Para quem não conhece Arrabal, torna-se um espetáculo de difícil penetração e, para quem o conhece, trata-se de um retorno acidentado!

     Faz sentido montar Arrabal nos tempos atuais. Principalmente em relação aos nossos percalços com a Cultura oficial, problemas esses que também atingem os menos favorecidos socialmente. São momentos incultos, os que vivemos, nos quais o sadismo e a bondade se confundem, deixando uma lacuna entre eles. Nesta peça é interessante notar que os personagens que melhor sintetizam o "estilo Arrabal" (ele não é ligado a nenhum "movimento", a nenhuma "escola"), sejam o de "Fando" e de "Emanu", ambos interpretados por Rodrigo Candelot: a maldade e a bondade levada a extremos.   

     Senão vejamos: "Fando e Lis" retrata a atrocidade, no melhor estilo Grand Guignol, unido à crueldade que Arrabal presenciou em sua infância. Fando é cruel e, em contrapartida, Lis é submissa. Por sua vez, Emanu (o representante do bem), é doce, terno e infantil. Ele quer ajudar aos necessitados, e vive um dos mais lindos - até esteticamente - momentos do espetáculo. Disse "esteticamente" porque "Cemiterio das Delicias" é um acumular de cenas, umas terríveis, outras belas - equilibrando-se no meio da confusão de um lixão.

     E aí aparece o cenário de José Dias ilustrando as intenções do diretor, e vivendo a força da sua criação como cenógrafo. Dias reuniu no palco o nosso mundo desfeito, suas máquinas obsoletas entregues à própria sorte. Um lixão. Esse é o nosso presente.

     Não sabemos como o público recebe tanta desgraça. Às vezes ela se torna tão absurda que leva ao riso. Mas não é somente o riso a proposta do espetáculo, ele nos  leva a pensar. Arrabal se considera um sensitivo. Alguns críticos afirmam que sua obra é "selvagem". Aliás, é com esse sentimento incontrolável que ele mantém o seu fascínio! Sim, Arrabal é fascinante!  

     Principalmente neste "Cemiterio das Delicias", onde o fascínio e o estranhamento imperam. Montar Arrabal, em uma época de crise como a nossa, faz sentido. Essa verdadeira "coletânea" de textos do autor espanhol, espetáculo encenado em fragmentos, reverbera a essência de um artista que teve a coragem de apontar os desmandos de uma Espanha fascista. Em tempo: Arrabal está vivo, com 84 anos e muita ironia. Depois das perseguições políticas em seu país, preferiu a França para viver e nela desenvolver o seu trabalho. 

     Já tivemos de Arrabal tantos sucessos. Os anos 70 foram coroados deles: Cemiterio de Automóveis, O Arquiteto e o Imperador da Assíria (só para citar os mais impactantes), revolucionaram a cena brasileira. Sim, faz sentido trazer Arrabal para o momento que vivemos. Estamos em "urgência", patinando sobre um futuro incerto e aterrador. O que esperamos desse nosso "Cemiterio das Delícias"? Sim, quem levantou este trabalho pensou em refletir sobre um teatro da crueldade, a desvalorização do humano. Do trabalho de Delson Antunes conhecemos o belo "Anjo Malaquias", carregado de poesia, sobre Mario Quintana. Estranhamente, o presente espetáculo também é carregado de poesia... Estamos em boas mãos.

     Vamos lá! São 12 atores que nos mostram a miséria humana em vários tons, alguns não tão miseráveis assim: percebemos que no episodio de "o monstro", que acaba em casamento feliz (existe?), há cenas da máxima ironia. Aliás, o espetáculo é alimentado pelo "processo criativo" dos atores, e muita ironia. A cena do casamento surge de um programa de televisão em que uma atriz (Ana Bugarim) é entrevistada. Essa cena dá uma respirada na "selvageria" de Arrabal, embora não seja menos assustadora: uma atriz (Bugarim, em excelente desempenho) - chamada "a bela" - dá uma entrevista para um animador de TV (Eduardo Knenaifes, em pequenas cenas, o que é uma pena, pois ele mostra ser muito talentoso). A atriz Lays Ariosi, também em pequenos papeis, interpreta a Fã da "bela". Os atores, em geral, apresentam um bom trabalho (há alguns que se destacam mais, devido à maior densidade de seus personagens).

