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segunda-feira, 26 de setembro de 2016

"ISADORA"

Daniel Dantas (Henry) e Melissa Vettore (Isadora) (Foto João Caldas)

Morte de Isadora. (Arquivo)
Roberto Alencar (Agustin), Melissa Vettore (Isadora) e Patricia Gasppar (Irma), em "Isadora",
dramaturgia, Vettore, direção Elias Andreato. (Foto João Caldas).  

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     .... E fomos ver "Isadora"! Uma peça sobre aquela mulher fascinante, independente, livre, revolucionaria. Movida à dança! Por que Melissa Vettore, dramaturga, produtora, atriz e bailarina do espetáculo, resolveu homenageá-la? Difícil tarefa! A dedicação à Isadora parece ser o trabalho da vida de Melissa, que foi muito bem assessorada pelo ótimo diretor que é Elias Andreato. Há, com certeza absoluta, neste espetáculo, uma cena antológica interpretada por Daniel Dantas (ator convidado) e Melissa Vettore: a cena do desnudamento do amor do editor (Henry, interessado em editar o 'Livro de Memórias' de Isadora), pela bailarina! Para mim, Dantas é o ator mais misterioso que existe, sempre uma mistura de Gabin, Auteuil e ennui!. (Desculpem, meus paradigmas são todos do teatro e cinema francês do  século XX ...dos anos 60, ou menos, veja-se Jean Gabin!). Mas, uma coisa continuo afirmando: esse ator, Dantas, sempre me impressiona pela fragilidade e ennui ("tristeza profunda"), que deixa transparecer em sua interpretação! E quem é, afinal, o editor que tanto mexe, racionalmente, com a tranqüilidade de Isadora? A historia é contada em dois tempos... e o editor aparece em um momento cruel do presente, em que a bailarina retoma o seu passado, para escrevê-lo. 

     Mas deixemos Dantas, e o personagem que interpreta, em paz. Seres estranhos na vida de Isadora Duncan não faltaram. A verdade é que a musa sentia amizade por seres maravilhosos, como, além desse editor, João do Rio, por exemplo. Dizem que a bailarina o queria como amiga, mas ficou intrigada (dizem) com o pouco entusiasmo que ele revelou ao ver seu corpo nu. Ao se interessar pela inclinação sexual de João, recebeu essa resposta do escritor carioca: "Eu sou um ser impuro". A resposta poderia ter sido dita por João do Rio, o episódio parece ser verdadeiro, mas nunca se saberá, pois  pertence ao mundo do mistério das artes cênicas, e isso é fascinante!

     "Isadora", a peça, pegou-nos de surpresa. Não há atores em cena, com exceção de Dantas e a irmã de Isadora, Irma, interpretada pela bailarina, cantora e atriz Patricia Gasppar. O irmão, Agustin, é a belíssima figura de bailarino de Roberto Alencar (cuja presença em cena valoriza o espetáculo). Roberto, além de interpretar Agustin, também participa em outras cenas,  fazendo pequenas intervenções.

     O espetáculo veio de São Paulo, e ficará poucos dias no SESC Ginástico, mas nos serviu como verdadeira "aula de direção" de Andreato, que conseguiu momentos inesquecíveis da frágil Melissa, interpretando a indescritível Isadora. Os melhores momentos de Vettore são quando ela dança, livre e solta, ao estilo Isadora, ou quando, em alguns momentos da discussão com o editor (Dantas), consegue uma carga dramática mais forte. Admira-se sua iniciativa, nesta bela homenagem a Isadora!

     Diz Isadora: " Eis o que estamos tentando fazer: reunir um poema, uma melodia e uma dança, de modo que não se escute a música, veja a dançarina ou ouça o poeta; mas se viva na cena e no pensamento o que eles estão expressando".

     Há vários aspectos positivos que poderiam nos levar a recomendar este espetáculo. Certamente, as projeções e o clima que passam, lembrando a escola de dança de Isadora, na União Soviética. Ou o momento dramático em  que a bailarina narra o suicídio de Serguei Esenin, seu poeta-amante! (na vida real, há o consolo de que eles já estavam separados). Outro aspecto positivo do espetáculo é a já comentada cena final, entre o editor e Isadora. E o texto. Sim, o texto! Ele é  repleto de citações e de poesia, como o Maiakovski, dito por Dantas, ou frases muito bem construídas, que levam ao momento vivido daqueles artistas! Sim, o texto, com trechos de Walt Whitman, Sergei Esenin, Maiakovski! Trata-se de um lindo e inteligente trabalho conjunto, feito por Andreato e Dantas, em cima da dramaturgia de Melissa Vettore.


