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terça-feira, 20 de agosto de 2013

"VERMELHO AMARGO"

                                                                      
Cena de "Vermelho Amargo", direção Diogo Liberano. (Foto de Anna Clara Carvalho)



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Um "Oratório" ou uma "Instalação"?

Bartolomeu Campos de Queirós era assim mesmo, um menino que gostava de contar histórias, alternar as falas e a estética das falas. Mas, a mais emocionante de todas elas, acaba de nos revelar em "Vermelho Amargo", uma visita à infância. Agora a sua história está no teatro Eva Herz, contada poeticamente nos fins de semana, lá naquela Cinelândia da Livraria Cultura, bem no coração da rua Senador Dantas. Bartolomeu adoraria a ideia.

     Primeiro vamos descobrir quem são estes atores Daniel Carvalho Faria e Davi de Carvalho, que convidaram Diogo Liberano (nosso conhecido dos belíssimos "Sinfonia Sonho" e "Maravilhoso"), para trabalhar um texto tão volátil, difícil de conduzir enquanto arte teatral. Sim, fala-se da morte, da recordação, das lembranças da infância que machucam e enternecem. Mas fala-se também da alegria de ser criança.

    Com Diogo Liberano na direção, e como ator - seu papel é ser uma espécie de "consciência guia" para os atores em cena. "Sigam-me!" - diz ele, insólito criador de surpresas. Mas insólito em que sentido?

     Explicamos: o espetáculo se divide em duas partes: a primeira pode ser considerada um "oratório da família", de uma vida narrada, de seus amores, desamores... Davi de Carvalho e Diogo Liberano nos contam essa história, como se um jogral fosse, cada um conta um pedaço, acompanhados pela música de Felipe Storino (trilha sonora) e o canto de Gabriela Geluda, em um compasso de música sacra. Do outro lado da cena, Daniel Carvalho Faria dá o contraponto sentimental, carregando em cores sombrias a infância revivida, repetindo o texto que lhe foi lançado. É nessa introspecção do ator, nessa sua verdade de criança, que Daniel consegue burilar o sentimento que Campos de Queirós quer transmitir.

    A segunda parte é mais lúdica: é o grande momento do insólito! A cenografia de Bia Junqueira se transforma, e o tapete vermelho do início é o que você quiser. A cenografia de Bia é uma verdadeira "instalação" de artes plásticas, dando ao espaço do teatro Eva Herz mobilidade e poesia. É neste espaço que o diretor brinca, atua e se diverte, divertindo também a plateia e os atores. O tapete vermelho do início, esse campo indefinido aonde se dá a narrativa heróica daquela infância quase epopeia (da fome, da sede, do desamparo) transforma-se em barco, vento, neve, abrigo, refúgio! Estamos na presença de uma instalação de artes plásticas, afinal!! Sim, naquela água/ neve eles mergulham, remam... viajam... e se transformam em pássaros, em anjos! A cena final é muito bonita, visualmente. E a iluminação de Daniela Sanchez brinca com os efeitos de cena. É quando a poesia se fortalece. Tudo com a colaboração de Vera Holtz (neste terreno também? Não sabia de sua veia poética. Há muito o que aprender entre os atores).

     Mas vamos ao espetáculo. Ele rememora quintais, comidas, brincadeiras de infância, um pai contrariado, uma mãe morta, uma madrasta econômica. Sonhos? Quase nenhum. Mas ninguém pode impedir a uma criança de ser feliz! (Talvez nem mesmo aos meninos dos romances de Charles Dickens se pode impedir a felicidade!) Queirós e seus irmãos - uma autobiografia poética - tinham a companhia de seus iguais: do pátio encantado, da roça, do interior mineiro... É aí que Campos de Queirós encanta (e desconfio que a mão de Holtz andou aí). A narrativa de Bartolomeu é fragmentada, impulsiva, desenfreada e bela. Quem a escuta, a segue.

     Os três atores, Daniel, Davi e Diogo (sim, Liberano também atua), narram com vivacidade e envolvimento a primeira parte. O que chamamos a "segunda parte", é quando o cenário de Bia Junqueira se desdobra, mostrando o seu poder de imaginação: tenda, barca, anjo, luar... passeios, brincadeiras, tudo se reflete naquele espaço/ pluma, espaço/ neve. É quando texto e ação se encontram, é quando o espetáculo atinge a sua plenitude. 