     Neste "Cemiterio das Delícias", a Cia "Disparato" apresenta o "desnudamento da alma humana", dando lugar à desunião entre os infelizes! Há dois momentos no espetáculo quase insuportáveis de assistir. "Fando e Lis", sobre a crueldade (atenção: nada a ver como "teatro da crueldade" de Artaud, que é bem anterior e se rebelava contra a "pièce bien faite" de seu tempo). A crueldade, em Arrabal, é física, e atinge extremos, quando fala a respeito dos homens e de suas "emoções infantis em um mundo de adultos". As crianças também sabem ser cruéis... O outro lado da crueldade é a perseguição aos bons: Emau, interpretado por Rodrigo Candelot, representa a bondade levada a sua última dimensão. Candelot, neste espetáculo, carrega consigo, com muita propriedade e ótimo desempenho, dois personagens que são os responsáveis para a compreensão do que é o teatro de Arrabal: Emanu - o louvável -, e Fando, o temível, de "Fando e Lis", peça cuja crueldade é comparável às piores historias de horror. O sadismo sempre encontra o seu companheiro, o masoquismo. Na cena, exposta, a masoquista é a personagem de Lis, tendo a atriz Mitzi Evelyn um elogiável  desempenho. Evelyn é uma atriz de grande talento, revelando-se também ao interpretar o "mudo Fodere", do trio da "cena dos amigos".

     O "segundo amigo" dessa cena  é Tope (interpretado por Yuri Faragi, estreando já no segundo tempo do espetáculo...). Os três (e aí se inclui o Emanu de Candelot), se encontram para fazer o bem, ou seja, "tocar música para os pobres", o que é proibido pelo regime! Aliás, o "interdito" é a afirmação deste espetáculo, relembrando a Espanha fascista de Franco.  

      Enfim, temos ótimos atores em cena: Andrea Couto interpreta Lasca e Fídio; Henrique Pinho é Viloro, o homem que quer tocar um instrumento, que quer ser bom, e é preso. Nem é preciso dizer que "todos" os bons, "sempre" acabam mal, em um regime de força; e a bondade, no caso, tem obrigação de agir, mas nem sempre consegue... A atriz Luciana Albertin Malta interpreta o Condenado e Milharca; e  Graziela Bartelet, também atriz do espetáculo, interpreta Dila e o Condenado. Leonardo Paixão é Franchou, Zenon e Libé. Andrea Burle representa Tasla, o cão, e Toso.  

      "Cemiterio das Delicias" está fazendo o seu périplo teatral. Fomos alcançá-lo em reestréia no Teatro Café Pequeno. Nesta reestréia houve um pequeno problema de ritmo, que, imaginamos,  já deve ter sido sanado. PREPARE SEU CORAÇÃO. VALE À PENA ASSISTIR A ESSE  "CEMITERIO DAS DELICIAS"....!
FICHA TÉCNICA:
Assistência de Direção, Andreia Burle e Victor Losso; Direção de Movimento, Sueli Guerra; Direção de Produção, Leonardo Paiva; Produção Executiva: Mitzi Evelyn; Assistência de Produção: Ana Bugarim, Rodrigo Candelot e Samuel Belo; Figurinos, Joana Bueno (excelentes); Iluminação: Fernanda Mantovani; Trilha Sonora Original: Pedro Veríssimo e Fernando Aranha. .. E os já citados: Cenografia, José Dias; Direção, Delson Antunes; Textos, Fernando Arrabal; Tradução, Wilson Coelho. 



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