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domingo, 14 de junho de 2015

"ANTONIOABUJAMRA - CALENDARIO DE PEDRA - UMA BIOGRAFIA" - INTRODUÇÃO - III PARTE

Última foto de Antonio Abujamra com a sua biógrafa Ida Vicenzia. (Arquivo TV Cultura)




           IDA VICENZIA
           (da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
           (Especial)

           (Eis o trecho final da apresentação de "Antonio Abujamra - Uma Biografia")

                                    OS POETAS ORIENTAIS        

                                      A CASA DE HÓSPEDES
                                     

Toda manhã uma nova chegada/A alegria, a depressão, a falta de sentido, como/ visitantes inesperados Receba e entretenha a todos/ Mesmo que seja uma multidão de dores/ Que violentamente varre sua casa e tira seus móveis/ Ainda assim trate seus hóspedes honradamente/. Eles podem estar te limpando/ para um novo prazer./ O pensamento escuro, a vergonha, a malicia,/ encontre-os à porta rindo,/ Agradeça quem vem,/ porque cada um foi enviado/ como um guardião do além//. 
 Muhmmad Rumi
         poeta persa/iraniano
             Obra: Masnavi séc. XIII)


              
     O que tem este poeta persa a ver com Antonio Abujamra? Tudo. Todos os (bons) poetas deságuam em Abujamra. É preciso dizer que ele não escreve, mas vive a poesia. Essa Casa de Hóspedes pode ser a sua casa "interior". Quem o observa vê nele uma simbiose entre o "acolhedor", o "indiferente" e o "sensual". Pura proteção, para disfarçar tanta ternura. 
     Essa coabitação o ajuda a enfrentar o seu "Calendário de Pedra". Não tentem compreender o momento em que este "calendário" se estabelece. Ele é, "desde sempre", e a luta de Antonio contra os "invasores" da casa de hóspedes faz a sua História. Abujamra parece ser contra tudo o que acontece entre os humanos. Ceticismo? Sim, e realismo. Mas, apesar de cético, ele acredita em mudanças. Não fosse assim, não distribuiria para os amigos a carta escrita por "Tchê" Guevara para os filhos, carta essa que poderia ser endereçada a seus próprios filhos, Alexandre e André:
 "Hasta la vitoria, sienpre!"
 "A meus filhos... Seu pai tem sido um homem que atua como pensa, tem sido leal as suas convicções. Cresçam como bons revolucionários. Estudem muito para que possam dominar a técnica que permite dominar a natureza. (...) Que vocês sejam capazes de sentir como se fosse com vocês qualquer injustiça que seja feita com qualquer ser humano em qualquer parte do planeta (...) o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de generosidade; é impossível imaginar um revolucionário autentico sem esta qualidade (...) vale milhões de vezes mais uma vida de um único ser humano do que todas as propriedades do homem mais rico da terra. Hasta sienpre, hijos, espero vê-los ainda. Um beijo enorme e um grande abraço do Papai" (Carta escrita em abril de 1965, antes da partida de Guevara para o Gongo)
   
                                    FOTO
                        GUEVARA COM A FAMÍLIA
 


      A determinação de Tchê Guevara é a de um guerreiro; a de Antonio Abujamra é afirmada pelo sonho do artista. Há, entretanto, entre os dois românticos uma historia comum a ser contada: enquanto Guevara preocupa-se com o abandono dos povos, Abujamra observa o sonho despedaçado dos povos. "A Síria, com sua capital Damasco, era um lugar aprazível de se viver, possuía beleza e civilização refinada...". Comecemos lá atrás, com a chegada dos Cruzados europeus no século XI. Agora estamos no Séc. XXI e vivemos os problemas de um projeto que ainda pode dar certo. E fica a pergunta: é o homem um projeto viável? 

DAMASCO
OS CRUZADOS E A "CAÇA AOS MOUROS"

              Comecemos pelo francês, Jean de Joinville, o "Senescal",  e sua          inspiradora narrativa de uma batalha entre mouros e cristãos. Eis um espetáculo teatral: "as armas do sultão (Saladino) eram todas de ouro, e quando o sol batia nelas, resplandeciam esplendidamente. A algazarra que esse exército fazia com seus timbales e trompas sarracenas era aterrorizante de ouvir". (Historia de São Luiz, 1309).  Cabe-nos a ironia de reafirmar que quem "inventou" este São Luis foi a Igreja Católica, pelo Papa Bonifácio VIII, em 1297, alguns anos depois da morte do cada vez mais belicoso Rei. Quanto ao sultão Saladino, o diplomata, era amigo do intelectual imperador alemão Frederico (o tal que caiu na água com ferradura (desculpe, armadura) e tudo, morrendo afogado). Pois "diz aHistória", Saladino e Frederico tinham mútua admiração. O imperador alemão mostrava-se cada vez mais cético em relação a essa guerrinha de bufões das Cruzadas, o mesmo acontecendo com Saladino. Esse passado enlouquecido forjou ficcionistas, e também grandes artistas. As formações épicas do teatro de Abujamra estavam esperando o momento oportuno para surgir, à semelhança dos arrebatadores espetáculos que o Islã proporcionava aos Cruzados. 
     O sultão Saladino ficou na História como um diplomata, e os manuscritos dos muçulmanos (não esqueçam que eles inventaram a escrita) falam sobre a VIIª Cruzada do Rei Luiz IX "para conquistar Jerusalém e exterminar os mouros". Os católicos praticam estas barbaridades desde sempre, ou seja, depois de Cristo (d.C.).


