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quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

"AS PALAVRAS AS COISAS"

"AS PALAVRAS E AS COISAS", TEXTO E DIREÇÃO PEDRO BRÍCIO.
NA FOTO, LUCIA BRONSTEIN - "MULHER 1"


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)

“AS PALAVRAS E AS COISAS”

     É quase impossível acompanhar o trabalho de Pedro Brício sem antes ter-lhe acompanhado o caminho da criação. Tentei. Pelo que podemos compreender, ele trabalha muito com o que eu me recuso a chamar de símbolo. Mas os acontecimentos em “As Palavras e as Coisas” (título que nos remete às narrativas e interpretações de Foucault, mas apenas nos remete, o filosofo não interfere na narrativa), são simbólicos... Por exemplo: o que significa o “vômito” de seu personagens? Um insite joke, uma necessidade transcendental, ou simplesmente uma inadequação ao momento presente?  

     Devemos confessar que a colocação dada aos conflitos de seus personagens é desafiadora... Mas aí voltamos ao problema inicial, e preferimos trabalhar com o que nos é apresentado, fisicamente. Duas mulheres apaixonadas, dois conflitos a serem transpostos, e uma verdade “pasolineana” – de “Teorema?”, na terceira personagem feminina (Daniela Kupek), cujo misterio vem colocar um ponto final no desvario das duas mulheres apaixonadas.

     Mas as personagens de Pasolini são simbólicas... Como fica isso? Não devemos esquecer que a situação em que se encontram os quatro personagens é de extrema teatralidade e urgência: há um perigo de morte, e há graves acontecimentos tratados como se fossem obstáculos intransponíveis (e são, pois se trata da morte). O personagem central, o escritor Matei (Gabriel Pardal), está á beira da morte, em uma UTI. Porém, ele está – e não está - em perigo! Aliás, nunca esquecendo que o diretor Pedro Brício quis fazer, neste espetáculo, uma homenagem à atriz e colega falecida: Bel Garcia. Uma bela e sofrida homenagem, que não se deixa atingir no âmago do sentimento de desespero. Com exceção dos vômitos de alguns componentes da historia, mas os vômitos são tratados como uma doença.   

     E assim vamos, entre idas e vindas... Mas devo confessar que alguns momentos, no encontro dos três personagens, as amigas e o homem, interpretados por Branca Messina, Lucia Bronstein e Gabriel Pardal, nos levam a momentos de grande beleza (podendo a beleza às vezes ser gratuita...dessa vez não é), justamente quando seus corpos se movimentam, esculpindo imagens (destaque para Lucia Bronstein no papel de “mulher 1”. Bronstein é uma atriz da qual não podemos tirar os olhos. Aliás, o elenco desperta a atenção da crítica, mas existe algo em certos atores que passam valores subjetivos com um simples olhar, ou intenção do corpo: Bronstein pertence a essa raça. Desculpem o entusiasmo).

     Mas voltamos ao texto: a personagem “que vem colocar um ponto final à estranha situação”, (a atriz Daniela Kupek), revelando a salvação de Matei ( Pardal) - o escritor que está à morte - realiza um misterioso desfecho, tornando-se uma espécie de “destino” que cai sobre a ação, recurso, aliás, recorrente, em textos do passado. Ponto para Brício. Parece que a historia é carregada de “cenas do passado”. Enfim.

     Causa-nos estranheza assistir a algo tão contemporâneo e, ao mesmo tempo tão hermético e passadista. Estes dois (três?) adjetivos fazem parte dos textos de teatro atuais. O que podemos perceber é uma certa imprecisão, tanto nas questões que o texto levanta, quanto ao ambiente que o cerca. Dessa vez a estranheza fica com a ficha técnica, pois ela fala, na encenação, quando obedece a interfones, portas que se abrem misteriosamente, momentos que passam e retornam, em uma sensação de tempo indefinido.  
     Pois é, o cenário de Tuca faz jogo com a iluminação de Tomás Ribas. Temos também uma trilha sonora que define a ação, elaborada por Pedro Brício e Joana Guimarães. A supervisão dos figurinos (contemporâneos) é de Antonio Guedes. Trata-se de um espetáculo curioso, em busca de algo que não se sabe bem o que é. Desperta o mistério. E fica a pergunta: pode a morte ser assim tratada, tão en passant? Chega-se à conclusão de que, em teatro, sim, pode.                      

domingo, 11 de dezembro de 2016

"ANTÍGONA"

Amir Haddad, diretor, e Andréa Beltrão,  Antígona,  recebendo aplausos. (Foto Barbara Lopes) 
Antígona, perante a morte de Polinices. (obra de origem desconhecida).


DA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
"ANTÍGONA"

     Amir Haddad, "dramaturgista" - com Andrea Beltrão - e diretor da peça de Sófocles, deu-nos, em sua escrita inicial, a antevisão do que seria o seu trabalho como diretor: "Reescrever Sófocles. Reescrever Antígona". E é sobre essa reescrita que vamos falar.

     Pois bem. Em pouco mais de uma hora, coisas surpreendentes acontecem. Temos em cena não só Andrea Beltrão e seu monólogo, mas quatro artistas vivos e atuantes: Sófocles, Amir Haddad, Andrea Beltrão... e Marina Salomon! Sim, sem Marina, essa apoteose trágica jamais teria acontecido! Andrea Beltrão torna-se a transmissora (genial) de um gestual que somente Marina, entre as coreógrafas brasileiras, seria capaz de criar, pois Marina tem uma ligação natural com os deuses gregos! As guerras, o amor, o discurso rancoroso, tudo está contido no gestual da coreógrafa, incorporado pela a atriz.

     Feita essa ressalva, vamos aos acontecimentos. Em pouco mais de uma hora, Andrea Beltrão nos conta a historia de uma Grecia mitológica, grandiosa e agressiva! E assim vemos todas as tragédias, desde Édipo, até a filha de Édipo! E, por um momento iluminador - e estarrecedor! - compreendemos o que foi aquele povo antigo, dominado por seus oráculos, crenças e fetiches; um povo primitivo, com todas as limitações que as crenças podem trazer - o povo genial que, e ao mesmo tempo, nos trouxe toda a cultura da humanidade. "Depois dos gregos - como diz um certo professor - "tudo é pé de página...".