     Não se trata de um espetáculo fácil de assistir. Ele se dirige, muito especialmente, às almas que comungam - como o autor e seus criadores -  da beleza da língua, e da expressão poética. É uma festa. Bartolomeu Campos de Queirós, esse nosso companheiro nas contações de história, esse mineiro que amava o Rio de Janeiro deixa, neste espetáculo regido por Diogo Liberano, a sua melhor despedida. Sua alma simples e poética está toda ali, revelada. Ah! Esses poetas mineiros! Ah! essa Minas Gerais de tantos poetas! (deixemos seus horríveis políticos de lado!)

     Para quem não assistiu, ainda há tempo. Preparem-se para percorrer os labirintos da poesia na adaptação de Dominique Arantes e Diogo Liberano. Figurinos de Julia Marini. Direção de Movimento, Caroline Helena. Preparação Vocal, Verônica Machado. Realização: companhia aberta Travessia Produções.




sábado, 17 de agosto de 2013

"TALVEZ UMA HISTORIA DE AMOR"


Cynthia Reis e Eduardo Pires em "Talvez uma história de amor", direção Vinicius Arneiro. (foto Antonio Garcia).


CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Quase sempre os pressentimentos dão certo. Em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, "Talvez uma história de amor", de Rafael Gomes, adaptado do romance de Martin Page, é um "pressentimento" que deu certo. Em primeiro lugar, nem sempre é fácil fazer uma adaptação fiel de um romance, sem perder-lhe o rumo. Não conheço o original, mas, parece-nos, Gomes não perdeu. Conseguiu, e a interpretação dos dois atores, Cynthia Reis e Eduardo Pires se reveste (principalmente a de Cynthia), dos mais variados tons e dos mais variados textos.
     Um linguagem instigante, para Cynthia, a atriz se transforma em analista, em amiga, em amada, Amélia, enfim, apresentando uma descontinuidade em suas  apresentações, dando oportunidade, para quem a assiste, de conhecer uma atriz versátil. Mas não é só isso. Os dois atores trabalham com várias realidades, algumas delas têm a contribuição da música incidental de Tato Taborda. Os figurinos dos atores são os do cotidiano, casuais, adaptáveis, de Flávio Graff. Também é adaptável a sua cenografia onde, apenas com duas poltronas, uma mala e uma janela quebrada, o cenógrafo desenha todos os ambientes. Ah! E as taças, que surgem, como que por encanto, e armam cenas, destacadas por uma iluminação que as modifica. Um achado, do cenógrafo Graff e do iluminador Paulo Cesar Medeiros. E temos a interpretação precisa do angustiado Virgili, intervenção do ator Eduardo Pires, uma adaptação para a vida.
     As frases, extraídas do romance de Martin Page, são deliciosas. No contexto dado pelo adaptador Rafael Gomes (não conhecemos o original), elas se apresentam, como: "calma é a palavra mais preocupante do mundo", ou, "as marcas são as pirâmides de nossas vidas", ou ainda: necessita-se de "defesas imunológicas para se defender do amor". Os protagonistas, em seu vai-e-vem, vão apresentando "sintomas" que revelam curiosidade a respeito do "grande tumulto que é a vida".
     "Talvez uma história de amor..." se eleve à categoria de um texto contemporâneo, fazendo com que o espectador entre em contato com pequenos acontecimentos do cotidiano e com os "insights" do autor... "insights" esses que bem poderiam ser os seus, espectador! A plateia entra em uma identificação à primeira vista, reação bem encorajadora, para quem está no palco.