     O Epílogo dessa bela homenagem é a morte de Isadora, em Nice, ainda em seus 50 anos fecundos. A morte, enrolada em sua vaporosa écharpe, é um final digno de sua vida envolta em véus. Uma bela e poética morte, a de Isadora, essa mulher que observou um dia (Isadora deixou vários escritos): "Sou uma crítica incansável da sociedade moderna, da cultura e da educação. Defensora dos direitos das mulheres, da revolução social e da concretização do espírito poético na vida cotidiana. Meu interesse é expressar uma nova forma de vida." (Ah, como eu gostaria de ter conhecido Isadora!) E, finalmente, a ficha técnica: Há música ao vivo, como não poderia deixar de ter, e a escolha da trilha sonora é do artista e musicista Jonatan Harold. Magnífico. A assistência de direção é de André Acioli; as palavras lindas e emocionadas de Renata Melo, diretora de movimento e preparadora corporal do espetáculo, dão vontade de conhecê-la, e participar de seu vôo! Preparação vocal de Edi Montecchi. Produção de vídeo: Marco Vettore. Divulgação no Rio, JSPontes. 
BELA INICIATIVA!   UM ESPETÁCULO DE TEATRO-DANÇA.   

sábado, 24 de setembro de 2016

"CHICA DA SILVA - O MUSICAL"

Vilma Melo interpretando "Chica da Silva - O Musical", produção Alexandre Lino, direção Gilberto Gawronski, texto, Renata Mizrahi (Foto de Janderson Pires)
Cena de "Chica da Silva - O Musical" (Foto de Janderson Pires).

                    IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de                         Teatro - AICT)
                       (Especial)

    "CHICA DA SILVA - O MUSICAL"
     Em cena, no Centro Cultural dos Correios, um musical diferente. Delicadeza, sutileza... e revolta!  Estes são os seus atributos. Dança aleatória? - nem pensar. Os gestos dos atores possuem significados intrínsecos, e potencializam conhecimentos ancestrais. Nada ali  é gratuito. Estamos falando de "Chica da Silva - O Musical", texto de Renata Mizrahi, direção, Gilberto Gawronski, produção de Alexandre Lino e Daniel Porto. A ideia é homenagear Zezé Motta, a nossa primeira Xica!

     A cena aberta é potencializada por música ao vivo (os músicos Di Lutgardes, Reginaldo Vargas, Victor Durante e Tássio Ramos são excelentes e participam, com sua atuação, no conjunto do espetáculo). Os atores entram, no batuque inicial, e se benzem diante de um altar, nele colocando as suas guias. A ação é acompanhada por um "canto velado" dos atores, como ondas batendo na praia, ao som dos atabaques: "Chica-da... Chica-da...".

     E começamos a  perceber o que se desenvolve na cena - a ação em três  tempos: o passado (a história do Tijuco, de Chica e João Fernandes); o plano do "vir a ser" - é quando a imaginação das duas escravas, Francisca Crioula e Chica da Silva, trabalha - e também tem o plano do presente. Os três planos, na dramaturgia de Renata Mizrahi, mostram o caminho da negritude até o momento de sua conscientização. Muito poética, a intervenção de Francisca Crioula (interpretada por Ana Paula Black), no tempo do sonho.  

     Sim, o texto de "Chica da Silva" levanta, poeticamente, o problema do "ser  negro" e, através da vida de uma mulher, nos faz caminhar pela historia da negritude. Estamos na presença de uma historia trágica, contada de maneira original: Renata Mizrahi criou, para essa Chica, um texto racional, que anda de mãos dadas com o lirismo. Caminho nada fácil, sustentando-se a partir de cada momento vivido.

     ... E vamos nos aprofundando, cada vez mais, no problema, até perceber a possível "tomada de consciência" de todas as Chicas, ao nos confrontarmos com Vilma Melo em sua forte interpretação da Chica moderna! Um belo e importante trabalho. A direção de Gilberto Gawronski levanta, com mão firme, o impasse, e faz dessa Chica, - interpretada pela excelente Vilma Melo - em seu primeiro protagonismo - a mulher negra que não abdica da compreensão de sua particularidade (enquanto etnia).