     E este povo soube poetizar as suas crenças... Mas Andrea foi além, ela também nos levou ao lado didático - necessário - do espetáculo, devido à platéia jovem que a assistia. Lembramos que foi Péricles, na Grecia do Vº Século, quem tirou os gregos do limbo... com seus festivais atenienses, seus concursos e dramaturgos que mudaram a cena e a Historia do Teatro!

     Feita essa ressalva, passemos aos acontecimentos: a impetuosidade de Andrea Beltrão, em cena, nos traz muito mais do que uma série de cadáveres, de mortes e assassinatos, é a tragédia antiga que ela nos conta, a tragédia grega desde o nascimento de Édipo, até a morte de Hemon e Creonte!  Sua atuação é algo memorável.

     O cenário é somente uma cadeira e, no fundo da cena, uma árvore "genealógica" com o nome dos responsáveis pelos acontecimentos narrados. Os objetos de cena, se os há (como a écharpe, os sapatos de salto alto), surgem não sabemos de onde, como um passe de mágica! Com a écharpe Andréa faz acontecer cenas de impacto. E, no pano de fundo, os nomes são colados e deslocados, conforme as necessidades da narrativa. A iluminação, criada por Aurelio de Simoni, dá um acento imprescindível para o bom andamento do espetáculo, assim como a trilha sonora (impactante), de Alessandro Persan. O figurino, simples, de Antonio Medeiros e Guilhereme Kato, traz um símbolo rosa (não identificado) sobre a roupa negra. Talvez algum símbolo sobre a mulher. Naqueles tempos, como agora, sua atuação entre os homens não era vista com bons olhos. O texto, talvez a reescrita de Andréa? - registra tal preconceito.

     Em linhas gerais, o espetáculo, que poderia ser confuso para alguns (os menos familiarizados com o teatro) torna-se um jogo interessante para os que têm a tragedia grega como alimento. Para os mais afoitos, tantos cadáveres, tantas guerras, pode ter um certo sabor "isabelino", o que não é verdade, pois os venenos não entram em cena...  
    
      Antigona é vista, na tradição ocidental, como a irmã ideal, amantíssima. Na versão de Andréa ela é simplesmente colhida pelos acontecimentos, o que deve ser a sua verdade extrema. Percebemos isso nos diálogos com "a doce Ismênia", o oposto de sua  apaixonada irmã. Tal situação existe, em nossos dias, e é uma verdade, entre irmãs. Na concepção do espetáculo, entretanto, Andréa se transforma em todos os personagens invocados pela tragedia. E é impressionante a interpretação da atriz, a sua mudança de gestos e voz, a cada solicitação.

     Andréa Beltrão é Creonte, Ismênia, Hemon, Édipo, o cego Tirésias... os guerreiros de Tebas, os reis enfurecidos, e os narradores! A interpretação dessa atriz, em seu primeiro solo, foge ao monólogo tradicional. É bem mais do que isso. Amir Haddad alerta: "Vamos da peça ao mito. Do mito à peça. Num eterno retorno". E é justamente este "eterno retorno" que dá alento à atriz para cumprir a sua missão de intérprete. Andréa Beltrão dá vida a uma tragedia que teve seu desenlace a partir da desgraça e morte do guerreiro Polinices. Aconselha-se aos amantes de teatro assistir o caminho dos herdeiros de Édipo, em ótima realização, no Teatro Poeirinha. Este caminho foi aberto por Gasparian e seu Rei Lear. É BOM VER BOM TEATRO!  

Antígona em seus últimos momentos. (Fotos Barbara Lopes)

sábado, 10 de dezembro de 2016

"60! DÉCADA DE ARROMBA doc.musical"



CRÍTICA TEATRAL
Wanderléa, acompanhada de elenco em "6o! Década de Arromba"
direção Frederico Reder. (foto Produção)

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

"60! Década de Arromba - doc.musical"
     Pronto! De repente vou deixar de lado as minhas "peças cabeças" e entrar "de cabeça" nesta folia descomunal! Aderi ao musical dirigido por Frederico Reder no momento em que as "Barbies" entraram em cena! Aqueles seres mecânicos, de roupas iguais relembrando (ao longe) as calçadas de Copacabana, aquela imagem compacta de mulheres que mais pareciam saídas de um cartaz de cinema, em duas dimensões! ... e,  de repente se mexiam, dançavam, cantavam... aquele hino em homenagem à Lua ("Tomo banho de Lua!/ Fico branca como a neve!/".

    Aderi!

    É claro que não foi só isso. A narrativa, pesquisada e roteirizada por Marcos Nauer, nos trouxe lembranças da "década maldita", e suas descobertas musicais - nossas, brasileira, e norte-americanas! Principalmente... E constatamos que aquele povo agressivo, neurótico...!, é imbatível em matéria de música popular, "quase" conseguindo nos suplantar! Ah, os rocks frenéticos, as canções românticas norte-americanas! Mas apareceram também os Beatlles - e viva a Inglaterra! Foi uma catarse assistir a essa "Década de Arromba"!

     Os primeiros anos da década, os que preparavam o "explosivo", em todos os sentidos, 1964, foram preparados com muito cuidado por Nauer e Reder. Eis uma fonte de comicidade muito bem preparada, inesperada e surpreendente. Desde as proibições absurdas do presidente Jânio Quadros, o "presidente avalanche" que acabou renunciando, junto com a beleza da Lua e seus segredos desvendados: "Lua, ó Lua, querem te passar pra trás/ Lua, ó Lua, querem te tirar a paz!" - e o homem pisava na Lua! E as proibições de Jânio Quadros? Uma comicidade inesperada do "presidente vassourinha" que proibiu o biquíni nas praias, e as cenas de hipnose nos teatros! Penso que a atriz que foi abduzida pelo hipnotizador é Amanda Döring... As cenas, criticando o período Jânio Quadros, nos deixam perceber pesquisador e diretor trabalhando em grande sintonia. O tom de comicidade é relevante, original.  