     Mas os personagens não acreditam em "amor à primeira vista", e nos propõe um "acidente com a realidade", o que, em outras palavras, consiste em "Viver!" Vinicius Arneiro, que dirige o espetáculo, resolve muito bem esses impasses, tornando-os bem legíveis para a plateia. Conhecendo o trabalho de Vinicius desde "Cachorro!", um espetáculo por ele dirigido e que poderia ser considerado uma "despudorada" homenagem a Nelson Rodrigues (parece que, no Brasil, nossos os diretores (e autores) de talento começam exercitando-se com o maior dramaturgo brasileiro). O texto de "Cachorro!" foi redigido por Jô Bilac, outro talento também descoberto na Escola de Teatro Martins Pena.
     Pelo que se pode concluir, trata-se de um espetáculo divertido... e real. Fala-se em amnésia, amores esquecidos, recados em secretárias eletrônicas (coisa tão obsoleta como o amor), e procuras... As coisas da vida acontecem assim mesmo, com pequenas gradações. Mas esse "medo de que a felicidade tenha dado certo" persegue os atores na cena... e a todos nós, na vida! Se tal acontece, o que faremos depois? Viver não é simplesmente ser feliz, angustiar-se também faz parte do pacote, e tem o seu encanto.
    A iluminação é de Paulo Cesar Medeiros. Como sempre, a iluminação é um marco na montagem de uma peça, e a sua dose, bem definida artisticamente, dá respiração à cena. Como sempre, Paulo Cesar consegue essa magia: estamos distraídos assistindo as cenas e acabamos estarrecidos com o surgimento dos objetos em destaque. No caso, são taças que ganham vida, iluminadas, pontuando o caminho dos amantes. Temos, assim, em Paulo Cesar Medeiros um grande iluminador. Dito isso, passemos aos atores:
     Cynthia Reis é, para mim, uma descoberta (e ela ainda usa aparelho nos dentes!). Possuidora de um rosto maleável (de borracha, como o de Fernanda Montenegro), às vezes transforma-se em uma bela mulher, às vezes em uma profissional cujo maior destaque é a inteligência, sem maiores atrativos físicos. Nas transformações da atriz percebe um talento especial. Quanto a Eduardo Pires, extremamente desafiado por sua companheira de cena, apresenta um desempenho carregado das dúvidas de seu personagem, ora transformando-se em um menino em busca de conselhos, ora em um ermitão solitário que não precisa dos conselhos de ninguém.
     E esse "talvez..." do título fica expresso no "vai e vem" dos sentimentos dos protagonistas. A grande façanha de ter descoberto do texto fica por conta de Pablo Sanábio, amigo e parceiro da dupla. Em boa hora surgiu esse moderno Martin Page, um autor que deixa entrever tal contemporaneidade, estimulando a curiosidade de ler o original, ou seja, o seu romance, editado pela Editions de L'Olivier, Paris, 2008. Aonde encontrá-lo?!!!Uau!
Trata-se de um espetáculo imperdível, para qualquer idade.
Preparação vocal, Isabel Schumann.
Assessoria de Imprensa: Minas de Ideias, Fábio Amaral e Carlos Gilberto.



terça-feira, 13 de agosto de 2013

"ÚLTIMOS REMORSOS ANTES DO ESQUECIMENTO"

Equipe de produção da "Sede das Cias"(foto divulgação)

Saulo Rodrigues e Letícia Isnard, em "Últimos remorsos antes do esquecimento" (foto Dalton Valério)

José Karini (ou será Remo Trajano?) e Cristina Flores (foto Dalton Valério)



