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domingo, 31 de julho de 2016

"A REUNIFICAÇÃO DAS DUAS COREIAS"

Elenco de "A Reunificação das duas Coreias", de Joël Pommerat,
direção de João Fonseca.
(Foto: Victor Hugo Cecatto)

Cena de CASAMENTO, episodio de "A Reunificação... ".
Na foto: Bianca Byington, Gustavo Machado e Solange Badim.
(Foto: Victor Hugo Cecatto)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


"A  REUNIFICAÇÃO DAS DUAS COREIAS"  

 - UM ESPETÁCULO EXTRAVAGANTE


     Não podemos nos surpreender com o mundo atual, pois a loucura humana sempre pautou as nossas vidas, mas a peça de Joël Pommerat, "A Reunificação das Duas Coreias" - atualmente em cartaz no Oi, Futuro de Botafogo - é uma amostra significativa da alma: seja ela francesa, brasileira, hebraica ou muçulmana, só para citar as que estão no limite da loucura, atualmente, pois os Estados Unidos já ultrapassaram esse limite há muito tempo.

     Pois bem, "A Reunificação..." nos dá um esboço dessa situação - refletida nos problemas familiares - e mostra vários tipos de comportamento (neurótico), que caracterizam  o nosso tempo. Pensamos, em alguns momentos, estar na presença de um espetáculo cujo foco é o "amor", ou a "amizade" - e há momentos em que nos detemos na "insensatez" dos humanos. No início da ação, com a morte do marido (por enforcamento), ou a do amigo, na sequencia da "Amizade", (por estrangulamento),  nos perguntamos se não estamos na presença do teatro de "grand guignol", tão amado pelos franceses. Mas sem o sangue jorrando! 


     Na verdade, "A Reunificação das Duas Coreias" é um espetáculo no qual as sequências (rapidíssimas), nos levam ao extravagante! O teatro de Pommerat seleciona momentos de encontro/desencontro entre as pessoas e - com a imagem amplificadora do teatro - entramos no terreno do risível e do angustiante. Trata-se do reflexo, em lente de aumento, do que vivemos em nosso dia a dia. Aos poucos vamos percebendo que a real mensagem do autor é a "desconstrução" de nossos costumes. Se elegemos o "amor"  - e suas mais variadas formas -,  para fazer a leitura do que nos é  apresentado, percebemos que o texto se transforma em um verdadeiro "elogio à loucura"!

      O  "Método João Fonseca de Direção" não fica nada a dever ao  texto. Ao cercar-se de excelentes atores, e os deixar livres para escolher os seus caminhos, temos a oportunidade de assistir Louise Cardoso exercitando a prostituta mais enlouquecida dos últimos tempos, no teatro carioca. Trata-se do momento VALOR - episodio no qual a atriz divide o palco com o não menos talentoso Reiner Tenente. A atuação de Louise é marcante, e irá desaguar na estarrecedora "página em branco" do mal de Alzheimer, lembrando carinhosamente o filme argentino "O Filho da Noiva", de Juan José Campanella. Neste episódio, MEMORIA, o ator Marcelo Valle nos dá uma excelente interpretação. Talvez, pela sua densidade, MEMORIA se apresente como o mais ilustrativo do texto de Pommerat.

     As situações humanas vividas pelo elenco - apesar de algumas cenas se aproximarem da repetição minimalista - são impactantes, e, em sua maioria, hilariantes. Citaremos algumas: no episodio AMIZADE,  por exemplo, Gustavo Machado e Marcelo Valle têm um confronto preciso. Em outras sequências há o teatro do absurdo, como em CASAMENTO, na qual se confrontam: uma família composta por três irmãs, um  marido e um noivo ... no qual as irmãs têm um amor "enlouquecido" pelo mesmo homem. Ou talvez MORTE, quando Solange Badim tem ocasião de nos fazer apreciar o seu tempo preciso para a comedia.
     Em outro episodio, o do AMOR, pensamos assistir a uma ação amorosa entre casais,  mas verificamos, com surpresa, que se trata do sentimento da "dívida moral", encenada pelos pais de um aluno, amado por seu professor. Dessa vez, trata-se do amor genuíno de um mestre por seu discípulo. O professor é interpretado por Marcelo Valle, novamente em ótima atuação. Gustavo Machado e Verônica Debom são os pais do menino, enquanto Louise Cardoso é o personagem "apaziguador". Esse episódio reforça a sensação de insensatez dos humanos. 

