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domingo, 31 de agosto de 2014

RETRATOS FALANTES

Brian Penido Ross em "Fritas no Açucar", direção de Eduardo Tolentino

Zécarlos Machado em "Brincando de Sanduíche", de Alan Bennett, dir. Tolentino



IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Sempre que o Grupo Tapa vem ao Rio de Janeiro, é bom não esquecer de visitá-lo. Agora no Sesc Copa, até 14 de setembro, vocês vão ter a possibilidade de ver teatro, com T maiúsculo, em um espetáculo de horror absoluto. Trata-se de "Retratos Falantes", de Alan Bennett, interpretado por dois magníficos atores que são Brian Penido e Zé Carlos Machado.
Estamos também nas mãos de um dramaturgo inglês, Alan Bennett, que ficou famoso ao criar  Beyond the Fringe (apresentado no Edinburg Festival, o "Fringe"), um comédia satírica que lançou os meninos oxfordianos no circuito além Londres/New Yok. O autor é fruto dos anos 60, e sua irreverente versão da sociedade inglesa é anterior aos também oxfordianos Monthy Python. Acontece que depois de muitas peças (de sucesso!) Bennett aceitou fazer uma série para a BBC de Londres, de onde surgiram os monólogos agora apresentados no Brasil. Trata-se de "On the Margin", e pelo título podemos perceber que os modelos para os personagens são pessoas que ficaram à margem, os "gauches" terminais, pessoas frustradas e inquietas que pertencem a uma sociedade que não lhes dá espaço.  
O Grupo Tapa pegou dois monólogos de "On the Margin", cujos títulos são absurdos: "Fritas no Açucar", no qual o excelente ator Brian Penido aproveita para ter um desempenho de uma atrocidade ferina e amorosa sobre certo relacionamento que todos nós temos, ou vamos ter, com a pessoa amada. Fica estabelecido que o critério de "pessoa amada", neste contexto, se estende a todos os relacionamentos fortes que temos durante a vida, livrando-nos do rótulo absoluto de "relacionamento forte" como sendo o casal (hetero ou homo) que se ama. Este monólogo abrange o amor com sutil serenidade e, às vezes, com realidade ferina. Destacamos o desempenho de Penido, um dos grandes atores do Tapa, que talvez não tenha o reconhecimento merecido pela perfeição de seu desempenho. Quem assistir a "Fritas no Açucar" pode constatar o afirmando.
Zé Carlos Machado é o responsável pelo horror que desconcerta o público e o faz aprendiz dos tempos e ritmos de um monólogo. A plateia perde o compasso. Talvez, o único problema do texto seja  podermos perceber, desde o início, o seu desfecho. O titulo do monólogo é "Brincando de Sanduíche", e a maldade realista que encena nos arrepia. O público do Sesc Copa tem que se decidir sobre como proceder diante do inusitado: o que não se pode é confundir cortes de luz com final de espetáculo. Aliás, foi o que aconteceu com "Brincando de Sanduíche", atrapalhando os que estavam acompanhando a cena dantesca. Fica o registro.
Quanto a Zé Carlos Machado, já estamos acostumados, público do Tapa que somos, com sua personalidade de ator, sua sensibilidade. O que nos tomou de admiração e nos empolgou foi o desempenho de Brian Penido, sempre tão contido, em perfeita comunicação com os três personagens interpretados por ele. Penido retirou de seu desempenho uma ironia crítica que torna possível a análise dos personagens,  sem perder o conteúdo dos mesmos. Este recado sutil para a plateia é inerente aos grandes atores, e Brian Penido é um deles.
Há ótimas parcerias entre técnica e direção. Eduardo Tolentino, frente ao grupo, trás a garantia do espetáculo correto, e ao mesmo tempo imprevisível. Em suas encenações há uma crítica irreverente a tudo o que acontece ao seu redor. Pode ser em um espetáculo de Maquiavel (principalmente), ou em um Nelson Rodrigues; a ironia transmitida pelo diretor, no que se refere a esta nossa maneira de viver no mundo, está sempre presente, ampliando a voz do autor. O iluminador também faz das suas, principalmente na cena da prisão. Talvez, para Nelson Ferreira, tal feito não seja tão surpreendente assim, porém para o público é simplesmente de um efeito claustrofóbico impressionante. Figurino acertado de Lola Tolentino, despojado, mostrando atores em sua maneira de ser, a partir do século XX. Tradução de Clara Carvalho para "Fritas no Açúcar", e de Augusto Cesar, em "Brincando de Sanduíche". Registramos a sempre profissional e "aconchegante" Assessoria de Imprensa de JS Pontes Comunicação (Stella Stephany e João Pontes). Designer gráfico de Daniel Volpi.                   
      

domingo, 10 de agosto de 2014

DONA SAUDADE

Jaderson Fialho (Carlos), Ivone Hoffmann (Dona Saudade), Brígida Menegatti (Luisa), Fabio Cardoso ( Vicente), Isabella Dionísio (Maria Isabel), em "Dona Saudade", direção de Camila Amado.