     O jogo que o diretor estabelece, entre a Chica do Tijuco - suspensa e dependente de João Fernandes, no tempo do passado, a Chica "sonhadora e irrefletida" que convive com seus iguais no tempo do sonho e, no plano do presente, a negra moderna,as três personagens interpretadas com arrebatamento por Vilma Melo.

     Interessante observar, nesta montagem de Chica, o forte impasse entre etnias, neste Brasil mulato. Somos, pelo lado dos portugueses, descendentes de "mouros", dos quais nos vem a raiz portuguesa e espanhola.Pois, talvez inconscientemente, neste trabalho os representantes dos "brancos" não são brancos, e o caminho que leva ao desempenho de Luciana Victor, por exemplo, como a mãe branca, é o tortuoso caminho dos brancos brasileiros. Até em seu figurino (de Karlla de Luca), a mãe do noivo é "espanhola", com seu traje vermelho e seu cabelo à sevilhana, fazendo uma leitura sociológica dessa raiz.

      Veremos que nem mãe, nem filho, na cena considerados brancos, realmente o são. Certo, pode ser uma "licença poética", mas a cena, delicada, não se oculta, e é vencida pela luta inglória. Os atores são belos exemplares de brasileiros, mas, como nós não somos um país de brancos, Tom Pires (o filho), acaba nos trazendo uma simpática composição do "noivo branco", sem o ser... O mesmo acontece com João Fernandes, um bom português mestiço, interpretado por Antonio Carlos Feio. 

     Escrever sobre "Chica da Silva" é complicado.  Zezé Motta e André Paes Leme deram a largada para o texto (o trabalho inicial dos atores foi de Zezé), e dar continuidade a esse trabalho ficou por conta de Mizrhai e Gawronski. "Chica da Silva - O Musical" nos apresenta uma intérprete magnífica e as músicas foram compostas para o momento, por Alexandre Elias. Elas são marcantes. E há, também, as músicas tradicionais, fazendo homenagem a Zezé, como a "Xica" do Jorge Bem, e algumas de Luiz Melodia! Destaque para a interpretação de Vilma Melo, e o seu cantar.

     O cenário lembra, na forma, as criações de Beatriz Milhazes. Uma  geometria de círculos suspensos no espaço, fabricados com a palha que leva à arte primitiva, incorporando altares. Aliás, a iluminação de Renato Machado, em conjunto com a criação de Karlla de Luca, dá ao palco um clima de fé, oferendas e de súplicas... E o elenco, ao fundo, acompanha a cena das oferendas, dando, com sua dança, o ritmo da cerimônia. 

      Outros aspectos do espetáculo, que não podem ser esquecidos, são a preparação vocal de Ananda Torres e a direção de movimento de Carlos Muttalla. Complementando a ação, há frases que acentuam o aspecto emblemático que a envolve: "Todas as cores são minha pele", em uma alusão ao preto, que também é a mistura de todas as cores... ou, "Sempre é uma palavra transgressora", frase essa que une a esperança à descrença. Essa frase é enfaticamente repetida por João Fernandes (Antonio Carlos Feio), em sua correta interpretação. É UMA EXPERIÊNCIA INTERESSANTE ASSISTIR A "CHICA DA SILVA - O MUSICAL". 
NÃO PERCAM !!!!!         









sexta-feira, 2 de setembro de 2016

"LAURA"


A chegada do "viajante-pesquisador", em  "Laura", atuação, pesquisa e produção,
Fabrício Moser. (Foto Ricardo Martins). 

O ator Fabrício Moser contando o início de seu périplo, quando pede permissão
para a mãe (no foco), para contar a historia da vó Laura.
 (Foto Ricardo Martins)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
    
     Querido arista Fabrício Moser, que inventou o espetáculo-performance "Laura". Fabrício é um artista pesquisador que ouve seu coração. Mas, se a certeza do acerto só se afirma com o olhar do "Outro", o artista pode dirigir o seu olhar a todos os públicos, e, em especial, aos pesquisadores de profissão. Respiramos a seiva rara de um pesquisador em campo. Sim, o trabalho de Fabrício é um bom exemplo, ao vivo, de como se organiza uma pesquisa.