     Bianca Byinton, desde sua primeira entrada em cena, como uma faxineira que encontra o cadáver (cena do enforcamento), até o final do espetáculo, mostra, mais uma vez, que é uma atriz que se entrega, com talento e precisão, além de uma diretora premiada. Trata-se de um espetáculo com excelentes atrizes em cena. No episodio GRAVIDEZ Bianca interpreta uma médica histérica. Em cena, Verônica Debom, a paciente grávida. Outro momento que nos apresenta a "insensatez" do autor. Tal cena também se apresenta como "a marca registrada" de Pommerat, se quisermos entender o seu texto. Com este espetáculo João Fonseca nos mostra coerência, em suas escolhas, com um olhar atento às excentricidades da "pequena vida", como na canção "I live my little life", que ilustra, de maneira crítica, o que se quer retratar.
     Enfim... o texto de Pommerat visita vários tipos de "loucura", entre as quais o "amor". Em sua "forma" podemos considerar que Fonseca optou por uma linguagem "pós-dramática" (no sentido da liberdade da encenação), com opções variadas entre o melodrama e a "comedia largada", demonstrando com isso, mais uma vez, a liberdade de sua linguagem cênica. O pós-dramático é também libertário.

     Na ficha técnica temos a segurança de Nello Marrese, no cenário. Os figurinos, de muito bom gosto (uma citação à elegância blasé francesa?), de Antônio Guedes.  A iluminação, de Renato Machado, não possui, dessa vez, o desenho excepcional que costuma ter a sua marca, porém manda o seu recado. Desfrutamos da ótima direção musical de Leandro Castilho, com uma seleção de músicas deliciosas. Pedro Peduzzi, por sua vez, transmite os sons e ruídos especiais, com maestria. A excelente direção de movimento é de Alex Neoral, e o "Visagismo" é de Diego Nardes. Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco. Direção de Produção: Maria Siman e Ana Lelis (um agradecimento muito especial a Ana Lelis). Tradução de Beatriz Ittach. Assistentes de Direção: Reiner Tenente e Pedro Pedruzzi. Design e Fotografia: Victor Hugo Cecatto. UM ESPETÁCULO ESTRANHO.                          
              
   
    
           

sexta-feira, 22 de julho de 2016

"TERRA PAPAGALLI"

"Terra Papagalli", direção Marcelo Valle. Na foto André Rosa (Cosme Fernandes)
e Sarah Lessa (Terebê, a filha do cacique)
(Foto Luca Ayres)

 Cena de "Terra Papagalli". Na foto, André Rosa e Felipe Frazão.
(Fotos Luca Ayres) 
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


TERRA   PAPAGALLI,  de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, atualmente em cartaz no teatro Sesc Copa, é uma fantasia ficcional criada em torno dos degredados portugueses, os condenados que vieram aportar nas praias brasileiras junto com Cabral e suas caravelas. Sobre essas personagens verídicas de vida tão nebulosa que por aqui foram deixadas nos idos de 1500, pouco ou quase nada se sabe. Marcelo Valle é o diretor desse episódio da vida nacional, inspirado no livro de Torero e Pimenta. Trata-se de uma comédia que ficará na historia.  

     Meu Deus, é nós, o que poderíamos dizer dessa Terra dos Papagaios que é esse nosso Brasil? No mínimo, o espetáculo que é levado em cena no Sesc Copa é um marco tão importante como o foi, em seu tempo, a estréia de "O Rei da Vela"! Não exagero. Falta-lhe apenas o burilar dos anos. Porém é um marco. Inova, em todos os sentidos, a cena teatral, e se "atira", voluptuosamente, na imaginação do que "deve ter sido", a chegada desse bando de degredados portugueses na Terra de Santa Cruz! São 11 atores, enlouquecidos - e no auge de sua juventude - a nos transmitir a loucura que foi o desembarque dos degredados  chegados a essa terra, os degredados "de Cabral". O horror, o pânico da chegada pega o público desprevenido, e leva ao inesperado! Somando-se a tudo isso, a precisão da entrada dos índios: e fica assegurada a força do espetáculo.