DONA SAUDADE

Ida Vicenzia
(da Associação Internacional de Criticos de Teatro - AICT)
(Especial) 

É sempre interessante perceber a escola européia influenciar nossos autores. Desta vez é o jovem Bernardo Florim, dramaturgo várias vezes premiado, que nos apresenta, em pleno século XXI, uma das mais belas peças simbolistas vistas ultimamente. A ação se passa junto ao mar (a atração do mar) e mulheres solitárias, fantasmas e jovens apaixonados convivem com a mesma emoção: a solidão. Com exceção de Maria Isabel (Isabella Dionísio), que percebe a vida com emoção e alegria. Recente estreia no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil., "Dona Saudade" merece uma visita do público.

Em um espaço aberto (cenografia de Doris Rolemberg), à direita de quem entra na despojada arena teatral há um telão, projetando o nascer do sol. Há várias interpretações para este alvorecer, ficamos com a beleza do espetáculo da natureza. Este é o primeiro símbolo identificado. Dona Saudade (Ivone Hoffmann) surge na cena com uma expressão angustiada. Aos poucos o clima vai se adensando, e o público reconhece o motivo de tanto sofrimento: Dona Saudade pensa na filha morta. 

Seu sofrimento é povoado de reminiscências do passado, mas também o presente interage, estabelecendo um jogo poético. A filha Luisa (interpretada com intensidade por Brígida Menegatti), alterna momentos de rebeldia e fuga, e seu retorno vive sempre na imaginação da mãe. Luisa está presente, viva ou morta, na recordação dos vivos. Certamente o autor, que deixou livre para a crítica o espaço da interpretação, não esperava uma visão simbolista "maeterlinckiana" para a sua obra. No entanto, o tráfego espiritual que ronda a ação nos faz lembrar os cânones simbolistas. 

O presente é reconhecido pela intervenção de Carlos (Jaderson Fialho), na qual o constante diálogo com Dona Saudade vai inspirar-lhe a escrita. Há também o jovem Vicente, que procura vestígios do túmulo da mãe morta (Luisa). E sempre a menina Maria Isabel, tentando ser livre e acreditando na vida. O autor, como já foi mencionado, deixa explicito no programa qual a sua intenção ao escrever esta peça, mas deixa o terreno livre para quem quiser refletir sobre ela. Com efeito, pode haver vários olhares para o que ocorre em cena. 

"Dona Saudade" é uma pequena joia, na qual os amantes da delicadeza encontrarão motivos de júbilo. Há mortos que retornam (inesquecível a cena em que Luisa morta se confronta com Carlos. O olhar distante da morta parece reconhecer algo do passado), há coisas não ditas que aos poucos vão sendo desvendadas. E a motivação da filha em sua procura por uma vida nova vai transformar a mãe, afetada pela tristeza do abandono. Ivone Hoffmann comunica a emoção, a tristeza e a indignação pelo abandono. Seu desempenho é algo a registrar.

A luz de Luiz Paulo Nenen e a cenografia de Rollemberg ampliam o espaço cênico, limitado, do Teatro III. A direção de movimento é de Rafaela Amado. A música, de Marcelo Alonso Neves, é responsável pelo clima onírico da peça (prometemos, da próxima vez, anotar as sutilezas musicais deste ótimo profissional). Há frases (não musicais), desconexas no texto, como a citação da "filosofia que não é para mortos, que não pensam em nada", surgida ao acaso, sem ligação com o que acontece em cena, reforçando o "estilo Maeterlinck", inconsciente, do autor. A diretora Camila Amado, que também é responsável pela concepção do espetáculo, realizou um trabalho sensível, que aprofunda as possibilidades do texto. O autor Bernardo Florim foi premiado três vezes pela Seleção Brasil em Cena, do CCBB. No entanto, esta peça parece um reflorescer da fase simbolista de Henrik Ibsen ou do estilo de Maurice Maeterlinck, o que a torna bastante européia. Diz o autor de 21 anos que a escreveu tentando "romper a casca (da família) que, tentando me proteger, apenas me separava do resto do mundo" Está explicado.

sábado, 9 de agosto de 2014

UMA VIDA BOA

Julainne Trevisol e Amanda Vides Veras em "Uma Vida Boa", direção de Diogo Liberano (foto Paula Mello)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Como dizia o nosso Paschoal Carlos Magno "teatro é humildade". O papel do crítico também "é um ato de humildade", e incensar um espetáculo não deveria incentivar vaidades. "La critique est l'art d'aimer", e o olhar cansado desta crítica se detém, no caso de "Uma Vida Boa", na esperança de algo diferente. E encontra vida, fúria, loucura e humildade no texto, refletindo o humano. Os sentimentos primordiais nos levam a enfrentar o nosso "outro lado", o lado cruel que nos habita. É aí que reside o verdadeiro teatro. Em "Uma Vida Boa", ou em "Sinfonia Sonho", uma "inominável" caixa de segredos nos é desvendada pelo diretor Diogo Liberano. 