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Eis que "Últimos remorsos antes do esquecimento", de Jean - Luc Lagarce, volta à cena, dessa vez na casa da escadaria Selarón, na Lapa, onde funciona a "Sede das Cias". É nesta sede que se reúnem três grupos: Os dezequilibrados; Pangeia Cia. Deteatro, e Cia. dos Atores, sob o patrocínio da Petrobrás. A "Sede" foi inaugurada em programa duplo com Lagarce e a"A Serpente", de Nelson Rodrigues, também dirigida por Ivan Sugahara. Este diretor possui uma maneira arrojada de encenar textos densos para apreciação e enriquecimento de um público jovem, sequioso de novidades culturais. Talvez esse público nem sempre entenda o recado do diretor, mas sabe valorizar a sua intenção. Uma prova disso é a participação maciça de jovens, nas peças dirigidas por Sugahara
.....Quem ganha com isso? O público e, com certeza, no caso, o autor francês, Lagarce, com seus textos enigmáticos, carregados de intermitências e paixão. Ainda: os três grupos "titulares" acolhem convidados, como é o caso da Cia Centrífuga, com "Baleia" (nada a ver com Guimarães Rosa), dramaturgia e direção da própria Centrífuga, a apresentar-se durante a semana. Salvo engano, a "Cia dos Atores", de Henrique Diaz, continua ampliando seu espaço. É bem vinda a sua permanência.
     A "Sede das Cias" funciona em um sobrado antigo, em um correr de casas semelhantes, de azulejos coloridos que marcam o "trajeto das artes", entre a Lapa e Santa Teresa. O caminho para a "Sede" pode ser encontrado de diversas maneiras, principalmente para quem vem da Cinelândia em direção à Sala Cecília Meireles. Reestruturada, a "Sede das Cias" possui uma sala de espetáculo com todos os requisitos do teatro moderno: uma acústica perfeita, paredes negras de isolamento acústico que podem absorver qualquer tipo de cena, e spots tinindo de modernos.
     Quem comanda o espetáculo nesta estréia é Ivan Sugahara, um diretor que é também um inquieto pesquisador de linguagens teatrais. Dessa vez vamos assistir a sua versão do poético Jean-Luc-Lagarce, um criador de novas linguagens. Lagarce fala ao nosso inconsciente e é um grande formador de imagens cênicas. Dessa vez, suas imagens nas mãos de Sugahara trazem à tona um mundo de desencontros, onde o inconsciente aflora. Porém, Lagarce também faz uma concessão ao "consciente" despudorado, trazendo as conveniências (e inconveniências) dos problemas materiais.
    Cinco personagens dessa história - dos quais um é o habitante da casa, e o mais representativo do mundo de Lagarce, o dos interiores da alma. Assuntos de dinheiro afloram, retraindo ainda mais o estranho personagem recluso. Avesso a acontecimentos mundanos, suspeita-se que o personagem seja o representante da psique do autor. Porém, mais difícil do que ler Lagarce é situar quem é quem na relação dos atores. Para quem não tem intimidade com o trabalho deles, o programa, precário, não facilita a sua leitura.
     Podemos inferir, com muito boa vontade, que Helen é o personagem de Cristina Flores, pois há uma interação entre as duas. Tudo indica que a "passionatta" irreverente faz parte de um triângulo amoroso, do qual o estranho personagem solitário é (ou era) um dos vértices. O relacionamento humano (ou a falta de) é um dos temas favoritos de Lagarce. As peças do autor francês costumam priorizar a desolação e o absurdo da vida. Porém, estes sentimentos parecem não estar presentes nesse "Últimos remorsos..."
     Feitas as devidas observações, passemos aos atores envolvidos. Saulo Rodrigues e Letícia Isnard, por suas atuações exteriorizadas são uma surpresa absoluta: eles formam um casal fora dos padrões lagarcianos! Ou talvez sejam a exceção que acompanha a regra, com seu comportamento brincalhão e previsível (ele), e ela com a sua falta de compreensão dos acontecimentos: a loura de vermelho em um quadro típico de alienação.
