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terça-feira, 8 de novembro de 2011

"TRILOGIA CARIOCA"

Lee Taylor

TEATRO
CRITICA






- AICT)
o IDA VICECRITICA  DE  TEATRO

IDA  VICENZIA 

(da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT) 

(Especial)

TRILOGIA  CARIOCA
Antunes Filho e o CPT/SP

O Grupo Macunaíma, do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), Sesc São Paulo, apresentou-se no Rio de Janeiro com a Trilogia Carioca: composta por 'Policarpo Quaresma', 'Foi Carmen' e 'Lamartine Babo'. Antunes Filho não esteve conosco, mas foi representado por cerca de 30 atores do grupo, e alguns membros da equipe técnica. Tudo aconteceu entre os dias 7 e 30 de outubro. Quem não viu, perdeu. Tentaremos recuperar o que aconteceu.
     O espetáculo que abriu a Trilogia, 'Policarpo Quaresma', é uma reconhecida homenagem ao talento do escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (com este nome parece um nobre português, mas era um pobre filho de escrava com português, vivendo as consequências de tal nascimento, sem a sorte de Machado de Assis). Os três espetáculos mostraram ser inesperadas leituras de nossa situação como Nação, pois é de política que vamos tratar.
     Principalmente em 'Policarpo Quaresma', no qual Antunes Filho enfatiza a leitura crítica dos acontecimentos desde a, digamos assim, "expulsão" de D. Pedro II por seu amigo pessoal, Deodoro da Fonseca, que depois quase morreu de remorso. Isso Antunes não conta, mas deixa no ar a sandice humana e a sua representação, com todos aqueles generais e civis que se estabeleceram com a assim chamada 'Res Pública', que de 'pública' não tinha nada, era só negociata mesmo. Desculpem o arrebatamento, mas é o que se depreende dos escritos de Lima Barreto. Mas vamos com calma, o diretor/poeta assim ensina, e vai mostrando, através do "visível" (cenas inesquecíveis dos embates de Policarpo com a realidade), e do invisível, este por conta da poética do diretor e da nossa imaginação, os acontecimentos da época.    
     Indescritíveis, mas verdadeiros. Antunes parece apreciar o mistério, e este se estabelece com o romantismo/simbolismo de Lima Barreto, apresentando a doce Ismênia, a virgem que morre de amor, em uma cena romântica que Antunes reproduz, conduzindo o público ao pré-modernismo (e à solidão) de Policarpo Quaresma. Explico: Lima Barreto viveu essa passagem da literatura, e "Quando Ismênia enlouqueceu..." o simbolismo de sua respiração contida abriu espaço para a mais aterradora solidão. Destaque para a interpretação de Natalie Pascoal. É um tempo em que se morria de amor. A rápida, mas eloquente, sequência da mascarada após o romântico enterro de Ismênia, mostra ao público algo desafiador: deboche? loucura? É a única quebra na fluidez do espetáculo, não sabemos se ocasionada por alguma passagem ainda por trabalhar.
     Admito não ser fácil pensar o processo de criação de Antunes Filho, desde o primeiro gesto, em 'Policarpo Quaresma', quando personagens histriônicos estendem um trilho branco sobre o palco e começam, através de gestos, a contar a história. Percebemos, na adaptação do romance, sempre um fio, ou um gesto, arrematando os acontecimentos. Trata-se de uma sofisticada tessitura.
Na cena entre o funcionário Policarpo, o "major", e o marechal Floriano Peixoto, constatamos a coragem de Lima Barreto ao se reportar, no início do século XX (o livro saiu em 1915), a acontecimentos tão próximos a ele. Sim, era ficção mas, como sabemos, o autor narrou, de maneira explícita, coisas da jovem República. O encontro entre os dois personagens escancara o caráter perverso do marechal (Marcos de Andrade) e a integridade de Quaresma (Lee Taylor). Essa cena, traduzida por Antunes Filho, é uma das grandes narrativas teatrais de nossa época.
     No início do espetáculo assistimos, deliciados, ao embate do herói com as raízes tupi de nossa gente e, na sequência, constatamos que a excentricidade habita os justos e tememos por eles, pois são os justos que acabam, sempre, pagando a conta. Da encenação nos ficou ainda a memória de Olga, a afilhada de Policarpo, possuidora de consciência política (Priscila Gontijo); de Adelaide, a irmã devotada de Quaresma (Angélica Colombo); e de Anastácio, o ex-escravo (Geraldo Mário). Há o violeiro Ricardo Coração dos Outros (André de Araújo) e, principalmente, Policarpo Quaresma, interpretado por Lee Taylor, ator surpreendente que completa o texto com o olhar. Elenco inspirado. Aliás, percebe-se que os atores também inspiram Antunes Filho, estabelecendo um caminho de mão dupla. E não podemos esquecer o já famoso sapateado de Taylor, quando Policarpo tenta eliminar as saúvas do seu sítio Sossego. Há mais, muito mais, além das saúvas, rondando este trágico e ingênuo patriota.
     Impossível deixar de observar a força do elenco, o que comprova o vigor do Grupo Macunaíma e do CPT. Há atrizes deslumbrantes, pela beleza e talento, e atores expressivos que colaboram com uma entrega entusiasmada para o resultado final. Quem não viu o espetáculo e ainda não leu 'O Triste Fim de Policarpo Quaresma', por favor, o faça. Fica-nos a turbulenta passagem do século XIX para o século XX, e a Trilogia continua, com 'Foi Carmen', concebido por Antunes Filho como um poema e uma denúncia a respeito do olhar estrangeiro sobre nós. A visão crítica do diretor continua. Critica, poesia e mistério são os seus elementos.
     O que representou Carmen Miranda, realmente? O 'mistério' se estabelece com a estranha presença de uma Carmen sem rosto (Emilie Sugai), e a forte proposta de seus movimentos. O malandro carioca a tudo observa, com seus olhos atônitos (Lee Taylor). Há também a instalação/cenário de J.C.Serroni, no qual turbantes, sandálias, bananas, pulseiras, colares, caixas e infinitos adereços levantam questões e estabelecem a estética do espetáculo. 'Foi Carmen' vive também da trilha sonora de Raul Teixeira. A única certeza que nos fica é a atualização da artista, envolvendo os passos da menininha (Mariah Teixeira), e da desinibida passista, interpretada por Patrícia Carvalho. Mas a interrogação permanece.