     E assim segue o espetáculo, com 3h30' de duração! e intervalos generosos. Na platéia, comemora-se o fausto e o bom gosto do espetáculo onde, no palco, cantores fabulosos, como Érika Affonso (salvo engano, cantou Aquarela do Brasil?). Cássia Raquel, Analu Pimenta? Maravilhosas! Confesso que não conhecia o elenco de tantos cantores e bailarinos excepcionais em seu profissionalismo. São 23 atores, e nenhuma falha: direção perfeita. Fica-se encantado com o padrão de elenco. E, como se não bastasse, eis que surge a homenageada (e homenageante) Wanderléa, descendo escadarias e cantando: "Agora vem você dizendo, adeus! Que foi que eu fiz, pra que você, me trate assim?" - queixando-se de um possível esquecimento do público em relação a ela? Impossível.

     E as sequências lembrando o nascimento da Jovem Guarda e da Bossa Nova? Que anos, aqueles! Valeu à pena estar presente no palco do magnífico Theatro NET Rio. Sim, este qualificativo não está fora de ocasião, há que festejar os grandes - e bons - teatros cariocas (apenas uma ressalva: quem fica no balcão perde 50% do espetáculo, justamente por causa da parede da frisa...). Mas esqueçamos este detalhe e olhemos os figurinos perfeitos (Bruno Perlatto), as perucas, os movimentos corporais do elenco (coreografia de Natália Lana e Vitor Maia). Assistimos a algo descompromissado, e com muitos recados aos "amigos" do Norte. Não seria uma documentação perfeita se não tivesse também a participação do cinema, e a importância dos filmes surgidos naquela época. Ponto para a pesquisa de Marcos Nauer. Videografismo de Thiago Stauffer.

     Não faltaram homenagens a presidentes, inclusive a um certo presidente  assassinado, nos EUA. Nada que o desvario da construção de Brasília não abafasse, com o delírio de Kubitschek. Também foi lembrada, naqueles anos, a morte trágica de Marilyn Monroe. O espetáculo foi um verdadeiro "melting pot" de civilizações... não sendo esquecido, inclusive, um dos muros que a incompreensão humana construiu - dessa vez separando Berlim em duas cidades. Há outros por aí, em outras cidades, em décadas mais recentes. O mundo não muda.

     Mas voltemos às perucas e às saias godê. Um espetáculo envolvente. Chegamos até a esquecer a precariedade de certas projeções visuais, o que é desculpável, aliás, pela raridade de sua conservação (hoje há técnicas de recuperação. Enfim...). Ironicamente,  a TV Tupi não guardou em seu acervo cópias mais fieis de seus sucessos. Deixemos os  comentários para o filme "Chatô", para quem já o assistiu. Mas a década de 60 foi marcante, principalmente para as mulheres, com suas "pílulas" e sua liberdade, com  Simone de Beauvoir... Nada disso foi esquecido.

     Mas a moda feminina, com suas perucas e saias godês também alterou o comportamento masculino. Essa foi uma década dinâmica, ninguém pode negar. Os  desempenhos, em cena, são marcantes. Impossível citar a todos; deixaremos a referencia de seus nomes. Além das atrizes já citadas, tivemos em destaque Leandro Massaferri interpretando Ken, o namorado da Barbie. Marcelo Ferrari... e ainda, em muito boas interpretações, Giu Mallen, Jade Salim, Fabiana Tolentino, Bel Lima, Amanda Döring (a que foi hipnotizada?), Deborah Marins, Jullie, Rachel Cristina, Rosana Chayin, e os "meninos" André Sigom, Leo Araujo, Mateus Ribeiro, Pedro Arrais, Raphael Rossatto, e os Rodrigos: Morura, Naice e Sephan, e Tauã Delmiro. Não podemos esquecer os músicos, cuja apresentação é brilhante, comandados por Toni Lucchesi, pianista e regente. São eles: Alexandre Queiroz, teclados; Léo Bandeira, bateria; Pedro Aune, baixos; Gabriel Quinto, violão, guitarra e cavaquinho; Lalo California, guitarra; Luiz Felipe Ferreira, violino; Tahis Ferreira, violoncelo; Rafael Sant'Anna, trompete e Vitor de Medeiros, sax, flauta e clarinete.

VALEU, FREDERICO REDER!     
        
                                           

"CEMITERIO DAS DELÍCIAS"

O trio de amigos do bem, da peça "Cemiterio das Delícias", textos de Arrabal.
Na foto, Yuri Faragi (Tope), Mitzi Evelyn (Fodere)
      e Rodrigo Candelot, (Emanu).
     Direção Delson Antunes  (Foto Fernanda Sabenca)

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     E eis que Arrabal retorna, com seus personagens que vivem entre o limite da bondade e da crueldade. Delson Antunes, o diretor do espetáculo, selecionou, com seu grupo de atores e a nova Cia. "Disparato", várias peças do poeta dramaturgo e deu-lhe o nome de "Cemitério das Delicias - Arrabal em cena" - (tradução de Wilson Coelho). A idéia, excelente, resultou em um espetáculo Barroco! As peças, ou melhor, os trechos das peças que foram selecionadas, Fando e Lis, Oração, Guernica, Cemiterio dos Automóveis, A Bicicleta do Condenado e O Jardim das Delicias são um painel muito elucidativo da obra deste poeta dramaturgo. Para quem não conhece Arrabal, torna-se um espetáculo de difícil penetração e, para quem o conhece, trata-se de um retorno acidentado!

     Faz sentido montar Arrabal nos tempos atuais. Principalmente em relação aos nossos percalços com a Cultura oficial, problemas esses que também atingem os menos favorecidos socialmente. São momentos incultos, os que vivemos, nos quais o sadismo e a bondade se confundem, deixando uma lacuna entre eles. Nesta peça é interessante notar que os personagens que melhor sintetizam o "estilo Arrabal" (ele não é ligado a nenhum "movimento", a nenhuma "escola"), sejam o de "Fando" e de "Emanu", ambos interpretados por Rodrigo Candelot: a maldade e a bondade levada a extremos.   

     Senão vejamos: "Fando e Lis" retrata a atrocidade, no melhor estilo Grand Guignol, unido à crueldade que Arrabal presenciou em sua infância. Fando é cruel e, em contrapartida, Lis é submissa. Por sua vez, Emanu (o representante do bem), é doce, terno e infantil. Ele quer ajudar aos necessitados, e vive um dos mais lindos - até esteticamente - momentos do espetáculo. Disse "esteticamente" porque "Cemiterio das Delicias" é um acumular de cenas, umas terríveis, outras belas - equilibrando-se no meio da confusão de um lixão.