     A cena, em "Terra Papagalli", revela o desvario do encontro "das novas gentes" os índios, com os homens "civilizados", e desnuda o que esses "últimos" são capazes,  para tornar seu o que não lhes pertence! Até aí, sabemos os detalhes. Mas a precisão dessa chegada desesperada cria leis, inventa estatutos, elabora autos, com uma desfaçatez da qual conhecemos os frutos.

     O interessante, ao assistirmos a essa visão "da coisa", interpretada por José Roberto Torero e Marcos Pimenta, é que nunca imaginamos que essa historia poderia ser contada - e da maneira que foi - em um espetáculo teatral. Já assistimos a narrativas dessa famosa "Viagem", porém contada de maneira estética e "histórica", dando a impressão de que esse horror foi realmente um episodio da maior distinção. Nunca, porém, essa historia nos foi contada com tal ferocidade - (e esse deve ser o relato verdadeiro) - ao menos a historia da chegada dos degredados.

     Pois Marcelo Valle acreditou nisso, e foi muito bem recompensado pela sua iniciativa (e da equipe, pois, como sabemos, teatro é união de várias iniciativas), mas a direção de Valle mostra a mão de alguém que sabe aonde quer chegar - estimulado, com certeza, pelos outros dois "insanos" (em imaginação), que são Torero e Pimenta.

    Tal iniciativa resultou na perfeita direção de Marcelo; na preparação vocal e canto (e da fala indígena), de Fabianna Mello e Souza e Davi Guilhermme (workshop vocal). Juntou-se a todo esse acerto a iluminação de Mauricio Fuziyama e do mestre Renato Machado, e ainda os figurinos, adereços e visagismo, tão particulares e acertados, de Othon Spenner. Estes artistas (Spenner nos figurinos) são exemplos de imaginação a serviço da cena. Tudo se complementa: os  personagens enlouquecidos, metade pássaro, metade seres da floresta e gente perdida entre "ceroulas estilizadas", camisas e tangas... dão o tom do espetáculo. Tudo muito divertido.

     No cenário de Julia Deccache e Carla Ferraz tudo pode acontecer, até se vender o solo da terra recém descoberta "a um Real!". Os "vendilhões da pátria" daquele momento apregoam e oferecem aos espanhóis, e a quem quer que apareça por lá, essa bagatela do nosso solo! Tudo muito atual. Aos "aborígenes" a oferta foi outra, de apitos, berloques e até armas, pois a loucura desencadeada a tudo permite. E a gente "muito viva" que se apresenta na ocasião da descoberta, principalmente "o Bacharel da Cananéia", (personagem real), que conta a historia através de sua ótica. O esperto Cosme Fernandes, o "Bacharel", é o protagonista que tudo consegue, até casar com a filha do cacique e conquistar terras. É ele o nosso Serra, "o desenfreado", que oferece aos portugueses, espanhóis, franceses, "e quem mais vier", as novas terras, por um tostão de mel coado.

     Os atores, em ordem alfabética (e sinto não poder falar separadamente de cada um deles), são: André Rosa, André Vieira, Daniel Belmonte, Felipe Frazão, João Marcelo Iglesias, Jojo Rodrigues, Rômulo Chindelar, Sarah Lessa, Thiago Chagas. Tomaz Nogueira e Victor Albuquerque. Destaco apenas as ótimas interpretações de Felipe Frazão, Sarah Lessa, André Rosa e Jojo Rodrigues, a filha de Cosme Fernandes; Ibiracê. Sarah e seu personagem Terebê, filha do cacique, por estarem nas fotos a que tive acesso... (assim é que se fazem as reputações, para o bem ou para o mal - pura sorte). André Rosa, como um dos Cosme Fernandes e Felipe Frazão, em particular, pelo destaque de sua interpretação. Ele é o Cosme mais novo e também interpreta outros personagens. O Cosme "do meio" é Victor Albuquerque (aos poucos, a produção vai "liberando" o nome dos atores e personagens... nem tudo está pedido! Acontece que eles estavam sem o programa da peça, na estreia). 

      Mas o elenco é, todo ele, vigorosamente talentoso.