     Fabrício partiu de uma curiosidade que perseguia sua infância: "Quem foi vó Laura?" O que aconteceu, realmente, com ela? Vó Laura sempre esteve presente em sua imaginação, seu nome era evitado na família, e o desfecho de sua morte, um mistério. Tal fato aguça a curiosidade do menino e, uma vez adulto, coloca-se a campo, disposto a realizar a pesquisa sobre Laura.

     As duas perguntas: "quem foi?"  e "o que aconteceu?" neste episódio, nortearam o caminho do pesquisador. Há vários fatores de encantamento, para o público, e, o  mais interessante, talvez, seja o desvendar, junto ao autor, como se desenvolveu a sua procura. Mas o espetáculo não se resume a um assunto só, quem o assistir saberá.

     Estamos em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, Cruz Alta, povoado de acentuada influência alemã e italiana. Foi nesta cidade que nasceu Érico Veríssimo... porém, isso não interfere na morte romanesca de vó Laura, pois Fabrício não explora o lado literário do acontecimento.

     Quando tomamos conhecimento do local onde se deu a tragédia,  percebemos que tal ligação não será feita - apesar do avô "gauderio" de Fabrício, casado com Laura, ser um personagem recorrente no cenário gaúcho. Foi graças a seu "espírito gauderio", de percorrer os pampas, "sem Deus nem Lei", que despertou a paixão de vó Laura. Não, Fabrício não explora esse aspecto. Muito interessante, esse avô gaudério... porém o mesmo não se pode dizer das músicas que são lembradas, em acordeon e canto, músicas de uma rusticidade sem arte... típica dos bailes dos centros de tradição gaúcha! Enfim... o único perigo que o autor/ator/pesquisador corre é atrair um público que admira tradições gaúchas, e não propriamente teatro.  

     E por ser vida real, ficamos cada vez mais intrigados com a maneira pela qual Fabrício "estende" a sua historia, no sentido de sempre encontrar uma nova saída para os acontecimentos. Continua pesquisando com o público? Há sempre um novo acontecimento a ser somado, uma nova pesquisa? Não há regras para a imaginação.  

     O ritmo do espetáculo nunca é o mesmo, às vezes surgem "interferências" não desejadas, pois "Laura" depende de "intrincada" produção eletrônica - um de seus pontos positivos - mas que também podem se tornar uma armadilha. Constatamos que o autor/produtor Fabrício transforma-se, então, em um "one man show eletrônico". Eis um tour de force elogiável.   

     "Laura" vem de um circuito alentador, ela já esteve presente no teatro Parque das Ruínas, em Santa Teresa, e também a encontramos no belo espaço do Castelinho do Flamengo. Esse espaço cênico tem virtudes  insuspeitadas: Do alto das torres daquela estranha construção "art-nouveau", Fabrício pensou em uma cena insólita, na qual convivem tempos e falas os mais diversos - e onde, inclusive, se dança uma rancheira com o público... Trata-se de um "baile essencial" para o desenrolar da trama. Mas o público não sabe disso... (ou não devia saber, agora já sabe, com a critica!)

     São várias, as cenas: ora estamos em Cruz Alta, na rua em que se deu o acontecimento insólito; ora assistimos a projeção de um vídeo, uma entrevista, um personagem novo. Fabrício nos leva ao interior das casas, onde pessoas são entrevistadas para a pesquisa, e há sempre uma nova construção cênica a nos surpreender. 

     A performance, contando a historia trágica de vó Laura, terá vida longa, devido ao cuidadoso trabalho de elaboração da mesma. Com "pesquisa detalhada e olhar carinhoso", as múltiplas presenças de vó Laura, construídas por seu neto, dão um aspecto inquietante e revelador ao que estamos assistindo. E é, também, às vezes, divertido! Sim, "Laura" pode ser "tempo e espaço", flutuando na lembrança de quem a ama! E quem melhor do que seu neto? 

     Produção, roteiro, direção, autoria e interpretação: Fabrício Moser, ex-aluno da Uni Rio, que veio de longe - do Mato Grosso do Sul - para encantar o Rio de Janeiro com as suas historias  de  raízes gaúchas. O Rio comporta este cenário nacional. Segundo fomos informados, o próximo pouso da vó Laura será o Teatro Sérgio Porto.  NÃO PERCAM!