.....Estas características do humano são uma exceção, em Lagarde, ou talvez sejam a maneira encontrada por ele para externar seu desassossego em relação ao gênero, nunca esquecendo que ele é um crítico implacável do comportamento de nossa espécie. Suspeitamos que aos demais personagens, com exceção do de José Karini (talvez o "alter ego" de Lagarce), mostram uma inadequação para a delicadeza e a vida. No caso da personagem de Ângela Câmara ou Nara Pardini, e sua indiferença pelos acontecimentos beira à irresponsabilidade "tchecoviana" de "O jardim das cerejeiras". Exagero? Aí começam as questões. Enquanto Paul (qual será o nome do personagem de Karini...?) busca refúgio na casa à venda, e é o mais emblemático do estilo do autor, há um clima indefinido / consciente / inconsciente entre os demais, excetuando-se o olhar crítico da menina de dezessete anos que, com sua lucidez, dá a verdadeira relevância aos acontecimentos. Ela é o olhar do "outro".
     Na história, os proprietários invadem a casa, para vendê-la. Em consequência, planeja-se o desalojar de um deles (PauI?), e quebrar a sua paz. A venda da casa é o motivo para o reencontro dos três. Porém, isso já não tem mais importância, o que lhes assalta, agora, é a necessidade de agir. Sente-se a ameaça do vazio, e tudo o que se percebe é refletido na expressão dos personagens. Essa peça, como todas as deste autor, foi escrita para ser preenchida com o olhar do outro.
     O personagem de Cristina Flores parece oscilar entre amores, risos nervosos e ações desmedidas. Uma atuação marcante, pois aceita/ recebe, o clima de Lagarce com um desafiador sentido de cena. Há risos incontidos, há agitação. E o olhar maduro da adolescente faz o contraponto, invocando a responsabilidade de viver.
     Muito já foi dito, e explorado, sobre arranjos de família e "seus negócios". Em geral, esse desligamento do aspecto material é tratado como se fosse uma irresponsabilidade de classe. No caso de Lagarce, um burguês francês - nessa grande sociedade burguesa que é a França - a alienação dos personagens só é comparável ao irracional dos aristocráticos personagens de Tchecov em "O jardim das cerejeiras". O desembaraçar-se das coisas materiais, esse  descompromissado olhar para as coisas da vida (a venda da casa é apenas uma metáfora desse descompromisso), dos personagens de Lagarce (e de Tchecov) refletem o absurdo desse teatro de absurdos. Em Lagarce há uma visão renovada sobre esse teatro.
     São tantas as perguntas que nos propõe esse texto impenetrável (e, por isso mesmo, interessante), que o autor nos desconcerta com os encontros e desencontros captados nesta peça. Os atores enfrentam o desafio, e há momentos em que os próprios personagens tomam consciência do clima de "estranhamento", tão bem captado pelo diretor. Esse sentimento é intensificado pela presença da luz de Renato Machado, seu clima fluído, como um retorno ao simbolismo que a tudo envolve.
      Sons, cenário e figurinos, colaboram para criar o clima da peça. O "esquecimento". Será essa uma maneira correta de "ler"Lagarce? O autor pós-moderno parece estar sempre envolvendo tempos e falas com um simples olhar. Ficamos com o som de Ivan Sugahara e a luz de Machado para dar credibilidade à cena. O cenário e os figurinos, modernos, de Ellen Millet complementam a ação.
Na Produção, Tarik Pugina; Assessoria de imprensa, Claudia Cavalcanti. Tradução, Alexandra Moreira da Silva. Aconselhamos uma visita a este autor tão intrigante. É bom ver bom teatro!