.     A adaptação para teatro do texto ficou a cargo de André Vieira (um dos atores), Daniel Belmonte e do diretor Marcelo Valle. A codireção é de Danilo Moraes: os dois realizaram um trabalho primoroso. A direção de movimento é de Dani Cavanelllas.   
  
     Muito atual, essa releitura dos primeiros 30 anos da terra descoberta. Pensando bem, "Terra Papagalli" é uma releitura do atual "desgoverno" brasileiro.      Aconselhamos ao público amante de teatro (e quem quiser começar a amá-lo) a não perder este espetáculo histórico e ... EXCELENTE!
     

terça-feira, 19 de julho de 2016

"UM NOME PARA ROMEU E JULIETA"

Enquanto Romeu e Julieta são representados por atores fixos, outros quatro atores se revezam entre os personagens coadjuvantes (Foto: Divulgação/Anna Clara Carvalho)
"Um nome para Romeu e Julieta", direção Dani Lossant. Atores Diogo Liberano e Carolina Ferman, interpretando os apaixonados de Verona. (Foto Clara Carvalho)


IDA VICENZIA

(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)

(Especial)


UM NOME PARA ROMEU E JULIETA  

   
     De repente aquela coisa toda de "desconstruir" Romeu e Julieta, os dois apaixonados de Verona. E o texto de Shakespeare vai se decompondo, atingido por um tom poético insuspeitado. Brinca-se com ele, e o resultado é a alegria do amor. Os dois não morrem, no final... eles simplesmente embarcam na "mortal loucura" que é o amor. Eis um bom título para a peça, já que somos desafiados a pensar em "Um nome para Romeu e Julieta".

     Puro desafio: alguém já havia pensando nisso antes ... Foi Gregorio de Mattos, possivelmente em outro contexto. "Eles": elenco, direção, adaptação e demais participantes do trabalho, apresentam-nos a música que tanto fica gravada em nossa sensibilidade. Ela é cantada por Letícia Novaes (gravação), arranjo e produção musical de Fabio Lima. A trilha original que sinaliza os movimentos dos atores e das sequências é de Luciano Corrêa.   
       
     Trata-se de uma montagem de Shakespeare por um grupo de atores que sempre têm algo novo para apresentar ao público. Dessa vez Diogo Liberano não está na direção, mas Dani Lossant, a iniciadora de todos os vôos, na UFRJ e na Uni Rio; trabalhou essa adaptação em 2006 com outros atores, e hoje também a dirige. Porém, há sempre "uma batalha renovada". Por que "batalha"? Quem faz teatro sabe o porquê dessa palavra.

     Vamos a ela: os elementos trabalhados são mínimos. Uma arena teatral, um retângulo iluminado que é 'chão e céu', local aonde os acontecimentos e os pensamentos se reúnem. Desafios. Durante o espetáculo as palavras vão sendo encontradas, e escritas, pelos atores... em algo que imaginamos ser a "desconstrução", em lama e pó, daqueles seres vivos. Ao finalizar o espetáculo percebemos que "elas", as palavras, nos contam historias... Olhem só que linda, uma das frases escritas no chão: "E de te amar assim muito e amiúde, é que um dia em teu corpo de repente hei de morrer de amar mais do que pude".   

     Frei Lourenço e o casal de adolescentes apaixonados carregam aquilo que será a sua perda: em uma das mãos o punhal, na outra, o veneno. É um jogo sutil e impressionante. Os duelos e as mortes são simplificados, e também os que levam a "mortes praticadas". Por Romeu, um exemplo - e são mortes caracterizadas, como a do "jogo do gato", quando o rompimento da  corda é o rompimento da vida. Não há necessidade de palavras.

    Alguns trajes localizam as personagens, principalmente as mulheres. Os homens em roupas cotidianas. Objetos de cena? Mínimos, como são mínimas as citações à tragédia que virá.  Entretanto, ao mencionar "palavras", o que temos é um jogo poético, criado pela própria equipe (Dani Lossant e Diogo Liberano - colaboração dramatúrgica), de uma beleza singela e esclarecedora. A historia dos apaixonados de Verona é contada em uma hora e trinta minutos, e o poeta inglês está contido nestes minutos.
     Olhem só: às vezes o texto nos traz lembranças do autor inglês; às vezes a poesia se iguala a dele, porém Dani e Diogo se encarregam "dela" (a poesia). Coisas de quem aprendeu a "jogar o jogo" e vencer a batalha!

