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sexta-feira, 19 de agosto de 2016

"O CORPO DA MULHER COMO CAMPO DE BATALHA"

Ester Jablonski e Fernanda Nobre na cena final de "O Corpo da Mulher  Como Campo de Batalha",
peça de Matéi Visniec, com direção Fernando Philbert.
(Foto Nil Caniné) 


                    IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

"O CORPO DA MULHER COMO CAMPO DE BATALHA"

     Em cartaz no Teatro Poeira, temos novamente Matei Visniec.  Vimos, no Poeirinha, "2 X Matéi", em que Godot, o personagem extraído de Beckett, reclama, contestando a escolha do autor ao não colocá-lo em cena: "em Shakespeare até os fantasmas aparecem!"  O argumento, e a encenação, eram tão loucas e tão divertidas (com Guida Vianna e Gilberto Gawronski), que nos conduzia ao teatro do absurdo. Dessa vez, não! Em "O Corpo da Mulher como Campo de Batalha", o romeno Matéi Visniec  surge com um argumento devastador, que nos leva além do palco, jogando-nos na realidade da vida.  A tradução de Alexandre David nos ajuda a entender a "dança das palavras", de Visniec.

     E, na verdade, essa "dança" é arrepiante, colocando a nu a bestialidade da guerra. Os combatentes, desde tempos imemoriais, estupram as mulheres dos guerreiros vencidos... para humilhá-los! As mulheres são o complemento do 'campo de batalha'.       

     E essa barbárie continua, mais viva do que nunca. Em seu texto, Visniec coloca duas mulheres, duas vítimas de seu sexo, lutando para conseguir entre si um mútuo entendimento. Elas  são vitimas do mesmo horror, mas, a um primeiro olhar, pensamos ser a jovem bósnia Dorra (interpretada com intensidade por Fernanda Nobre), a única vítima dessa crueldade, pois sofreu as conseqüências da guerra.

     Ledo engano, o olhar de Visniec busca uma maneira de colocar as duas mulheres em um patamar de ultraje e violência, que as torna igualmente fragilizadas, e estabelece uma  situação de desconforto entre elas.  A  jovem bósnia não aceita a norte-americana e sua civilização. Esta, por sua vez, "só  quer ajudar", e tenta entender a psique da mulher que foi agredida em seu mais íntimo, e que engravidou, em consequência do estupro! (Visniec não esquece nenhum detalhe do que ele chama de seu "teatro engajado").

     Ester Jablonski entrega-se ao personagem Kate. A psicoterapeuta Kate (que talvez seja o personagem da vida dessa atriz, terapeuta que é), sente-se cansada da luta sem tréguas, cansada de  enterrar os mortos e querer enfrentar os males do mundo. Jablonski nos dá um desempenho forte e enternecedor, transmitindo ao seu personagem grande empatia. 
     Mas Kate não é culpada de algo que não ajudou a criar. Sente-se culpada, e se engaja como "voluntária", para ajudar. É aí que se coloca o grande dramaturgo, que trafega em questões-limite entre o bem e o mal. E o diretor, Fernando Philbert, consegue equilibrar o furacão que a peça desencadeia. Seu olhar sensível permite às atrizes se entregarem ao tema cruel, sem caírem no excesso de emoção. Também a direção de movimento de Marina Salomon se faz sentir, nas diversas manifestações de controle da emoção física das atrizes. O  fator "equilíbrio" sustenta a ação, e o resultado é um espetáculo enxuto, contundente e, ao mesmo tempo, poético!

     O romeno Visniec, com a mesma desenvoltura com que se diverte com os autores ocidentais,  Beckett, Garcia Marques, ou Oscar Wilde, mergulha em seu teatro engajado que quer desvendar a Utopia, e seus enganos. Ainda há muito a ser desvendado, desse autor...
     Na ficha técnica temos a cenografia de Natalia Lana, que transmite ao palco do Poeira uma impressão de infinito. Há um jogo de espelhos dividindo os tempos. Os figurinos, simples, também trazem a sua assinatura. A iluminação é de Vilmar Olós. O artista consegue dar uma sensação de solidão, com a sua luz às vezes fria!  A música (original) é de Tato Taborda. Fotos de Nil Caniné; Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco. É BOM VER BOM TEATRO!                  

