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sábado, 22 de dezembro de 2012

"ROCK IN RIO - O MUSICAL"

Entrada da "Cidade da Música", com com a sua rampa e os seus pilotis. Um "marco de paisagem", segundo seu criador, o arquiteto Christian de Potzamparc.
 (Foto Divulgação) 

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)


Próximo ao Carrefour e ao Barra Shopping, passando pelo mergulhão da Av. Ayrton Senna, entre (ainda) canteiros de obra – eis que chegamos à "Cidade das Artes" (Avenida das Américas, 5300), projeto de Christian de Potzamparc, Prêmio Pritzker de Arquitetura, Berlim, 1994 (considerado o “Nobel” da arquitetura). Christian trabalha com dois tipos de fundamentos básicos, em teoria por ele criada: o “marco de paisagem” e a “clareira”. Podemos constatar que no prédio (concluído) da Cidade das Artes há uma característica de “marco de paisagem” – pela grandiosidade da construção, localizada em uma bifurcação de estradas. Porém, em se tratando da Barra da Tijuca, pode ser também uma “clareira”, ou seja, um espaço ocupado - com seus limites definidos – em um matagal de edifícios! É sobre esse espaço que vamos falar. Calma! Falaremos, a seguir, de "Rock in Rio - o musical". 
     Ao entrar no terreno de Potzamparc somos subjugados pelas rampas de acesso ao "monumento". Há duas rampas que o circundam e, pelo que nos foi possível constatar, elas se ligam a um plateau, construído em dois pavimentos. A vista total que temos da obra, ainda na estrada, é a de um “marco de paisagem”, pois sua estrutura de concreto se destaca na paisagem. Ela, a estrutura, é sustentada por um vão, no qual se equilibram pilotis, dando leveza ao conjunto. Há também algo semelhante a asas, no "movimento" do plateau, acima da construção. É um movimento sutil, e podemos observá-lo olhando a Cidade das Artes ao longe.
     Porém, ao entrar na “Cidade” é que nos deparamos com, talvez, a marca registrada do arquiteto: o espaço de luz e sombra. No teto, a um canto do primeiro pavimento, vemos clarabóias minúsculas filtrando a luz (a visita foi feita durante o dia, desconheço o efeito noturno), causando grande efeito. As formas arredondadas das paredes, com alguns contornos, humanizam o concreto. Podemos dizer que a sensação de vôo cobre também o interior do prédio, causando vertigem com suas transparências fixadas no solo. Para quem começou sua carreira inspirado na “ Torre de Babel”(!) (primeiro trabalho de Potzamparc), a “Cidade das Artes” é uma representante fiel de sua obra.


