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terça-feira, 29 de julho de 2014

A MENINA ESQUELETO

Cenas de "A Menina Esqueleto", direção Mônica Alvarenga (fotos divulgação)

(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
A MENINA ESQUELETO

A Menina Esqueleto, direção de Mônica Alvarenga, recupera o olhar da diretora desvendando historias em países distantes. Em Vassalissa, a verdadeira historia da Cinderela, sua narrativa buscava cenários longínquos, e a fada boa que ajudava Vassalissa era uma matrioshka, a boneca russa que representa a mãe amiga.O que há no espetáculo de A Menina e o Esqueleto, é uma visita ao povo do gelo, este Ártico que  nos transmite um estranhamento misturado com surpresa.
Em jogo, a delicadeza amorosa, poética, e a constatação de que este povo do gelo, tão diferente de nós, abriga uma moral universal. Em linhas gerais, temos o encontro entre a vida e a morte, e a simbiose que tal encontro estabelece. Trata-se de uma historia simples. Ela começa no momento da chegada de um esquimó, remando em sua canoa e indo descansar em seu iglu. É quando a transformação acontece.
O início da cena está nas mãos de Lucina, (música da dupla Luli e Lucina), com seu domínio de percussão e voz, estabelecendo os sons do local, e de quem se aproxima. Enquanto isso, o jogo de luz e sombras de Alexandre Fávero (do Grupo Luma), narra o caminho do pescador e amplia o clima de estranhamento. A atenção do público está inteiramente voltada para estas duas linguagens: luz e sombra e percussão e voz. Não é a toa que este é um espetáculo de artes integradas. A mímica e a dança da menina esqueleto surgem quando a canoa e o esquimó se materializam em cena.
O conjunto é um trabalho sensível, de atores e corpo técnico. Há interação entre as linguagens. Os movimentos da "menina esqueleto" passam a nos revelar seus sentimentos, que vão se modificando a partir do contato com um ser vivo: o esquimó. É quando o jogo poético se estabelece, acontecendo um trabalho sutil de manipulação dos adereços. E damos como exemplo o coração do esquimó, que se incendeia, pulsando em vermelho, e saindo do peito. E há o seu acordar, sobressaltado. A bailarina e (ventríloqua!) que faz viver o esqueleto é de uma perfeição absoluta. Trata-se de Natasha Mesquita, do grupo de dança (Stacccato) do coreógrafo Paulo Caldas. Ela também coreografa o movimento dos atores. O esquimó, expressivo, temeroso e sonhador, representado por Gilvan Gomes, não lhe fica atrás. Sua formação é o clown.
Enfim, um espetáculo bem cuidado, com detalhes encantadores, como o daquele coração que pulsa, ou a "dança da vida", interpretada pela menina morta e seu esqueleto. A confecção da boneca esqueleto é de Marcio Newlands e o exercício de manipulação é desenvolvido por Marcio Nascimento. Os adereços são de Barbara Quadros e os figurinos, um acerto só, de Maíra Knox. Na iluminação o belo trabalho de Rogerio Emerson. Cenografia de Rostand Albuquerque.  
Muito interessante a sequência de objetos de cena que vão se impondo, com a iluminação algo onírica de Emerson. Damos como exemplo a chegada da canoa e sua transformação, e o surgimento do iglu. A historia que Mônica Alvarenga nos conta, e que é vista também pelo olhar "infanto-juvenil-adulto" da plateia, é sobre o viver de povos longínquos. Uma narrativa que se adapta belamente ao nosso imaginário, sedento por historias de fantasia, amor e humor. A diretora tem a oportunidade de desenvolver uma estética muito especial, sendo sua também a concepção e o texto cênico. Mônica Alvarenga, ao mesmo tempo em que nos revela a moral deste povo distante, nos fala de algo muito próximo a nós. Há, neste espetáculo, uma variação muito grande de possibilidades.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

LA BAYADÈRE



Gamzatti (Priscila Albuquerque) Mgadaveya, e Nikiya (Marcia Jacqueline) no ATO II - Nikiya tenta matar Gamzatti, movida pelo ciúme. (Foto apetecer.com)


Ida Vicenzia
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

La Bayadère, ballett romântico de Ludwig Minkus, criado em 1877, e levado à cena no Rio de Janeiro por ocasião dos 105 anos do Theatro Municipal.

No dia 14 de julho, dia da comemoração dos 105 anos do Theatro Muncipal, o povo da dança,  música e  Arte estava todo lá. E também o público amante das artes, o brasileiro, assistindo o que o ballet e a música têm de melhor para oferecer. Um longo caminho foi trilhado, e podemos agora contar com um público atento, organizado e satisfeito de estar ali, no templo da arte carioca.
O caminho da integração palco/platéia, sem exclusões (no dia 14 de julho a entrada era franca), foi feito com muito amor e dedicação pelos profissionais da arte. Agora, neste 105º aniversário, temos à frente do Theatro Municipal alguém de grande sensibilidade: Carla Camurati, a atriz presidente cuidando, passo a passo, desse belo momento.