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

"VAIDADES E TOLICES"

"Vaidades e Tolices" - uma compilação dos contos de Tchecov "O Urso" e "Pedido de Casamento".
Direção Sidnei Cruz. (Foto Guga Melgar)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de teatro - AICT)
(Especial)

"VAIDADES  E  TOLICES"

     Comemorando os seus 25 anos de encenações, a 'Cia. Limite 151' festejou, no primeiro semestre de 2016, levando a cena Anton Tchecov e suas peças curtas: "O Urso" e "Pedido de Casamento". O apelo ingênuo e bem humorado destas duas peças alegra os corações. Com inspirada direção de Sidnei Cruz, os atores Edmundo Lippi, Flavia Fafiães, Isabella Dionísio, Marcello Escorel e Rafael Canedo levaram ao público os deliciosos momentos de delicadeza, malícia e inteligência do texto do dramaturgo russo.

     Muito boa a encenação de Sidnei Cruz, ao fazer o entrecruzar das historias de dois casais, em seus instantes de "enamoramento". É bom poder rir com os encontros e desencontros dos casais formados por Natalia Stepanovna (Dionísio) e Ivan Lomov (Canedo), em "Pedido de Casamento" - mais ingênua e recorrente -, e assistir a grande brincadeira que é "O Urso", sucesso certo para quem a interpreta - sendo maior ainda com  Marcello Escorel jogando com o mulherengo, brutal e apaixonado Grigóri Smirnov, seguido, na sequência, por uma não menos inspirada viúva, Eliena Popova, interpretada com detalhe, malicia e precisão por Fafiães.    
  
     A "Limite" especializou-se em nos brindar com um teatro de repertorio dos clássicos, e é graças a ela que podemos assistir a um simpático Molière, ou as aventuras e desventuras dos personagens de Ariano Suassuna. Seja bem-vinda, 'Limite 151'!

     Seu produtor e ator, Edmundo Lippi, um incansável amante do teatro, atua fazendo a 'costura' dos dois espetáculos, ora interpretando o pai da jovem Natalia, ora o mordomo de Eliena Popova, sempre de maneira eficaz e correta.

     No complicado mecanismo de precisão, criado por Sidnei Cruz, os atores  contracenam com os objetos de cena, "desconstruindo-os", e se entrecruzam, em cenas rápidas, fazendo o contraponto com as historias que estão sendo contadas. É tudo muito rápido, e, segundo o diretor, procura acompanhar a "folia verbal" do autor. E acompanha. Mas não deixa de ser surpreendente, para quem está acostumado com um Tchecov introspectivo, e seus personagens da "burguesia decadente" russa.

     Neste sentido, Cruz extrapola. Essa nova versão de Tchecov, o "novo autor russo", nos trás um efervescente espetáculo, quando, por exemplo, o "Urso" Grigóri, ao perceber estar apaixonado pela viúva (Fafiães), nos oferece uma comicidade irresistível, interpretada com brilho por Marcello Escorel.

     As historias dos casais, na concepção de Cruz,  se entrecruzam, em um ritmo veloz. Esse ritmo, e as palavras do pai de Natalia (Edmundo Lippi), cheias de subterfúgios, remetem ao 'falar' tchecoviano dado às suas peças curtas, ao deixar em aberto o "isso e aquilo"... "e coisa e tal...", sem especificar o sentido.

     É muito bom ver um espetáculo em que ainda se conta uma historia (dinamizada pelos mais variados acontecimentos), e da qual se pode rir, com delicadeza, da sutileza do grande autor russo. Tchecov parece estar presente (e está!), piscando o olho para a platéia, diante das artimanhas de seus personagens. É um prazer participar desse Tchecov, envolvido com o olhar criativo de Sidnei Cruz.        


     Na ficha técnica temos, além dos já citados, cenário e figurinos (muito bons, ágeis, cheios de artimanhas, como o figurino da viúva...) - de Colmar Diniz. Música e Direção Musical: Wagner Campos. Iluminação de Rogerio Wiltgen; Produção Executiva: Valéria Meirelles; Direção de Produção Edmundo Lippi; Adereços, Elísio José e Fotos de Guga Melgar. ESPERAMOS MAIS 'LIMITE 151', NO PRÓXIMO SEMESTRE, COMEMORANDO O ANO DE SEU ANIVERSARIO!     

terça-feira, 16 de agosto de 2016

"BOA NOITE, PROFESSOR"

Nina Reis e Ricardo Kosovski em "Boa Noite, Professor",
texto e direção de Julia Stockler e Lionel Fischer.
(Foto Guga Melgar) 

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

"BOA NOITE, PROFESSOR"

     O espetáculo comemora os 65 anos do Teatro Tablado, e trás o retorno das peças adultas ao espaço. Texto e direção de Julia Stockler e Leonel Fischer.

     Podemos classificar "Boa Noite, Professor" como um representante fiel do teatro psicológico. Os dois personagens, interpretados por Nina Reis e Ricardo Kosovski, aluna e professor, buscam a verdade, devassando o que há de mais oculto em cada um de nós (em cada um deles). 