     E aí aparece o cenário de José Dias ilustrando as intenções do diretor, e vivendo a força da sua criação como cenógrafo. Dias reuniu no palco o nosso mundo desfeito, suas máquinas obsoletas entregues à própria sorte. Um lixão. Esse é o nosso presente.

     Não sabemos como o público recebe tanta desgraça. Às vezes ela se torna tão absurda que leva ao riso. Mas não é somente o riso a proposta do espetáculo, ele nos  leva a pensar. Arrabal se considera um sensitivo. Alguns críticos afirmam que sua obra é "selvagem". Aliás, é com esse sentimento incontrolável que ele mantém o seu fascínio! Sim, Arrabal é fascinante!  

     Principalmente neste "Cemiterio das Delicias", onde o fascínio e o estranhamento imperam. Montar Arrabal, em uma época de crise como a nossa, faz sentido. Essa verdadeira "coletânea" de textos do autor espanhol, espetáculo encenado em fragmentos, reverbera a essência de um artista que teve a coragem de apontar os desmandos de uma Espanha fascista. Em tempo: Arrabal está vivo, com 84 anos e muita ironia. Depois das perseguições políticas em seu país, preferiu a França para viver e nela desenvolver o seu trabalho. 

     Já tivemos de Arrabal tantos sucessos. Os anos 70 foram coroados deles: Cemiterio de Automóveis, O Arquiteto e o Imperador da Assíria (só para citar os mais impactantes), revolucionaram a cena brasileira. Sim, faz sentido trazer Arrabal para o momento que vivemos. Estamos em "urgência", patinando sobre um futuro incerto e aterrador. O que esperamos desse nosso "Cemiterio das Delícias"? Sim, quem levantou este trabalho pensou em refletir sobre um teatro da crueldade, a desvalorização do humano. Do trabalho de Delson Antunes conhecemos o belo "Anjo Malaquias", carregado de poesia, sobre Mario Quintana. Estranhamente, o presente espetáculo também é carregado de poesia... Estamos em boas mãos.

     Vamos lá! São 12 atores que nos mostram a miséria humana em vários tons, alguns não tão miseráveis assim: percebemos que no episodio de "o monstro", que acaba em casamento feliz (existe?), há cenas da máxima ironia. Aliás, o espetáculo é alimentado pelo "processo criativo" dos atores, e muita ironia. A cena do casamento surge de um programa de televisão em que uma atriz (Ana Bugarim) é entrevistada. Essa cena dá uma respirada na "selvageria" de Arrabal, embora não seja menos assustadora: uma atriz (Bugarim, em excelente desempenho) - chamada "a bela" - dá uma entrevista para um animador de TV (Eduardo Knenaifes, em pequenas cenas, o que é uma pena, pois ele mostra ser muito talentoso). A atriz Lays Ariosi, também em pequenos papeis, interpreta a Fã da "bela". Os atores, em geral, apresentam um bom trabalho (há alguns que se destacam mais, devido à maior densidade de seus personagens).

     Neste "Cemiterio das Delícias", a Cia "Disparato" apresenta o "desnudamento da alma humana", dando lugar à desunião entre os infelizes! Há dois momentos no espetáculo quase insuportáveis de assistir. "Fando e Lis", sobre a crueldade (atenção: nada a ver como "teatro da crueldade" de Artaud, que é bem anterior e se rebelava contra a "pièce bien faite" de seu tempo). A crueldade, em Arrabal, é física, e atinge extremos, quando fala a respeito dos homens e de suas "emoções infantis em um mundo de adultos". As crianças também sabem ser cruéis... O outro lado da crueldade é a perseguição aos bons: Emau, interpretado por Rodrigo Candelot, representa a bondade levada a sua última dimensão. Candelot, neste espetáculo, carrega consigo, com muita propriedade e ótimo desempenho, dois personagens que são os responsáveis para a compreensão do que é o teatro de Arrabal: Emanu - o louvável -, e Fando, o temível, de "Fando e Lis", peça cuja crueldade é comparável às piores historias de horror. O sadismo sempre encontra o seu companheiro, o masoquismo. Na cena, exposta, a masoquista é a personagem de Lis, tendo a atriz Mitzi Evelyn um elogiável  desempenho. Evelyn é uma atriz de grande talento, revelando-se também ao interpretar o "mudo Fodere", do trio da "cena dos amigos".

     O "segundo amigo" dessa cena  é Tope (interpretado por Yuri Faragi, estreando já no segundo tempo do espetáculo...). Os três (e aí se inclui o Emanu de Candelot), se encontram para fazer o bem, ou seja, "tocar música para os pobres", o que é proibido pelo regime! Aliás, o "interdito" é a afirmação deste espetáculo, relembrando a Espanha fascista de Franco.  

      Enfim, temos ótimos atores em cena: Andrea Couto interpreta Lasca e Fídio; Henrique Pinho é Viloro, o homem que quer tocar um instrumento, que quer ser bom, e é preso. Nem é preciso dizer que "todos" os bons, "sempre" acabam mal, em um regime de força; e a bondade, no caso, tem obrigação de agir, mas nem sempre consegue... A atriz Luciana Albertin Malta interpreta o Condenado e Milharca; e  Graziela Bartelet, também atriz do espetáculo, interpreta Dila e o Condenado. Leonardo Paixão é Franchou, Zenon e Libé. Andrea Burle representa Tasla, o cão, e Toso.  

      "Cemiterio das Delicias" está fazendo o seu périplo teatral. Fomos alcançá-lo em reestréia no Teatro Café Pequeno. Nesta reestréia houve um pequeno problema de ritmo, que, imaginamos,  já deve ter sido sanado. PREPARE SEU CORAÇÃO. VALE À PENA ASSISTIR A ESSE  "CEMITERIO DAS DELICIAS"....!
FICHA TÉCNICA:
Assistência de Direção, Andreia Burle e Victor Losso; Direção de Movimento, Sueli Guerra; Direção de Produção, Leonardo Paiva; Produção Executiva: Mitzi Evelyn; Assistência de Produção: Ana Bugarim, Rodrigo Candelot e Samuel Belo; Figurinos, Joana Bueno (excelentes); Iluminação: Fernanda Mantovani; Trilha Sonora Original: Pedro Veríssimo e Fernando Aranha. .. E os já citados: Cenografia, José Dias; Direção, Delson Antunes; Textos, Fernando Arrabal; Tradução, Wilson Coelho. 



domingo, 4 de dezembro de 2016

"IMAGINA ESSE PALCO QUE SE MEXE"

                                                Elenco de "Imagina esse palco que se mexe",
                                                                 direção Moacir Chaves.
                                                                   (Fotos Divulgação).