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

"O CONTROLADOR DO TRÁFEGO AÉREO"

O "controlador" em ação. (Foto Divulgação).
Silvano Monteiro na peça de Moacir Chaves, em foto de Guga Melgar.  

Elenco de "O Controlador do Tráfego Aéreo", concepção e direção Moacir Chaves. (Foto Guga Melgar).



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Eis que o Teatro Serrador apresenta um espetáculo no mínimo curioso . Trata-se de um texto (elaborado por Moacir Chaves em cima de um depoimento de Silvano Monteiro, ex-controlador de vôo), alimentado por documentos que comprovam o acontecido, e no qual é abordado o fanatismo dos militares em postos de comando, ao dar ordens a seus subalternos. Estes "comandantes", sem se deter na situação específica do humano, têm o poder de desestabilizar a vida de outro ser. Foi o que aconteceu com o primeiro sargento da Aeronáutica, e é o que está acontecendo, no presente, com tantos casos relatados nas Forças Armadas, passíveis de indenização pela forma desumana com que são tratados. É alto o índice de problemas psicológicos, nas três armas, justamente pelas transferências sem razão ou movidas muitas vezes para testar "o valor patriótico do militar". Quem sai perdendo são os filhos, a família; além dos cofres públicos. Foi isso o que Silvano Monteiro tentou evitar.
     Essa falsa noção de "dever cumprido" ocasionou a tragédia de Silvano Monteiro. Tal tragédia não teve conseqüências irreparáveis graças ao espírito batalhador e resistente do "controlador de vôo". Suicídio, loucura, rompimento familiar traumático, e tantos males acontecem, em nome de uma abstração chamada "ordens a cumprir". Nas Forças Armadas os casos se repetem, e devem ser avaliados com responsabilidade, e não com fanatismo. Passemos ao caso de Silvano Monteiro, "controlador de tráfego aéreo da Aeronáutica" - primeiro sargento.
      O procedimento das "pequenas autoridades", acima dos sargentos, é tão absurdo que leva à indignação. Não podemos falar sobre os atores e a peça sem antes localizar o desastre que pode acontecer com um servidor consciencioso e competente que, justamente por sê-lo, fica exposto ao bel prazer das transferências injustificadas. O caso de Monteiro se transformou em um castigo impiedoso, que chegou a colocá-lo em uma situação de abandono e desolação.
     Senão vejamos: um operador de tráfego aéreo, ao ser transferido de sua área de origem deve prestar alguns meses de estágio operacional para readaptação de área. Não havendo tal readaptação, é aconselhável o retorno a base de origem, sob pena de colocar em risco o bom funcionamento do tráfego aéreo. No caso de Silvano, por não terem atendido às suas justas reivindicações de retorno às bases, o caso tomou proporções que o profissional não conseguiu administrar, entrando em profunda depressão. Seus superiores, certamente, tomaram como fraqueza, a sua manifestação, e resolveram a questão respondendo-lhe que ele "era um militar", frase em que fica subentendido que militar não pode se dar ao luxo de ficar em depressão aguda! Mas as depressões acontecem - e como! - em tal profissão onde as transferências são feitas, na maioria das vezes, sem a menor necessidade ou condição.
     Portanto, onde deveria ter ido outro militar para substituí-lo, aconteceu o ato irrefletido da "punição sem causa", pois obrigaram Silvano a permanecer na função, apesar da falta de condições para tanto. O adequado, normal e racional seria mandar outro profissional para a área, pois não era ocasião para uma mudança tão brusca na vida de Monteiro, havendo um filho recém nascido, e uma esposa, ambos necessitando cuidados. A adaptação às novas funções - começou a trabalhar imediatamente, nem o tempo de algumas semanas para adaptação não lhe foi dado. O afastamento da família; a preocupação; o levaram ao seu limite: e sucumbiu, e foi internado. Assim. Fizeram-no trabalhar, sem atender-lhe as solicitações - cabíveis pelas normas legais- de retorno à base de origem, colocando em risco os vôos por ele controlados!
     O que lhe disseram seus superiores? "És um militar, tens que cumprir ordens!" E aí começou o inferno para Silvano Monteiro. Em depressão, sua competência foi a zero. O que fez a Aeronáutica? O internou em uma clínica psiquiátrica. E foi consentido que lhe administrassem antidepressivos - o que o levou a um estado de catatonia. O segundo sargento, que merecia nada mais do que um tratamento humano para o seu caso, ou seja, o retorno à base operacional junto de sua esposa e filho, teve como resposta a internação psiquiátrica; a alienação. Pediu demissão, depois de 22 anos de serviço, sem indenização ou o direito a uma pensão pelo seu tempo de trabalho!