     Pois temos Diogo Liberano e Carolina Ferman interpretando os enamorados; Morena Cattoni entre a serva amiga e a mamã; e todos os Capuletos e Montecchios que a historia tem direito, representados pelos bravos atores que seguram o ritmo acelerado da encenação, temos Marcio Machado interpretando os pais de Romeu e Julieta, e ainda Frei Lourenço. Machado o faz, sem perder o tom. Para ele tal façanha é um brinquedo, ator de presença forte que é. Os amigos e os primos estão presentes nos desempenhos de Andrêas Gatto e Daniel Chagas. Um elenco de bons atores.    
  
     O texto é adaptado de uma tradução de Onestaldo Pennafort. Na direção de movimento e preparação vocal temos, respectivamente, Nathália Mello e Verônica Machado. Figurinos de Luci Vilanova. Iluminação detalhada, fechando em cada assunto pertinente, de Daniela Sanchez. VALE Á PENA ASSISTIR.
                

terça-feira, 12 de julho de 2016

"KRUM"




                                                             Foto "KRUM" (Nana Moraes)

"KRUM". Autoria Hanoch Levin, direção Marcio Abreu.
(Foto de Nana Moraes) 
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     KRUM, do dramaturgo israelita de origem polonesa, Hanoch Levin (tradução de Giovana Soar, adaptação do diretor Marcio Abreu e de Nadja Naira, tradução do hebraico de Suely Pfeferman Kagan), é uma peça psi. Explico: ela vai se escrevendo através das idiossincrasias de seus personagens e, aos poucos, no decorrer das cenas limitadas por blackouts, as "neuras" dos jovens (e não tão jovens) começam a se tornar visíveis, formando um texto possível. A ação se passa em de um lugarejo perto de Tel Aviv, ou em seus arredores - wherever - o fato é que  vive-se em um lugar claustrofóbico. Tal façanha nunca foi fácil, como sabemos.

     Podemos dizer que o mais interessante na "musculatura" da peça é o relacionamento entre mãe e filho. O autor não abandona o arquétipo "mãe judia", mas o faz com total independência dos mestres na questão (não vamos falar em Woody Allen, por favor!), pois nos encontros e desencontros dessa dupla, na peça, grita-se, sim, o tão famoso relacionamento umbilical de dominação materna. Mas, olhem só: há uma interdependência quase escandalosa; há, sublinhando o "quase indecente" da cena, uma antológica interpretação de Grace Passô, que pode transformar em expressão (cênica) tudo o que o autor quer transmitir. Danilo Grangheia, o filho, acompanha à altura o desempenho desenfreado dessa atriz, que está perfeita tanto em seu papel de mãe quanto em sua transformação em mulher fatal (aliás, outro dos grandes momentos do espetáculo, dirigido a "corações de aço!"). Embora com as presenças fortes de Passô,  Sorrah (Renata), e Vianna (Inêz), quem está encarregado de dar estrutura à peça é Danilo Grangheia, (aliás, a "estrutura" dessa peça é algo interessante e fora do comum).

     Estamos lidando com seres medíocres e desinteressantes. Muito bem. Mas tal espécie a temos em qualquer latitude. O que o elenco, diretor e demais agentes dessa produção teatral, conseguem, é nos confirmar o desespero em torno de algo tão insólito. Mais perfeito não poderia ser.  Grangheia, em seu personagem Krum, por exemplo, retrata o desespero sem se deixar sugar pelas aflições do personagem, apesar de sua entrega total. Aliás, as frustrações existem porque nenhum dos habitantes do lugar percebe "que a vida é uma causa perdida", como diria o nosso querido mestre Antonio Abujamra. Mas Levin, como não é brasileiro (e esse é um de seus grandes defeitos), não consegue transformar tudo o que vemos em cena, em algo verdadeiramente insólito, para nós, que estamos vivendo o insólito em nosso dia a dia. Mostram-se bumbuns, fala-se palavrões, desgosta-se com a vida, mas não ficamos impactados, como acontece  no espetáculo do Grupo Galpão, outra direção de Abreu, porque os habitantes desse lugar, em KRUM, estão em um lugar fora do mapa, perto de Tel Aviv, lugar esse que não nos fala ao coração, como nos fala o Brasil atual!