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

IMAGINA ESSE PALCO QUE SE MEXE

     Ora, Ora! Agora estamos às voltas com a ciência! A que espetáculos nos leva a imaginação do diretor Moacir Chaves. O último deles, "2.500 por hora", se propunha a contar a historia do teatro em 60 minutos. Uma verdadeira maratona teatral. Agora, estamos às voltas com a  historia da humanidade desde seus primórdios, quando "saímos" da água e viramos seres rastejantes... Aliás, idéias impactantes. A primeira delas foi pensada por dois franceses, a segunda pelo nosso Moacir Chaves em parceria com o físico João Ramos Torres de Mello Neto... e as quatro atrizes que compõe a cena: Elisa Pinheiro, Karen Coelho, Luisa Pitta e Monica Biel. O embrião da ideia começou em um jantar de aniversario do diretor...

     Pano de fundo negro, revestido por estrelinhas cintilantes, platéia de 35 espectadores, quatro atrizes se revezando (todas elas excelentes), e eis que entramos em ligação direta com o cosmos! Trata-se de um espetáculo inesperado, e a curiosidade humana, unida ao inevitável da sua evolução, leva-nos a uma aventura sui generis - nunca antes registrada no palco - com (esse aspecto de) constatação da vida, e, ao mesmo tempo, vivência da mesma. Tal acontecimento torna-se possível graças à narrativa do astrofísico Mello Neto... relatando-nos, com seu texto, a sua própria experiência como cientista e pesquisador, teatralizada por Moacir Chaves.  

     Impossível reproduzir as nuances dessa aventura. Talvez, as que mais nos ficam na memória sejam as sutilezas dos encontros celestes, as descobertas dos buracos negros... e as conseqüências desses "encontros" para os habitantes do planeta Terra! Todo o relatado é feito com muito espanto e poesia.

     Um aspecto que ficou marcado em nossa surpresa foi a cegueira do personagem de Monica Biel, colocada ali como se fosse explodir, de um momento para outro, em revelação!  

UM ESPETÁCULO IMPERDIVEL!!!!!!

Na ficha técnica temos a iluminação de Paulo Cesar Medeiros; texto coletivo, extraído da narrativa de Mello Neto; "experimentação teatral" dirigida por Moacir Chaves, com assistência de direção de Francisco Ohanna. Figurinos do cotidiano, alguns de rara beleza (Inês Salgado). Direção Musical Tato Taborda.     
     

domingo, 27 de novembro de 2016

"CÉUS"

Elenco de "CÉUS", de Wajdi Mouawad, direção Aderbal Freire Filho. (Foto Leo Aversa).

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

"CÉUS" - ESSE É O FUTURO QUE NOS AGUARDA?

     Há um erro fundamental no texto pró-Ocidente do libanês Wajdi Mouawad, além o de manipular emoções: ele se esqueceu de levar o ataque "dos jovens kamikazes românticos" até o distante Texas, nos EUA, onde se abriga - esse sim - o maior criminoso de guerra do século XXI: George W. Bush. Por que não incluí-lo como o principal responsável pelos ataques aos museus ocidentais, já que ele proporcionou o maior deles, ao estimular o saque ao Museu de Bagdad, acabando com uma historia que, para nós, ainda não foi contada... e dando partida ao texto que segue: o da destruição total dos dois mundos.

      Foi-se a Arte e a Memoria de um povo, e a peça lamenta o tempo da destruição da arte ocidental... Constatamos, em "Céus", que o ataque terrorista torna-se um acontecimento tão "preciso", em termos de tecnologia, que bem podemos imaginar a recíproca e, derrotados todos, partirmos para o "planeta vermelho"... (é o que parece estarem preparando, os nossos contemporâneos). E o teatro entrou nessa dança! Em todo caso, não escapamos nunca do vermelho... para o bem ou para o mal.

      A peça transcorre em um tempo indefinido, e a tensão imposta atinge extremos, lutando entre o veraz e o inverossímil, fato esse que é muito perigoso para a arte. O perigo está em a peça caminhar naquele fio estreito entre o riso e o pranto. Os atores, muito bons, seguram essa barra pesada, no entanto, não podemos resistir a algo que soa falso, em todo esse terror insuflado pela imaginação e a tecnologia!

     Resumindo: o autor imaginou um tempo em que o terror está prestes a dominar o mundo e estabelecer a barbárie. Mas está mesmo? Um pouco mais além seria atômico, um pouco aquém, histeria incontrolável. Queremos enfrentar este texto?

     Quatro cientistas estão trancafiados em uma espécie de "bunker" pós-revolução tecnológica, esperando decifrar a senha e a missão que um quinto componente da equipe guarda com ele. Este componente, Valéry, que aparece com a imagem do diretor Aderbal Freire Filho, é o encarregado de levar a pesquisa adiante. Desiste, e deixa o barco (o computador...) à deriva. Os outros quatro entram em pânico, sabem que algo incontrolável acontecerá no dia de Nossa Senhora da Anunciação, dias contados. Há o quadro de Tintoretto, há a pomba maluca e há o mapa configurando o local dos quatro ou cinco museus que sofrerão o ataque dos terroristas. Quem são eles? O que querem eles, os terroristas, afinal? É uma luta de civilizações, ou uma luta de gerações? Neste impasse somos colhidos em uma guerra que não nos pertence; nós não somos George W. Bush, não vivemos no Texas, não temos duas filhinhas "encantadoras" e uma mulher ideal. Portanto, essa não é a nossa guerra.