     Optamos por uma analise baseada no  padrão de comportamento dos personagens, e seu desenvolvimento emocional. Jogamos com o fascínio do Mal,  trazido pela psicopatia... e com o suspense... 'tempo' característico de "Boa Noite, Professor".  

     ... E quais são as características do Mal? A pergunta se coloca, buscando a compreensão do comportamento, ao mesmo tempo frágil e agressivo, do Professor. A psicopatia não vê o "Outro"; não possui empatia pela dor alheia; não ama; não reconhece a culpa. No caso do Professor, o processo se coloca em nuances, talvez sendo a mais forte o "não reconhecer a culpa".

     Como autora que sou, sei como funciona o "gatilho" para a criação. E percebo o "gatilho". Nesta peça, ele pode surgir, de maneira inesperada. Há frases, entre os personagens, que o sustentam. Há frases repetidas, algumas muito conhecidas no meio jornalístico, como: "Isso acontece... isso acontece, é normal..." - tal como a monótona repetição do Professor, no final da peça,  quando ele relembra, patético, como matou a mulher: "Ela pedia: aperta mais!... aperta mais..." Perfeito. Cena perfeita: somos culpados pela nossa queda. O Mal, sem a consciência de se estar praticando o mal. Há um jogo entre  vitima e algoz.  

     Mas divago... se essa crítica não se engana - e ela crê que não se engana - o embrião da visita da aluna, em "Boa Noite, Professor", o "gatilho" da peça, surgiu da visita desesperada de Ida Vicenzia, anos atrás, ao Tablado, querendo fazer "justiça". Repito: para quem escreve, tal acontecimento inesperado pode ser o "gatilho" para a criação. Essa cena aconteceu, em proporções menores, mas ficaram as marcas. Finalmente, depois de "Boa Noite, Professor", ficamos reconciliados com o passado, e podemos ver a 'humanidade' com novos olhos.  

     Na peça "Boa Noite, Professor", tudo acontece em uma noite qualquer. Eis que surge, na sala de trabalho do professor universitário, uma aluna. Ela quer "tirar algumas dúvidas". O professor gosta de fotografia, a aluna também... e os elementos do quebra-cabeça vão se juntado. O professor, em vias de se aposentar, não quer mais se lembrar do passado. A aluna traz o "suspense erótico" para o passado do diretor. Porém, ele se nega a ir ao encontro da armadilha... e a trama, bem urdida, se desenvolve! 

     A aluna mostra as fotos de sua mãe, em uma praia. Fotos tiradas pelo professor? O professor fica agitado e ordena que a aluna se retire de sua sala. A reação da aluna surge, em uma tentativa de sedução... (admirável o desempenho de Nina Reis, a sua maturidade artística). O professor não cede à sedução, mas há algo que o atormenta, e ele só repete, ad nauseam:  "Ela pedia: aperta mais!... aperta mais..."

     No teatro psicológico que se estabelece, a aluna leva o professor aos meandros ocultos de sua consciência. O que aconteceu naquela praia? O patético da cena final se afirma na confissão... e no silêncio que se segue. O professor repete, incansavelmente: "Ela pedia: aperta mais!... aperta mais..." a  repetição, exaustiva, da frase, seguida do silêncio. Ricardo Kosovski trás, para esta cena, a sua verdade de ator.

     Uma "arena no palco" (formação dada ao 'espaço cênico' do Tablado), dá oportunidade ao público de se aproximar do drama, e ser envolvido por ele. Há fortes interpretações, e a realidade transborda. A direção busca a entrega total dos atores, e é muito bem sucedida nesta busca. A ação, em suspense crescente, proporciona aos atores um "despojamento do oculto", e temos aí um verdadeiro encontro com o teatro!

     Na ficha técnica, a alegria de quem assiste teatro. "De Simoni", na luz.... "Tato Taborda" na trilha sonora. No cenário: "José Dias". Direção de Produção: "Fernando do Val".  ... Ana Carolina Lopes nos figurinos, Guga Melgar nas fotos... e o pessoal da casa, os montadores de luz: Anderson Peixoto, André Ensá e Gabriel Prieto; Luisa Marques na bilheteria. Há, no Tablado, um acolhimento "em família", algo que os teatros devem conservar... Há um ambiente teatral, e o público sente-se bem, naquele ambiente. ACONSELHA-SE VISITAR O TABLADO NESTE ANIVERSARIO DE 65 ANOS E ASSISTIR a competente direção de Leonel Fischer e Julia Stockler, neste "Boa Noite, Professor".