Na peça criticada somos apresentados a uma atriz. Ela se chama Amanda Vides Veras, que, interpretando B, o menino/menina, nos enche de ternura. Este sentimento, combinado com o ódio que nos desperta a testosterona em excesso do personagem de Daniel Chagas (que é uma doce criatura, conforme nos revela nos aplausos finais), e Julianne Trevisol, uma promessa de atriz que entende e ama aquele ser diferente. Na verdade, a peça é o retrato de um acontecimento real, um assassinato que assombrou o mundo, comprovando que o "outro", o diferente, provoca ódio. Nesta historia toda, Diogo Liberano faz questão de nos levar pela mão para caminhos que negamos, ou não queremos lembrar que existem. Temos a sensação de nos tornar melhores. Enfim, esta é a finalidade da arte. Sim, os massacres existem ("Sinfonia Sonho"), a fúria e a bestialidade também existem, e estão hospedados em "Uma Vida Boa". E, de repente, estamos amando (e odiando) os personagens fictícios (ou reais), que já fazem parte de nossas vidas. 

Os três atores são convincentes, e possuem uma técnica apurada. Meninos "também" choram, e passam do pranto ao riso. A tristeza do personagem B está em controle profundo; o menino sabe esconder a sua historia. Atores, dizem, são seres perigosos, com a sua "aura" e a sua técnica. No caso de Amanda, a voz e a postura feminina, quase infantil, apresentada quando se dirige ao público no final, é surpreendente. A sua mudança de atriz/menina para um rapaz, no palco, é também credenciada a João Pedro Madureira, com a direção de movimento, e a Verônica Machado com o seu trabalho de voz. Trata-se de um trio de grande qualidade. 

A trajetória do transexual é narrada com modernidade teatral. As mudanças de espaço e tempo são interpretadas como acontecimentos reais. Mas devemos ficar atentos a estas mudanças, pois vemos surgir, nas ruelas escuras de nossa imaginação, e nas barras das prisões, a menina "cuja alma está em desacordo com o seu corpo". Essas aparições nos transportam ao encontro final das duas meninas. Trata-se de algo simbólico. Um gramado é projetado em espaço ilusório, como se, para elas, houvesse futuro. E, finalmente, o assassinato de B. Este é o último olhar no drama. O cenário de Brunella Provvidente, e a iluminação de Daniela Sanchez nos transportam, assim como a trilha sonora de Diogo Ahmed Pereira, para os locais onde a trama se desenvolve.

No início do espetáculo nos deparamos com algo que se tornou a marca registrada do diretor. Através de molduras e transparências iluminadas com cores vibrantes, há a apresentação dos atores, que, com emoção contida, estabelecem o clima que virá depois. Quem viu o filme "Meninos não choram" nunca poderá imaginar o espetáculo do Centro Cultural da Justiça Federal. O cinema tem as suas limitações...

Finalizo com a frase do autor Rafael Primot: "As pessoas mentem, matam e se transformam em outras para esconder segredos e seus desejos. E a vida pode ser muito mais simples que isso - e muito menos dolorosa também. Então é preciso aceitar nossa pluralidade como seres humanos".

terça-feira, 5 de agosto de 2014

A DAMA DO MAR

"A Dama do Mar", de Henrik Ibsen, dirigida por Paulo de Moraes (foto Vanessa Cardoso) 