                FOTO DE SALADINO










sábado, 13 de junho de 2015

"JOÃO CABRAL"

Raphael Viana e Gaby Haviaras, em "João Cabral", roteiro e direção de Renato Farias. Cena e Interpretação de "Bailarina Andaluza".  (Foto de Carol Beiriz).  



IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

        Não temos vontade de escrever sobre... mas ficar assistindo... assistindo... assistindo... Como diria Cecília Meireles menina: "Mas isso existe, mesmo?" Pois é: o carisma é um mistério.  Nunca pedimos tanto, mas ele vem: é "a necessidade de criar", como diz o diretor Renato Farias.  E descobrimos, vivo, o poeta João Cabral de Melo Neto.
        Não falo por falar. Eis que estou escrevendo a biografia de Antonio Abujamra e de repente me deparo com os personagens do poeta, com a bailarina andaluza viva na minha frente, aquele personagem que Abujamra tanto comenta, no tempo em que viveu, estudante ainda, na casa do poeta, em Marseille. São quatro atores em cena: eles são muitos mais, na Companhia de Teatro Íntimo, mas desta vez estão em cena: Gaby Haviaras, Caetano O'Maihlan, Rafael Sieg e Raphael Viana. Os atores se revezam, em suas funções extra palco. Thiago Mendonça (que não está em cena) fez os figurinos; a direção de arte é de Gabriela (em cena, a Gaby) Haviaras; e Rafael Sieg faz o desenho de luz. A cenografia é de Melissa Paro. Se não é atriz da Companhia, está ligada a eles profundamente.
        É o que podemos perceber. Não sei se é o espaço cênico (estamos ficando exigentes na questão do espaço cênico, assisti no SESC, sala Multiuso, e agora o espetáculo está na Sede das Companhias, na Lapa, um ótimo espaço), ou se o envolvimento entre público e atores é natural. Todos os gestos, e as palavras dos atores, têm uma resposta do público. E é tudo tão intenso. Começamos com as descobertas do Recife de Melo Neto, e vamos até o local aonde o fogo do amor se revela: Sevilha! E são trechos dançados da "Bailarina Andaluza", com imagens de fogo que fazem eco ao bailado de Haviaras. Raphael Viana, com seu porte sevilhano e sua forte presença acompanha a bailarina-atriz. E a guitarra flamenca, tocada por O'Maihlan, acompanha os atores. E o 'cante a palo seco' (de Diego Zarcón, acompanhado por Rafael  Sieg tocando el cajón).          
          Caramba! É teatro e é poesia. Não há uma só frase que não seja de Cabral: "o amor comeu num instante todos os meus livros de poesia (diz O'Maihlan), comeu os meus livros de prosa, citações em versos..." e, lá no finalzinho do poema, diz Haviaras: "... e o meu medo da morte... "
           Palavras que levam à ação teatral. E há entre os quatro - seus instrumentos musicais, suas vozes, seu gestual - e o público - uma total imantação.
     Temos, na orientação do flamenco, Eliane Carvalho; no 'cante a palo seco', Diego Zarcón. Na consultoria de cajón, Alesandro Alejo; consultoria de guitarra flamenca, Luciano Câmara, e liutaio da guitarra (as variações flamencas), Edu Viola. E nosso coração ibérico se manifesta.
       Destaque para as fotos de Carol Beiriz. Visagismo Ezequiel Blanc. Assessoria de Imprensa, Roberta Rangel.
       Muito prazer em conhecer a Companhia de Teatro Íntimo, justamente na comemoração de seus 10 anos de existência.         

quinta-feira, 4 de junho de 2015

"FOI VOCÊ QUEM PEDIU PARA EU CONTAR A MINHA HISTORIA"




IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     Eis um espetáculo apresentado com a garra de uma improvisação. Jogo teatral puro. E exercício. Uma homenagem ao teatro e aos atores. Que bela idéia criar algo assim! Penso que Sandrine Roche teve uma inspiração que certamente vai emocionar a todos os que amam teatro.
     Olhem só: quatro moças convencendo a todos que são meninas, com a liberdade e a maldade das crianças. Rousseau, o Jean-Jacques, quando disse que "o homem é bom, mas a sociedade o corrompe", mostrou que  não era um bom observador de crianças; pois, desde o mais virgem berço, se  deixadas a sós com seus brinquedos e companhia, as crianças - o futuro da humanidade! - mordem-se umas às outras! Que sociedade as corrompeu? Pois é justamente isso que Sandrine quer mostrar, na verdadeira aula de teatro para adultos que construiu. Essa autora-filósofa parece querer provar que na verdade somos casos perdidos, vivendo grandes ilusões. Ao que parece, o que nos salva é o humor. Mas vamos ao que aconteceu no Teatro do Leblon - Sala Fernanda Montenegro - naquele dia de estréia para a classe teatral, do texto "Foi Você Quem Pediu Para Eu Contar a Minha História".
     Em um cenário que se abre para inúmeras possibilidades, quatro  atrizes: Bianca Castanho, Fernanda Vasconcellos, Karla Tenório e Talita Castro, vão se transformando em inúmeras personagens, conforme a luz,  a solicitação do texto e a música o exigem. E, neste mundo aberto à imaginação, vemos uma menina morta (Bianca Castanho), contar sua morte trágica; uma menina rica (Fernanda Vasconcellos) falar de seu mundo, com a forma desfocada que têm os ricos de falar sobre o seu mundo; uma menina questionadora (Talita Castro), pensando sobre sexualidade e, finalmente, uma menina perdida (Karla Tenório) em busca de acolhimento e afeição.
     A um primeiro olhar, aparentemente, é disso que trata a peça: cada menina tem a sua história para contar. Ledo engano: O que vemos aí são várias propostas, que se encaixam em outras tantas, como um jogo de armar concluído com esta frase: "A próxima eu conto"! e as luzes se apagam. Insólito, não? Na verdade, é uma bela maneira de escrever a biografia enxuta destas três meninas. Elas se criticam? Sim. E se agridem... Elas apresentam (quase) tudo o que o ser humano tem de negativo.
     Neste quesito temos Karla Tenório, a menina carente que aceita o jogo. Mata-se, naquele mundo das três meninas, fere-se, pois o mundo delas é cruel. Temos que destacar aqui a compreensão desta atriz, a respeito do papel que irá segurar até o fim: a que sofre bulling e não sabe se proteger. Foram explorados, neste texto, todos os aspectos negativos do ser humano, e a crueldade é tal que acabamos por sorrir. As atrizes se jogam, literalmente, em seus papeis, ajudadas pelo cenário que lhes proporciona contorcionismos de dança e emoção. É de fazer inveja aos expectadores. Parece tudo tão bom!
       Mas a personagem de Bianca Castanho agüenta o destino de ser considerada a gorda, a feia. E se vinga contando histórias horríveis. Bianca, com sua doçura, empresta morbidez à sua criança. A "riquinha", Fernanda Vasconcellos, tem momentos hilários ao trazer para o palco o que está acontecendo, hoje, em nossa sociedade. E, segundo o diretor Guilherme Piva, o texto foi respeitado. Imagina-se que sim, pois é surpreendente a equivalência das atitudes antissociais que se manifestam nos países globalizados. A menina de Fernanda declara que "tem horror a pobre" e que pode tudo, "porque é rica". E, finalmente temos Talita Castro trazendo para a discussão a sexualidade entre meninas. "Por que não?", pergunta a personagem de Talita.
     Em seus  trapézios, em suas danças, em seu jogo corporal, as quatro atrizes provocam uma cena de tensão, sexo e humor. Os figurinos, muito apropriados, sublinham, com escândalo,  a sexualidade infantil.  Nada foi esquecido na montagem brasileira deste texto da desconhecida Sandrine Roche, do "Thêátre Du Cercle" (Rennes). Ele vem embalado com a  adaptação de Thereza Falcão, e é surpreendente como o diretor Guilherme Piva conduz, com extrema leveza, assunto tão cruel. Não são "estas" crianças no palco, que estão se "despindo" de sua humanidade. O assunto é sério, mas o humor prevalece, ele deve falar mais alto. E Guilherme Piva sabe disso: os recados mais importantes do texto ficam na emoção e no pensamento. Afinal, não se trata de um espetáculo descartável.   
     Na técnica, além dos já citados: cenário de Paula Santa Rosa e Rafael Pieri; figurino, Carol Lobato; desenho de luz, Renato Machado; música, Marcelo Alonso Neves; Assessoria de Imprensa, Daniella Cavalcanti.