A seguir, 'Lamartine Babo', texto, corpo e voz de Antunes Filho e sua capacidade de despertar em seus atores os mais variados talentos. Dessa vez a direção é de Emerson Danesi, e a direção musical de Fernanda Maia. Os figurinos (do início do século XX) e adereços são de Rosângela Ribeiro. Há precisão no tratamento dos detalhes.
     O espetáculo se desenvolve em cena única, em um galpão de ensaio, com os atores formando um conjunto musical, cantando as músicas de Babo e tocando instrumentos. Ele nos traz algumas surpresas, a principal delas é perceber que Lamartine Babo, tão pouco conhecido dos brasileiros (sabemos apenas de suas marchinhas de carnaval), nos remete à linguagem universal de Cole Porter. Sim, algumas de suas marchinhas podem ser comparadas, pelo seu charme, às composições do americano. Querem ver?
"A vitória vai ser tua, tua, tua, moreninha prosa/ Lá no céu a própria lua, lua, lua, não é mais formosa... (etc)/ o inglês diz yes, my baby/o alemão diz ya, coração,/ o argentino, ao te ver tão bonita, toca um tango e só diz "milonguita"/ e o chinês diz que diz, mas não diz..." (e por aí vai). Eles foram contemporâneos e a singeleza de Lamartine lembra "You're to Top/ you're the Colosseum/you're the top/you're the Louvre Museum/". Claro, as referências de Porter são as de um mundo mais sofisticado, e suas músicas são mais elaboradas, mas o espírito de algumas composições é o mesmo, brincalhão e apaixonado.
     Sei que me assemelho ao misterioso Silveirinha (novamente o ótimo Marcos de Andrade), o personagem apaixonado por Lamartine Babo. Mas, neste verdadeiro "ensaio em cena", que é o espetáculo em homenagem ao compositor carioca, surpreende a afinação do elenco (e, às vezes, a desafinação proposital). Resumindo: 'Lamartine Babo' é peça ágil, elegante, e também uma brincadeira misteriosa: quem é, verdadeiramente, Silveirinha? Uma reencarnação de Lamartine Babo? E sua afilhada de voz magnífica? Posso acrescentar que os atores seguem o refinamento do início do século XX, mimetizando expressões levemente aportuguesadas e a delicada maneira de falar de nossos irmãos d'além mar.