Ensaio do elenco de "Rock in Rio - o musical".
(Foto de Cristiane Cardoso)
      Estivemos na "Cidade das Artes" para assistir ao lançamento, para a Imprensa, de trechos do espetáculo “Rock in Rio – o musical”, primeiro a ocupar a “grande sala” (não visitamos a parte superior do prédio, onde provavelmente está instalada a “grande sala”). Ela, a sala grande, se amplia em 1.229 lugares e, pela grandiosidade dos números do musical (são mais de 20 cenários, 125 peças de figurinos, 25 atores cantando cerca de 50 músicas, banda com 9 músicos em cena e alternância entre repertório estrangeiro e nacional) nos faz prever o “mega-espetáculo”. Assistimos, neste dia (18/12), a apresentação de três cenas, em um espaço próprio para esse tipo de evento, ou seja, um espaço para ensaios. Inicia-se o mesmo – a ordem foi escolhida pelo diretor, João Fonseca -  com “Pro dia nascer feliz”, de Cazuza. O espetáculo alterna MPB e repertório internacional (citamos, sem continuidade): “Ins’t Lovely” com “Além do Horizonte”, ou Highway to Hell com “Você não soube me Amar” (não nessa ordem). Há uma história a ser narrada, a dos jovens Sofia (Yasmin Gomlevsky) e Alef (Hugo Bonemer) e seus desentendimentos (adolescentes que são), com os pais (Lucinha Lins e Guilherme Leme). Os dois jovens, através das musicas e do texto, vão contando seu relacionamento com os pais, com amigos e com o amor, e a recuperação de traumas infantis. O desempenho do elenco, principalmente os atores/cantores jovens, é espetacular, podendo-se constatar, mais uma vez, que atingiram a excelência na interpretação de musicais – estrangeiros ou não.
     No currículo da equipe principal temos uma “mélange” de estilos e experiências. O diretor João Fonseca (premiado) paulista vindo de Antunes Filho e passando por Abujamra, já nos deu várias oportunidades para constatar seu amor ao teatro e sua maneira muito especial de atuar e dirigir atores. Neste “Rock in Rio – o musical”, dramaturgia de Rodrigo Nogueira, um texto que nos parece bastante visceral, impressão essa coroada pela interpretação de Lucinha Lins, como a mãe em conflito de amor com o seu adolescente Alef. Guilherme Leme, o também conhecido ator e diretor é, neste Rock in Rio, um produtor de musicais, pai de Sofia (voz magnífica a de Yasmin Gomlevsky), que detesta música. Há também um conflito entre eles.
     É impressionante como os jovens correspondem com maturidade ao que lhes é solicitado. No elenco, encabeçado por Yasmin e Hugo Bonemer, temos com destaque Caike Luna como Geraldo (vem do Paraná e tem longa experiência carioca); Daniele Falcone (Denise), praticamente em início de carreira, mas já apresentando maturidade, posto que sua experiência anterior é como garçonette-cantora do restaurante “Eclético”, o mesmo que apresenta, nas noites de 5ª e sábados, às 22h, o “show dos garçons cantores”. Quem sabe de lá não saem outros atores/cantores? 
     No elenco temos não só adolescentes: Juliane Bodini (24 anos) é Bianca; Sheila Matos está no papel de Alice, e Marcelo Nogueira, o grande intérprete de Chopin, em “Chopin e Sand”, é o ensemble de Guilherme Leme. Também canta e atua. Todos os componentes do elenco têm personagens e falas, assim o quis o autor Rodrigo. Não se está trabalhando com coro, mas com personagens. Impossível citar a todos, mas essa é uma maneira bem norte-americana (democrática) de fazer musicais. É uma boa ideia, e dá para apreciar o talento dos atores. Sinto muito não poder citar a todos. 
     O espetáculo é dividido em duas partes, e a apresentação dos cenários se desenvolverá, certamente, com os recursos apresentados pelo multiespaço da “grande sala”. Na primeira parte haverá a representação da universidade, da casa dos jovens e de uma loja de discos, com ações e música. Haverá, certamente, a grande troca de cenários quando, no segundo ato, a cena transformar-se-á em uma edição do “Rock in Rio”, (somente os gramados e os camarins). Nello Marrese e Natália Lana são os responsáveis pelos cenários. Figurinos multicoloridos de Thanara Schönardie. Paulo César Medeiros faz a luz (imagino a apoteose desse espetáculo!) e Alex Neoral assina as coreografias. Pela amostra que tivemos no último dia 18, “o canto dessa cidade é meu” é pouco para relatar o que vem por aí. Haverá uma opening night, um “soft opening” para testar (a abertura oficial da casa será em março) no próximo dia 3 de janeiro, avisa o presidente da Fundação Cidade das Artes, Emilio Kalil. Essa é uma iniciativa da “Aventura Entretenimento”, a partir de um sonho do criador do “Rock in Rio”, Roberto Medina, que desejou ver o seu festival em um teatro musicado. Os “aventureiros” (no bom sentido) dessa empreitada, os empresários Luiz Calainho, Anieta Jordan e Fernando Campos tornaram o sonho possível. Pelo acerto da empreitada, o sonho não irá transformar-se – nunca! – em um pesadelo. Tenham todos um bom espetáculo!                