     Mas não é isso o que o diretor Marcio Abreu está querendo nos dizer, quando escolheu este texto para montar com a sua companhia brasileira de teatro. Ele estava pensando nas guerras, no obscurantismo, nos nacionalismos crescentes ...  porém, o que assistimos na peça é o retrato da vida refletida na pobreza do cotidiano de pessoas comuns. Elas parecem tão pequenas, em seus pequenos problemas, mas são, pensando bem, estes problemas que movem o mundo! Neste segmento das pessoas que "movem o mundo", em sua pequena/grande reprodução e inutilidade, vamos ver refletida a personagem de Inêz Viana, patética em sua inadequação para a vida. Ponto para Vianna. Não lhe fica atrás Renata Sorrah, interpretando a mulher apaixonada em seu pequeno mundo do "amor a qualquer preço". Sorrah e sua intensidade artística - dessa vez conduzida com bom humor e certa visão critica - não caindo em dramaticidade desnecessária. Ah! Quem não gostaria de ter Renata Sorrah em seu elenco?

     Os atores são muito bons. Há Rodrigo Ferrarini, como o apaixonado; Ranieri Gonzalez, o homem que resolveu viver; ou Edson Rocha, Cris Larin e Rodrigo Andreolli, tornando possível um espetáculo inovador, em se tratando desse povo tão sem chama própria, como é a pequena burguesia de uma cidade do interior - ou "dos arredores de uma grande cidade", como quer o autor Levin.

     Não foi possível esconder o horror que nos causa Israel e suas guerras. Talvez a intenção do autor seja esta mesma: causar repulsa. Conseguiu. E o diretor conseguiu dar continuidade ao seu trabalho, "um fator essencial" - segundo ele, manter viva uma companhia, apesar dessa condição política adversa que se estabeleceu em nosso Brasil. O eco dos acontecimentos recentes (estamos em julho de 2016), ainda não se refletiu em sua "companhia brasileira", e o diretor está certo, ao procurar mantê-la viva. Coisas terríveis acontecem neste mundo, e a peça trata justamente do tipo de pessoa que só se preocupa com problemas de seu  cotidiano, enquanto o mundo ferve, e o egoísmo impera. Também nesta pequena sociedade, retratada em KRUM, o egoísmo impera.

     Diz o autor Levin, que se trata de uma "comedia". O que mais se aproxima deste gênero, em se tratando de KRUM, é o relacionamento do filho amante, o homem desinteressado em outras mulheres, até o momento em que vê surgir a cópia da mãe, em uma mulher livre e "fatal", que transforma o arquétipo - "a mãe judia" - em um problema freudiano. E há  um segundo momento em que podemos considerar o texto uma "comédia": a maneira pela qual os homens vêem aquela que surgiu "de um mundo estranho", até o momento em que "a mulher" (interpretada por Grace Passô ),  se transforma em modelo de transgressão.     


     Passô, Grangehia, Sorrah e Vianna nos brindam com momentos convincentes no espetáculo. De difícil andamento, para uns; de possível inovação, para outros, assim KRUM surge, no mundo teatral brasileiro. Não deixa de ser algo incomum, mesmo neste rico mundo que se apresenta, atualmente, no teatro carioca. Temos na ficha técnica a direção de movimento da grande Marcia Rubin, que transforma Grace Passô em quase uma bacante, na cena erótica com o "italiano" (será Rodrigo Ferrarini?), em excelente jogo cênico. O movimento dos atores, em sua totalidade, é preciso, incorporando e acentuando a personalidade de cada um. Ponto para Rubin. E as várias modalidades que se entrelaçam, nesta transformação da concepção de cenário (KRUM entra nesta "concepção pós-dramática"?), se podemos assim chamar, o pós-dramático tomou conta da cena atual, quando um certo "simbolismo" (ou o mistério que nos ronda) torna-se uma complementação da imaginação - ou do "caos" - levado em cena. O cenário é de Fernando Marés. Iluminação precisa de Nadja Naira; efeitos sonoros e trilha de Felipe Storino. Figurinos (ótimos) de Ticiana Passos. Interlocução artística, Patrick Pessoa. Assessoria de Imprensa, Factoria Comunicação.  VALE Á PENA ASSISTIR KRUM!          