Pergunta-se: é essa, ainda hoje, a nossa Aeronáutica? Deixar seus subordinados tão desesperados até a situação limite?
     Monteiro fez a escola técnica de Guaratinguetá, formado pela Escola da Aeronáutica, fez curso em São José dos Campos, no Instituto de Controladores do Espaço Aéreo (ICEA), e foi instrutor dos controladores do Galeão. Contando, ninguém acredita. Silvano Monteiro conheceu o mundo dos moradores de rua, mas não se tornou um deles, pois, talentoso, e com amor próprio desenvolvido, buscou auxílio entre seus iguais (Silvano demonstra ser um artista nato), e conseguiu se reerguer. O que não acontece com a maioria dos que caem, definitivamente, na rua. Infelizmente.
     O que fez o diretor Moacir Chaves com essa história de horror e superação? Construiu, com seu elenco, uma narrativa circular, na qual há textos célebres entremeados com a situação ambulatorial e hospitalar de Monteiro: o impasse com o seu divórcio, e a absurda pensão alimentícia exigida pelos advogados, para o seu filho Breno. Ele deveria pagar a pensão com o seu trabalho de ator! Está nos autos! A esposa, assustada com o que acabaram por lhe apresentar como marido, foi para junto dos pais, sempre com o seu jovem filho Breno.
     Silvano, durante o período de internação, frequentou aulas de música, artes cênicas (seus rudimentos...), e conseguiu desenvolver o talento que não sabia possuir. Esses momentos de terapia ocupacional, imagino, ajudaram-lhe a não enlouquecer. Mas, ser considerado pela justiça como um ator profissional capaz de sustentar uma família é desumano. O ser humano não tem limites para a sua mesquinharia: o juiz lhe exigiu pensão alimentícia para o menino. Ora, todos nós sabemos o coroamento de maldades que isso representa. Monteiro decaiu, ficou na rua, nada podia fazer por si e para os que amava.
     Diretor e atores do espetáculo (Monteiro incluído, ator, finalmente) citam textos lúcidos, de seres humanos de alma rica, eles Thomas Morus e sua Utopia; Dostoievski e alguns trechos de seus livros. O "paciente psiquiátrico" entrando em contato com mundos absolutamente diversos (Silvano Monteiro já participou de outras montagens de Moacir Chaves e é hoje um membro do grupo), habitando outro universo. Há também, na peça, as crônicas de jornalistas observando o mundo da rua como se fossem "voyeurs". A vida dos excluídos, como se fosse uma escolha extravagante. Querer as estrelas e a chuva como telhado. Outros cronistas, mais humanos, rebatem (talvez de um jornal mais preocupado com o social) o cronista da Zero Hora (jornal gaúcho), tendo como contraponto a resposta indignada do (talvez) cronista, do Correio do Povo (RS), talvez Juremir Machado da Silva e sua visão oposta ao da Zero Hora mundana. (Muito bom quadro, interpretado por Fernando Lopes Lima e Rafael Mannheimer).
     Saldo positivo: uma denúncia e uma reflexão. Um alerta para a loucura humana que está fora dos manicômios e leva os mais fracos a nele ingressarem. São almas cruéis, as que têm nas mãos os destinos alheios. A peça fala de limites e fronteiras, e esses são os limites que a alma humana suporta, entre a fronteira da loucura e da sanidade. O "controlador de vôo" em momento algum aceitou que fosse considerado louco. Em boa hora está ator, entre os atores. Mas a Aeronáutica devia indenizá-lo por tanto sofrimento. Quantos ganham milhões de indenização, por terem passado uma semana na prisão, na época da ditadura dos militares?
    Os atores Fernando Lopes Lima; Danielle Martins de Faria; Leandro Daniel Colombo; Denise Pimenta; Leonardo Hickell; Kassandra Speltri; Elisa Pinheiro; Luisa Pitta, Rafael Mainheimer, e Silvano Monteiro contam essa história. No final, Silvano diz um trecho do Rei Lear, que ensaiou no curso que o Alfândega 88 proporciona a seus atores. Disse o monólogo dos tolos, mas ele não é um tolo: Monteiro, nesta história toda, é - e foi - um homem honrado. Longa vida a pessoas desse quilate. A vida real está de mãos dadas com o teatro experimental, na Alfandega 88. Trata-se de um espetáculo que desvenda as injustiças. Vale à pena conferir.
     Na ficha técnica, concepção e cenografia Moacir Chaves; Figurinos (chiques), Inês Salgado; Programação visual Maurício Grecco; acompanhamento musical, Silvano Monteiro; Luz, Aurélio de Simoni. O caso do controlador de tráfego aéreo está sendo retratado no Teatro Serrador, sem o mais leve indício de proselitismo. Muito pelo contrário, o saber artístico do diretor Chaves coloriu com palavras poéticas e satíricas essa denúncia que mostra o lado bom e o insensato da natureza humana.
ATENÇÃO! Deixamos aqui o nosso apoio à continuidade do trabalho de Moacir Chaves à frente do Teatro Serrador com a Cia. Alfândega 88, que tantos frutos positivos têm dado ao teatro carioca e brasileiro.