     Entretanto - e o autor nos desculpe - os atores fazem o possível para tornar verossímil tal situação. Pode até acontecer - o nosso mundo está (é) tão louco - mas as bases não se sustentam, e então vemos uma cientista, (Silvia Buarque), tentar contornar a situação e só conseguir o seu retorno à "humanização mais palpitante" porque vai ser mãe! O "salvador da pátria", (Felipe de Carolis), se atrasa e não consegue deter a catástrofe terrorista "ameaçada" por alguém que não se controla (Rodrigo Pandolfo/Vincent Chef Chef), em missão que exige sangue frio: e tomamos conhecimento de mais esse vilão ambicioso. E assim sucessivamente: Blaise Centier, personagem de Isaac Bernat, com a sua bondade e indefinição, não consegue dominar a situação, deixando a catástrofe acontecer! Isaac não tem muito a realzar, com tal personagem... Somente a dupla pai e filho passa um sentimento familiar e humano: pai (Charles Fricks) e filho (Antonio Rabelo) - um jovem cuja naturalidade vale o espetáculo - acabam por nos envolver em uma armadilha - pressentida, porém impossível de ser evitada. Conclusão: essa historia de crianças mortas em uma guerra estúpida estabelece o momento em que pedimos, silenciosamente, que essa sangria, acontecendo em nossos dias, seja detida.   
      
      O cenário é composto por uma mesa que centraliza a ação, com os seus computadores (Fernando Mello da Costa). Os figurinos do cotidiano (século XXI),  composição de Antonio Medeiros. Música e desenho sonoro: Tato Taborda. Iluminação: Maneco Quinderê. Como podemos perceber, uma ficha técnica tão potente quanto o elenco. Tradução de Ângela Leite Lopes; Direção: Aderbal Freire Filho. Assistente de Direção: Fernando Philbert. As projeções são um espetáculo à parte. Realização do Projeto: Felipe de Carolis.

HÁ, NESTE TEXTO, UMA CONSTRUÇÃO ANCESTRAL, UMA VARIAÇÃO QUE VEM BROTANDO, E NÃO SE CONCRETIZA... TALVEZ A ISSO SE CHAME "POESIA"!   

"O TEATRO DE SOMBRAS DE OFELIA"

"O Teatro de Sombras de Ofelia", de Michael Ende, direção Jonas Kablin. (Foto Bruno Veiga)

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

A ESTREIA DA DELICADEZA

     Parodiando os poemas clássicos... "Foram tantas as estréias..." deste semestre! Ficamos com a Estréia da Delicadeza! Sim, sentimos ter conhecido Praga, e não ter assistido ao seu "Teatro de Sombras"... e também sentimos não conhecer melhor o trabalho do Pequod, aqui no Brasil. Mas ainda há tempo de pensar sobre... a partir deste "O Teatro de Sombras de Ofelia", um belo espetáculo, dirigido por Jonas Kablin.  

     Um pano de fundo negro: bambulinas negras... e uma cortina transparente fechando a cena e a tudo deixando ver, inclusive a construção da cena... No lado esquerdo da platéia, os músicos. E, lembrando o que virá: ... a reprodução, em pintura, das cortinas da boca de cena da Ópera de Paris! ... e as entradas e saídas indicando portas, casas, janelas... todas iluminadas! E uma voz que orienta: "Vá para o ponto, Ofelia". (Essa é a primeira impressão que se tem do espetáculo). Além, é claro, das "batidas de Molière", realizadas por "Ofélia", antes do início da ação.

     E aí começa a representação de cenas das mais variadas peças, e a mais homenageada de todos nós, o nosso "Hamlet"! E aí um detalhe para a engenhosidade dos figurinos (de Marta Reis), que reproduzem as articulações de bonecos, por cima dos atores-manequins (manipulação de Carolina Garcia) ... E pensam vocês que a magia se detém nas cenas iniciais? Michael Ende (autor, e não vou dizer que é o conhecido amigo da imaginação infantil...) e Jonas Klabin (direção e adaptação) fazem o milagre acontecer!

     Junto à cena, à direita da platéia, eis que se ilumina a 'Caixa de Ponto', e lá está a nossa Ofelia, indicando as falas para os atores. Mas, no mesmo espaço, surge o manipulador de cenário e toma conta do espetáculo, despertando a curiosidade da platéia! A partir daí, há dois espetáculos se processando e sendo "absorvidos" pelo público: o que se passa em cena, e a miniatura do que se passa em cena, a partir da 'Caixa de Ponto'. Estamos encantados? Sim, estamos!

     ... E não para aí! A atriz que me levou a me interessar por este trabalho, a sensível Rafaela Amado, que também é a assistente de direção, trouxe-nos Nina, a personagem de Tchecov, para fazer a sua declaração de amor ao teatro! A atriz desenvolve os 'dois tempos' de Ofelia - e temos uma Rafaela mais madura, iniciando, com convicção, o caminho das grandes atrizes. Sua interpretação é refinada, plena de matizes e concepção corporal perfeita. O elenco, em sua totalidade, é belo e tem presença convicta, nesta mescla de realidade e fantasia que se estende sobre o palco, com desenho de luz de Luiz Paulo Nenén e imagens de Henrique Mourthé. A Coordenação de Animação é de Barbara Castro, Cadu Sampaio e Luiz Ludwig. E os atores que compõe a cena: Zé Azul, Grasiela Müller, Pedro Gracindo, Carolina Garcia, Rafaela Amado. A pintura de Arte é de Derô Martín, mas não esquecendo nunca que Bia Junqueira é a diretora de Arte e Cenografia. Perfeito! E os músicos... com seus exercícios livres, de compassos integrados ao espetáculo, têm como parceria a direção musical de Thiago Trajano. A direção de Produção é de Bianca de Felippes.
É BOM VER BOM TEATRO!                  

      

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

"A PAZ PERPÉTUA"

Alex Nader (Cassius), Gillray Coutinho (Homem), José Loreto (John-John), João Velho (Odin)
e Kadu Garcia (Emanuel), em "A Paz Perpétua", direção Aderbal Freire Filho. 


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

"SAPERE AUDE" - "Ouse!" Os intelectuais da Espanha são uma fonte de surpresas. Aderbal Freire Filho também. E quem conhece Juan Mayorga? Somente eles... Pois está presente, até o dia 11 de dezembro, no Oi Futuro do Flamengo, com o texto "A Paz Perpétua", escrito pelo espanhol libertador e traduzido pelo brasileiro, que também dirige o espetáculo: Aderbal Freire Filho. Emanuel Kant, o filósofo, inspira, levantando a questão do "territorio" - a pessoa que está em seu "Domínio" tende a repelir o visitante que interfere. Como os cães. O espanhol Mayorga completou este ano 50 anos de vida. São mais de 50 peças escritas, e esta "Paz" veio completar uma inicial "Palabra de Perro", de 2003. Seu tema? Liberdade pessoal, território, prisão?         