quinta-feira, 7 de julho de 2016

"NÓS"

Elenco "Nós" e seus instrumentos musicais.
(Foto Cristina Granato) 


IDA VICENZIA
(da  Associação Internacional de Críticos de Teatro  - AICT)
(Especial)
"NÓS"
     O diretor Marcio Abreu, da companhia brasileira de teatro, com sede em Curitiba, está atualmente em cartaz, no Rio de Janeiro  com dois espetáculos: "Krum", de sua própria companhia, e  "Nós", espetáculo que ele dirige para o Grupo Galpão, de Belo Horizonte. Fomos assistir "Nós", e saímos impactados. Podemos constatar uma cumplicidade total entre os atores e o público, coisa de vida vivida! Como é bom ver um assunto que nos interessa tanto (a vida) se desenvolver diante de nossos olhos, sem pretensão de dar ensinamentos ou desenvolver pregação; somente  comentando, e o público constatando.

     É  bom ver um trabalho inteligente e sem "star sistem" (desculpem). No elenco, todos e cada um dos atores é essencial, neste jogo de comentar a vida, e aceitá-la como ela se apresenta, ou não. O fato é que o desafio nos pega, e, de repente somos confrontados com o nosso presente. Tudo enquanto os participantes ("Nós") preparam uma sopa, que, aliás, é muito gostosa (quem a provou pode confirmar). Mas fomos confirmar o atual trabalho do Galpão, dirigido por Marcio Abreu.

     Este diretor, carioca porém eclético, diz gostar de abismos. De fato, estamos o tempo todo à beira do abismo, neste espetáculo, confrontados com diferenças que nos levam a extremos, dentro de nosso presente. Assim, testemunhamos violência, preconceito, amor, amizade, tudo misturado, como é natural em nossa vida. A destacar vários momentos: há uma verdadeira homenagem a Teuda Bara, atriz que mantém vivo o nome do Grupo, tornando-o inesquecível, desde sua interpretação de Ama, em "Romeu e Julieta". Um destaque, pois. A simplicidade com que ela torna  possível enfrentar tantas coisas da vida - como amor e desamor, rejeição e acolhida, compreensão e incompreensão. Porém há destaques o tempo todo, tornando o espetáculo uma experiência renovadora, em termos teatrais.

     Assim, em cena Eduardo Moreira, que também colabora com Marcio Abreu  na organização do texto. Ou Julio Maciel, ou Chico Pelúcio. São sete atores comentando os últimos acontecimentos que abalam a todos nós, brasileiros. Além dos já citados, estão em cena Inês Peixoto, Antonio Edson, Beto Franco, Simone Ordones, Paulo André, Lydia Del Picchia, Arildo de Barros, Fernanda Vianna. A análise do texto é perfeita, inclusive em termos da "roleta histórica", que sempre faz o jogo retornar. Este retorno é realizado com transparência pelo elenco.

     A cenografia é um espetáculo à parte. Marcelo Alvarenga, da Play Arquitetura, conseguiu algo fascinante, com seus vários planos e espelhos que tornam a superfície do palco algo incerto, representando assim a incerteza desestabilizadora de nossa vida. Os figurinos de Paulo André jogam com o cotidiano. E a iluminação complementa as incertezas do cenário: um jogo duplo. Os efeitos sonoros de Felipe Storino são complementares e essenciais.  


     O espetáculo de Marcio Abreu é tão envolvente que os cinco sentidos não são suficientes para capturar tudo o que está acontecendo. Voltamos ao inicio destes comentários, quando dizemos que o espetáculo nos deixou impactados. Sim, participamos de tal maneira, que só podemos, ao comentá-lo, mostrar o envolvimento que (quase) nos fez perder a capacidade critica: se é verdade que o teatro pode "mudar o mundo", como é o sonho de todo artista, podemos dizer que assistir "Nós" é uma experiência transformadora. Quem o assistiu nunca mais será igual. Experiências como esta são positivas e podem mudar a cabeça das pessoas. BRAVO!