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

"AVENIDA REVEILLON"

Marcelo Vianna, Lucília de Assis, Nedira Campos e Ettore Zuim, brindando o "Avenida Reveillon"
(Fotos Divulgação) 


CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro)
(Especial)

Casarão Ameno Resedá, já ouviram falar? É bem ali, na voltinha da rua Bento Lisboa, quem vai em direção ao Largo do Machado, no número 4. Lá havia um casarão abandonado que chamava a atenção de quem passava pelo seu precário estado, em tão  bela construção. Pois esse casarão foi reformado e voltou aos seus dias de esplendor, tempo em que brilhava, na vizinhança do Presidente da República, perto do Palácio do Catete.
     Hoje o casarão se chama Ameno Resedá, e foi inaugurado em março de 2012. O nome vem como uma homenagem ao rancho de carnaval que levava seu nome. É lá, neste Ameno, que podemos assistir a um musical “de bolso”, o “Avenida Reveillon – um musical em Copacabana”, todos os domingos de dezembro, com início às 19h. É quando o Ameno Resedá festeja seu Reveillon. Texto e direção do “Avenida” são da pesquisadora Fátima Valença e coreografia de Sueli Guerra.
     Trata-se, na verdade, de  um show de músicas brasileiras, idealizado por Fátima Valença, Manuela Trindade e Rodrigo Lessa. Segundo fui informada, as letras das músicas surgiram no decorrer da criação do espetáculo, escritas por Manuela e musicadas por Rodrigo. Fátima as uniu em um texto teatral. Deu certo. Ao mesmo tempo em que se conta a história de dois casais (que podem também ser mãe e filha, pai e filha, etc.), vão sendo contados os acontecimentos que podem mudar a trajetória de suas vidas. E as músicas vão emendando as ações.
     Nesta “vida interpretada no palco”, Marcelo Vianna é Agnaldo, o eterno noivo: porém pego de surpresa em outros “papéis sociais”. Tudo é uma grande brincadeira, semelhante a um folhetim, e quem leva a melhor, sempre, é a plateia, que se diverte. Lucília de Assis é a noiva, mas também pode ser a Princesinha mimada; Ettore Zuim, em vários papéis, canta e dança, mudando de personalidade: ora é Eliseu, depois Beto, ou o Padre que acaba casando o relutante par, e Julinho, o amigo. Nedira Campos é a mãe da noiva, Dona Nair, e também a saltitante carioca descolada, Suely, que transforma o final em um verdadeiro folhetim!
     Passamos momentos agradáveis assistindo a estes quatro atores que possuem o espírito da comédia. É bom, e é gostoso estar ali, no “Ameno Resedá”. Neste novo local pode-se conversar com os amigos, “antes do show” e, uma vez iniciado o espetáculo, a plateia, interessada, segue o caminho que vão tomando os acontecimentos no palco.
     Palco e plateia (com lugar para 250 pessoas) é também um ótimo local para “shows” solo de cantores, como Elza Soares, que já se apresentou por lá. Este musical,  “Avenida Reveillon”, canta  Copacabana, narrando os acontecimentos do bairro. Há um vídeo, elaborado por Vitor Damasceno e Gustavo Junqueira, dando o clima da encenação. A ação se passa no palco. Entretanto, algumas vezes os atores cantam ou dialogam incluindo as mesas da plateia em sua ação. O local parece ser idealizado para shows, porém demonstra que  tem estrutura suficiente para proporcionar um espetáculo teatral.
     Neste “Avenida” são ao todo 12  músicas, compostas por Manuela, cantadas e encenadas pelos atores, obedecendo à estrutura dada pela diretora. As cenas se alternam, sem maiores preocupações estilísticas, e há momentos de pura descontração. O espetáculo tem início com a valsa “Copacabana”, cantada por Ettore Zuim e acompanhada pelo elenco, para, a seguir, ouvirmos “Rame Rame”, na interpretação de Lucília de Assis e Marcelo Vianna, peça descompromissada, que conta o encontro e desencontro de casais. A seguir Lucília de Assis interpreta  “Princesinha Underline 86”, uma música brejeira. Nedira Campos mostra seu lado cantora interpretando com acerto duas canções: “Ponto de Cruz” e “Meio a Meio”, esta última em dueto com Marcelo Vianna, que interpreta um solo em “Domingueira” e “Cabeça de Porco”. Junto com Lucília de Assis, Vianna canta  “Xodó”.
     Enfim, são momentos de pura delícia, em que ora um, ora outro dos atores sobressai. Trata-se de um jogo bem equilibrado que passa uma emoção ingênua a quem o assiste. Muito bom. Há músicos interpretando, ao vivo: no Piano temos Antonio Guerra; Violão e Bandolim, Rodrigo Lessa; Sax, José Carlos Bigorna/ Alexandre Caldi; Bateria, Cassius Petherson; Contrabaixo, Luís Louchard. Como podemos comprovar, ao assistir um espetáculo no Ameno Resedá  somos convidados a momentos de pura descontração. É o Rio dos verdadeiros cariocas, que recebe um público heterogêneo. Neste local tão carioca há espaço para várias manifestações culturais brasileiras, em seu artesanato, pintura, etc. É um espaço privilegiado e, conforme vamos subindo as escadas até o salão, vamos nos surpreendendo com o prédio, registro de um tempo passado precioso. O visitante sente-se bem acolhido. Trata-se de um local onde o público pode assistir a um musical (de “bolso”, ou de “câmara”), de alta qualidade. É como diz Carlos Lessa, em seu livro “O Rio de Todos os Brasís”, podemos sentir a “união da sofisticação com a informalidade”. Neste “Avenida Reveillon” podemos reencontrar o “carioca da gema”, cada vez mais ausente em nossos espetáculos.            