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

A DAMA DO MAR
Em cartaz no Teatro Laura Alvim "A Dama do Mar", da fase simbolista de Henrik Ibsen. O diretor Paulo de Moraes capturou o sofrimento da "Dama", em sua tentativa de sobreviver a um naufrágio do espírito. Nesta releitura de Ibsen, Moraes resistiu à tentação de acrescentar, como costuma acontecer em encenações desta peça, pirotecnias que fazem distrair a fala do autor. É verdade que Moraes não se negou a cenas de impacto, porém, na versão de Maurício Arruda Mendonça, a solução narrativa não se perdeu. Como de hábito, Paulo de Moraes abrigou, no cenário por ele criado, um espaço para a excitação visual (a representação do mar). Essa é uma representação bem sucedida, que não interfere na vida cotidiana da família Wangel, pois é passada na recordação da Dama.
A peça trata, essencialmente, de libertação. É através da personagem de Élida, a Dama do Mar, que o autor desenvolve seu tema preferido: dependência e libertação. Há, no relacionamento de Élida com Wangel, o marido, a marca da dependência e da loucura. Essa dependência é mostrada  principalmente através do relacionamento de Élida com o personagem Estrangeiro. Élida declara que não pode olhar em seus olhos. Ela teme, e ao mesmo tempo é fascinada por esta personagem que a liga ao Mar. É como se uma estranha energia a comandasse. A Dama "pertence" ao Estrangeiro, e Ibsen concretiza este "pertencimento" através da união dos dois pela água, em uma cena muito bem sucedida, na criação de Moraes.
Para Élida, este é o mistério que a tudo transforma: e que a faz declarar "eu costumava ser o Mar e sempre voltar ao começo de tudo, mas aos poucos foram me aterrando, me afastando". Este afastamento é o momento mágico da peça. O autor insinua, de maneira sutil, nesta fala de Élida, a passagem do homem de seu habitat natural, a água,  para se transformar, ainda na forma de um réptil, em um habitante da Terra.
A história se passa na intimidade da família Wangel, e dos acontecimentos que a estremecem, sendo o principal a transformação da "Dama do Mar" (é assim que as filhas de Wangel a chamam), em uma criatura amorosa. Este médico viúvo se casou com Élida por amor, e é este envolvimento de amor que proporciona a liberdade de escolha da Dama. Finalmente ela descobre que o Estrangeiro não interfere mais em seu caminho.
Esta é a visão geral do que é narrado. É preciso compreender o que levou Ibsen a contar esta história que é também a historia da evolução da burguesia. Os personagens femininos de Ibsen sempre dão um passo a mais nesta evolução. O livre arbítrio de Élida estabelece a mudança.
A atriz Tânia Pires está convincente no papel da "Dama". Ela possui uma "aquosidade" no olhar que a transforma em um ser "do mar". Seus gestos, indecisos, oscilam entre sentimentos opostos. A atriz passa muito bem para o público a angustia de Élida. Aliás, os personagens de Ibsen, em geral, e principalmente nesta peça, oscilam entre "fantasias inquietantes" e a realidade. Essa fantasia é também vivida pelo jovem Lyngstrand (Leonardo Hinckel), que desconhece a sua precária situação de saúde e insiste em projetos artísticos. Leonardo se coloca em uma posição bem definida entre o jovem ambicioso, e seu cândido egoísmo. Ele quer ser um escultor famoso. E aqui observamos, que nas peças de Ibsen, há sempre uma alusão à escultura como representação da vida. Lynstrand quer esculpir, mas, curiosamente, sua proposta é uma representação da morte.
A Dama busca o amor e o acolhimento da família, na qual ela se sente uma estrangeira. Wangel, o marido, interpretado por Zeca Cenovicz, mostra a aceitação (e resignação) do amor. Ele é a pessoa forte, o representante do homem. Cenovicz está adequado ao personagem. O "Estrangeiro" de João Vitti acumula momentos de sedução e agressividade com precisão assustadora. As duas irmãs, Bollete e Hilda, filhas de Wangel, interpretadas por Renata Guida e Andressa Lameu, permanecem (quais personagens de Tchecov) sonhando em abandonar o fjord e "viver a vida", coisa que jamais farão. Ambas resolvem seus problemas de maneira prática e alegre. Ao declararem seu amor pela madrasta, eliminam a sensação de exclusão que atormentava Élida. A propósito, os figurinos das irmãs (de Carol Lobato), acrescentam uma colocação temporal de moças bem educadas às duas irmãs. Bem ao estilo século XIX, elas não possuem rebeldia ou agressividade. Quero significar com isso que o texto e a indumentária foram respeitados. O professor Arnon (Joelson Medeiros) representa uma opção de futuro para as meninas, uma libertação dos fjordes, porém ele jamais alcançara o seu desejo.
Maneco Quinderé é o responsável pelas delicadas mudanças de luz entre o real e o simbólico. O texto de Ibsen mostra-se atual, e pode conduzir o público a um entendimento do autor. A trilha sonora original é de Ricco Viana. Há algumas fragilidades na narrativa cênica, é desnecessário, por exemplo, aquele aquário, representando para as irmãs os habitantes da água. A idéia é boa, porém chocante (talvez esta seja a intenção do diretor/cenógrafo). Na verdade, encenar Ibsen não é uma fácil missão. Devemos aplaudir esta iniciativa agradável.