     O que sabemos, sim, é que vamos falar de sensibilidade, ousadia e  imaginação. Não se passa incólume por Juan Mayorca. Aparentemente estamos em uma sala onde seres estranhos se comportam estranhamente. Procuramos não ter informação anterior sobre o que iremos assistir, mas é quase impossível. Subitamente percebemos que estes seres usam coleiras, e que há alguém que os leva pela coleira, e esse alguém é venerado (temido?), pelos demais. São quatro homens em uma encruzilhada.

     Não quero falar aqui de "forma" e "conteúdo". Percebemos que há feras selvagens por detrás daqueles homens e um deles, com um simples - "Seat!" - transforma os demais em dóceis criancinhas. É preocupante, tal estado de coisa. Revela que "os homens" obedecem a quem lhes comanda. Temem a quem comanda, e se tornam submissos...     
   
     Até aí, tudo bem. Mas não dá mais para continuar fingindo que não estamos entendendo o que está acontecendo no palco. É algo tão inusitado que nos eleva a tensão. E vamos encontrar o paralelo entre a fera e o homem. Os quatro cães possuem características humanas ou: os quatro homens possuem características caninas. Eles são cães, rosnam como cães, e como animais se alimentam. Mas eles são homens...

     Não conseguimos imaginar quais argumentos usou o diretor para extrair destes cinco atores (Alex Nader, Gillray Coutinho, João Velho, João Loreto e Kadu Garcia), a tensão permanente que pede seus personagens. Aderbal afirma que trabalhou com a idéia de que todos os homens têm cachorros dentro de si. O fato é que estamos diante de um espetáculo intenso, que cobra muito dos atores. Há sincronia, entre os cinco, cada qual carregando a sua característica, mostrando os principais tipos e personalidades que pertencem aos humanos. Assim, temos Odin, o cínico, carregado com dignidade por João Velho (a gente não entende completamente o que Odin fala, mas seu dono é tão expressivo, em sua "poção cachorro" que passamos a entender a sua "não fala" - sabemos que é uma questão de respiração que, também às vezes ataca os humanos). Outra personalidade interessante é a do cachorro Emanuel, o filósofo. Ele nos leva às lágrimas, contando como deixou morrer a sua cega dona, a sua amada. Este ator, Kadu Garcia, dá-nos a impressão de que já foi de circo (adoro a sensibilidade dos atores circenses), tal a gama de expressões e gestos naturais que ele semeia. É um inferno, esse ator!

     E temos também John-John, o cão atleta, o cultivador de seu "desempenho" enquanto cão, em luta com suas limitações intelectuais. Comovente atuação de José Loreto. O seu John-John também "Ousa Sapere!". E, finalmente Alex Nader, o cão Cassius, treinador de todos os cães. Cassius já foi campeão, já usou a "coleira branca" pela qual os outros  estão lutando, já foi o líder dos cães antiterror, um dominador! Agora é somente um aleijado, mas sobreviveu, o que não se sabe se acontecerá com os que estão sendo treinados por ele, no momento. Um intenso desempenho de Alex. E o "Humano" acontece, na fala final do verdadeiro treinador, interpretado por Gillray Coutinho. Sua voz de comando se assemelha muito às ordens dos humanos em relação aos que lhes são subordinados. E é aí que a peça se esclarece! Os cães atendem à fala do Humano, e entre os rosnados e dentes arreganhados do início eles terminam, instigados pelo treinador, em uma luta de exterminadores. Os cães se precipitam em sua própria destruição!

Teatro contemporâneo. Ficha técnica: Autor: Juan Mayorga; Tradutor e Diretor: Aderbal Freire Filho; Diretor Assistente: Fernando Philbert; Iluminação: Maneco Quinderé. Ator stand-in Manoel Madeira. (Não temos Figurinos e Cenário).
             



segunda-feira, 7 de novembro de 2016

APRESENTAÇÃO DO LIVRO DE ANTONIO ABUJAMRA

        
                                ANTONIO  ABUJAMRA 


                      " CALENDARIO     DE     PEDRA" 

                                                  UMA   BIOGRAFIA

        Você já abriu este livro, agora entrará em contato com a vida de Antonio Abujamra. Antes, porém, quero contar como foram os primeiros dias desta narrativa. Tudo começou há 6 anos: 2008! Eu era seis anos mais jovem... e ele também! Sempre que nos encontrávamos, entre amigos, em bares, restaurantes, nos teatros do Sesc, ou em outros teatros, ele dizia para os garçons, ou para quem estivesse perto de nós: “me tragam Viagra!”. Ninguém ouvia, ou fingia não ouvir. A cena era terrivelmente divertida, e inesperada. Claro, o que ele queria realmente não era Viagra, ele queria era alimentar um mito. Veremos, mais adiante, que esta questão do mito, em Abujamra, foi mudando com o decorrer do tempo.
     Os seis anos tentando falar com ele não foram uma experiência fácil. Mas foi muito prazerosa, porque desafiadora - para mim. Ora a gente se reunia nas mesas do Degrau, em Ipanema, ora, nos bancos desconfortáveis do Espaço Sesc do Rio de Janeiro, ou em bares da rua Santa Clara, ou nos bastidores do CEU de São Paulo. Fazíamos um jogo de gato e rato. Finalmente descobri que "estava tudo lá", em revistas, no seu programa de televisão, na suas encenações. Antonio falava através de sua Arte. Enfrentei a pesquisa.
     Às vezes Antonio era carinhoso comigo, me dava dicas, deixava pelo caminho pistas, que eu deveria desvendar, ou compreender. Às vezes era irônico, duvidava da empreitada a que eu me dispusera. Às vezes, entusiasta, deixava-se influenciar pelo meu entusiasmo. Só não gostava de meu olhar perscrutador e me interrogava, "malcriado", como dizia a sua querida esposa Belinha: "Por que este olhar que parece querer namorar comigo"? Querem coisa mais desconcertante?  
     Aos trancos e barrancos, lá fui eu estruturando a história de sua vida. Despistando insights, escondendo gravadores na minha roupa (que ele sempre descobria, não porque a tirasse, é claro, mas porque havia sempre um fio indiscreto a me condenar!). Lá ia eu, desesperada, rabiscando notas em guardanapos de papel, imaginando cenas, desenvolvendo verdades. Quase me transformo em uma ficcionista, mas a procura da verdade me salvou. Agora apresento o resultado da aventura que foi tentar entender este monstro. Que a sorte nos acompanhe! A mim, a ele, e aos nossos leitores! Comecemos pelo começo.