Vamos nos deter em La Bayadère, o ballet das 20h, porém a programação dos 105 anos começou pela manhã, às 10h, com o Coral Infantil da UERJ; apresentando, às 11h, a Escola de Dança Maria Olenewa, do Theatro Municipal. Às 13h os solistas e coro do Theatro Municipal interpretando trechos da ópera de Mozart, As Bodas de Fígaro. Duas horas depois, às 15h, foi a vez da orquestra infantil das Comunidades Pacificadas, tendo em seu repertório gigantes como Beethoven, Dvorak, Tchaikovsky, Villa-Lobos, Meyer, Bernstein e Leopold Mozart. E às 20h, o Ballet de repertorio, La Bayadère, de Minkus, com acompanhamento da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, regida pelo maestro Tobias Volkmann.

A grande atração da noite foi a recriação de um Oriente que habita a nossa fantasia. No caso, a Índia, seu fausto e suas crenças. O enredo (folheto de Marius Petipa e Sergei Khudekov) imagina, do final do séc. XIX, acontecimentos perdidos no tempo, ilustrando, através de sua linguagem, sentimentos do ballet romântico, no qual o amor e a morte são protagonistas. Talvez o mais deslumbrante nesta montagem do Theatro Municipal sejam os cenários, os telões, e as trocas de cena. O cenário, figurinos e adereços são de confecção do Teatro Municipal de Santiago do Chile.

Na plateia muito especial daquela segunda feira, 14 de julho, havia pessoas que começaram a amar o ballet naquele instante, como é o caso de uma garotinha de 4 anos, apaixonada, se negando, no intervalo, a sair com a mãe, e dizendo, aflita: "não, mamãe, eles vão mostrar mais...". Esta menina nunca mais vai esquecer o que viu naquela noite. La Bayadère ganhou os palcos do mundo, desde que Ludwig Minkus e Marius Petipa fizeram a sua dupla famosa. Desta vez, no Municipal, a coreografia tem a inspiração de Luiz Ortigoza, a partir de Petipa. Esta encenação foi coreografada, no final dos anos 90, por Natalia Makarova, no Convent Garden, e o Grande Brâhmane foi interpretado por Anthony Dowell. Mas o impacto da montagem chileno/brasileira não ficou nada a dever à encenação russo/britânica, apesar da interpretação deslumbrante da inglesa Darcey Bussel como Gamzatti, na montagem londrina. Aliás, este personagem feminino é de grande impacto, sempre.

Cenários e figurinos do La Bayadère do Theatro Municipal do Rio de Janeiro são do chileno Pablo Nuñez. Tecidos e bordados magníficos compõem a cena. A suntuosidade hierárquica dos trajes do Rajá e do Grande Sacerdote contrasta com a leveza dos figurinos femininos. Guerreiros e Dançarinas do Templo estão bem definidos em seus papeis, o mesmo não se podendo dizer dos encarregados do fogo sagrado. Pelos seus gestos primitivos e sua nudez, podem ser interpretados como os párias dos hindus "a poeira debaixo dos pés de Brahma". Somente Magdaveya, o servo, não oferece esta ambiguidade. 

Os dois atos e cinco cenas apresentadas em La Bayadère nos trazem o retorno da mímica teatral, como é habitual nos grandes ballets de repertório. É o teatro se impondo. E a coreografia deste chileno argentino Luiz Ortigoza, acrescentando uma vibração dramática além dos passos de Petipa. Principalmente nas cenas finais, quando o romântico e o simbolismo se entrelaçam. As apaixonadas Nikyia e Gamzatti apresentam uma bem dosada mistura de amor e ódio. Karen Mesquita com Gamzatti, no ATO I, nos traz uma dança arrebatada, forte, carregada das pulsações do ciúme. Para os românticos a cena é irresistível. Renata Tubarão, como Nikiya, a bailarina escolhida do Grande Sacerdote, apresenta um solo precioso, no mesmo ATO I. 

O trabalho de bastidores com os solistas, realizado por Ana Botafogo e Cecília Kerche, é de grande precisão técnica e de expressão teatral, imposta pela mímica. Entre os personagens masculinos destaca-se um grande bailarino, Cícero Gomes. No ATO I ele representa Solor, o apaixonado, e no ATO II, faz a difícil apresentação do Ídolo de Ouro. O trabalho de Cícero Gomes é marcante, fazendo a platéia estremecer. Pela proporção e delicadeza de seu porte; pela expressão facial e dramaticidade que transmite em seu domínio de palco, nos faz pensar na presença de alguém que um dia se chamou Nijinsky. Impressionante. O Solor de Moacir Emanuel, no ATO II é mais contido, o mesmo não se podendo dizer para as duas personagens femininas. Com a mudança das cores os papeis se invertem, sendo agora o vermelho para Nikiya (Márcia Jacqueline), quando tenta matar Gamzatti, e o branco virginal, de noiva, para Gamzatti (Priscilla Albuquerque). Agora é a desesperada Nikiya que se entrega ao instante fatal da depressão e da morte. As cores, na visão romântica, são decisivas.

Nikiya voltará à cena no Reino das Sombras, em seu impecável tutu branco, onde o teatro/dança e o cenário simbolista acontecem. O corpo de baile do Theatro Municipal apresenta grande domínio e integração na cena das sombras. O grand finale começa com os sonhos "opiácios" de Solor e seu delírio com o Reino das Sombras, até a sua posterior traição a Nikiya. A destruição do templo pelos deuses irados, e a alma de Nikiya levando o seu guerreiro amado para a eternidade, encerram o ballet. O Theatro Municipal está de parabéns por mais esta iniciativa.