                                                                          IDA VICENZIA





                                                                   


segunda-feira, 26 de setembro de 2016

"ISADORA"

Daniel Dantas (Henry) e Melissa Vettore (Isadora) (Foto João Caldas)

Morte de Isadora. (Arquivo)
Roberto Alencar (Agustin), Melissa Vettore (Isadora) e Patricia Gasppar (Irma), em "Isadora",
dramaturgia, Vettore, direção Elias Andreato. (Foto João Caldas).  

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     .... E fomos ver "Isadora"! Uma peça sobre aquela mulher fascinante, independente, livre, revolucionaria. Movida à dança! Por que Melissa Vettore, dramaturga, produtora, atriz e bailarina do espetáculo, resolveu homenageá-la? Difícil tarefa! A dedicação à Isadora parece ser o trabalho da vida de Melissa, que foi muito bem assessorada pelo ótimo diretor que é Elias Andreato. Há, com certeza absoluta, neste espetáculo, uma cena antológica interpretada por Daniel Dantas (ator convidado) e Melissa Vettore: a cena do desnudamento do amor do editor (Henry, interessado em editar o 'Livro de Memórias' de Isadora), pela bailarina! Para mim, Dantas é o ator mais misterioso que existe, sempre uma mistura de Gabin, Auteuil e ennui!. (Desculpem, meus paradigmas são todos do teatro e cinema francês do  século XX ...dos anos 60, ou menos, veja-se Jean Gabin!). Mas, uma coisa continuo afirmando: esse ator, Dantas, sempre me impressiona pela fragilidade e ennui ("tristeza profunda"), que deixa transparecer em sua interpretação! E quem é, afinal, o editor que tanto mexe, racionalmente, com a tranqüilidade de Isadora? A historia é contada em dois tempos... e o editor aparece em um momento cruel do presente, em que a bailarina retoma o seu passado, para escrevê-lo. 

     Mas deixemos Dantas, e o personagem que interpreta, em paz. Seres estranhos na vida de Isadora Duncan não faltaram. A verdade é que a musa sentia amizade por seres maravilhosos, como, além desse editor, João do Rio, por exemplo. Dizem que a bailarina o queria como amiga, mas ficou intrigada (dizem) com o pouco entusiasmo que ele revelou ao ver seu corpo nu. Ao se interessar pela inclinação sexual de João, recebeu essa resposta do escritor carioca: "Eu sou um ser impuro". A resposta poderia ter sido dita por João do Rio, o episódio parece ser verdadeiro, mas nunca se saberá, pois  pertence ao mundo do mistério das artes cênicas, e isso é fascinante!

     "Isadora", a peça, pegou-nos de surpresa. Não há atores em cena, com exceção de Dantas e a irmã de Isadora, Irma, interpretada pela bailarina, cantora e atriz Patricia Gasppar. O irmão, Agustin, é a belíssima figura de bailarino de Roberto Alencar (cuja presença em cena valoriza o espetáculo). Roberto, além de interpretar Agustin, também participa em outras cenas,  fazendo pequenas intervenções.

     O espetáculo veio de São Paulo, e ficará poucos dias no SESC Ginástico, mas nos serviu como verdadeira "aula de direção" de Andreato, que conseguiu momentos inesquecíveis da frágil Melissa, interpretando a indescritível Isadora. Os melhores momentos de Vettore são quando ela dança, livre e solta, ao estilo Isadora, ou quando, em alguns momentos da discussão com o editor (Dantas), consegue uma carga dramática mais forte. Admira-se sua iniciativa, nesta bela homenagem a Isadora!

     Diz Isadora: " Eis o que estamos tentando fazer: reunir um poema, uma melodia e uma dança, de modo que não se escute a música, veja a dançarina ou ouça o poeta; mas se viva na cena e no pensamento o que eles estão expressando".

     Há vários aspectos positivos que poderiam nos levar a recomendar este espetáculo. Certamente, as projeções e o clima que passam, lembrando a escola de dança de Isadora, na União Soviética. Ou o momento dramático em  que a bailarina narra o suicídio de Serguei Esenin, seu poeta-amante! (na vida real, há o consolo de que eles já estavam separados). Outro aspecto positivo do espetáculo é a já comentada cena final, entre o editor e Isadora. E o texto. Sim, o texto! Ele é  repleto de citações e de poesia, como o Maiakovski, dito por Dantas, ou frases muito bem construídas, que levam ao momento vivido daqueles artistas! Sim, o texto, com trechos de Walt Whitman, Sergei Esenin, Maiakovski! Trata-se de um lindo e inteligente trabalho conjunto, feito por Andreato e Dantas, em cima da dramaturgia de Melissa Vettore.


     O Epílogo dessa bela homenagem é a morte de Isadora, em Nice, ainda em seus 50 anos fecundos. A morte, enrolada em sua vaporosa écharpe, é um final digno de sua vida envolta em véus. Uma bela e poética morte, a de Isadora, essa mulher que observou um dia (Isadora deixou vários escritos): "Sou uma crítica incansável da sociedade moderna, da cultura e da educação. Defensora dos direitos das mulheres, da revolução social e da concretização do espírito poético na vida cotidiana. Meu interesse é expressar uma nova forma de vida." (Ah, como eu gostaria de ter conhecido Isadora!) E, finalmente, a ficha técnica: Há música ao vivo, como não poderia deixar de ter, e a escolha da trilha sonora é do artista e musicista Jonatan Harold. Magnífico. A assistência de direção é de André Acioli; as palavras lindas e emocionadas de Renata Melo, diretora de movimento e preparadora corporal do espetáculo, dão vontade de conhecê-la, e participar de seu vôo! Preparação vocal de Edi Montecchi. Produção de vídeo: Marco Vettore. Divulgação no Rio, JSPontes. 
BELA INICIATIVA!   UM ESPETÁCULO DE TEATRO-DANÇA.