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

"NEY MATOGROSSO"

Ney Matogrosso em "Beijo Bandido", despedida da turnê, Rio de Janeiro, Theatro NET, dia 12 de dezembro de 2012.
(Foto Divulgação)

CRITICA TEATRAL
“BEIJO BANDIDO”
NEY MATOGROSSO
(MÚSICA E TEATRO)
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)

Ontem, dia 12 de dezembro, foi a despedida de Ney Matogrosso, no Theatro NET, Rio de Janeiro. “Beijo Bandido” em excursão nas principais capitais do país,  nestes últimos 4 anos,  volta ao Rio para se despedir em grande estilo. Iniciado, em setembro de 2009, esse show camerata mostra o cantor-ator em sua essência. Ele ama a plateia, faz amor com a plateia, e lança um desafio a ela: “não pense que você me tem”, em sua música encantadora de serpentes.
     William Burroughs, o mestre hippie diz: “fui escalado para o papel de Guardião, para criar e alimentar uma criatura que é parte gato, parte humana e parte algo ainda inimaginável, que pode resultar de uma união que não acontece há milhões de anos”.  Está enganado, o mestre. Essa união “que não acontece há milhões de anos” está acontecendo agora, e se concretizou em Ney Matogrosso. Leão, felino, gato. Seu refrão poderia ser “Há um felino dentro de mim” – como na canção de Rita Lee (não é à toa que ele nasceu no dia 1º de agosto). Porém, essa constatação poderia ser muito óbvia, posto que todos sabem que Ney Matogrosso é um felino. Mas não é tão óbvia assim.
      Em “Beijo Bandido”, dessa vez, Ney retornou à música introspectiva, deixando o tom “extrovertido” de seus shows mais conhecidos. Aliás, desde 1978, com “Pescador de Pérolas”, que Ney vem alternando apresentações clássicas, em que a linda tessitura  de sua voz de contratenor (o equivalente ao contralto, na mulher) é apropriada para esse tipo de apresentação e é também uma característica de sua  personalidade. Neste clássico “Beijo Bandido” ele volta a vestir “discretamente” terno e gravata (criação de Orsimar Versolato), embora essa gravata mais pareça um lenço de pirata. O cenário é em tule de filó preto, e tem uma projeção, ao fundo, com Ney reproduzindo a sua imagem, ao cantar. Perdoem-me, pois não consegui saber de quem é o cenário. É interessante. Mais tarde acrescentarei. Esse é o “no stress” do blog.
     Tanto o repertório de Ney, quanto os músicos que o acompanham, exibem um jeito intimista, “camerístico”, de ser, e de fazer música, embora alguns requebros, sua marca registrada, surjam. O público demonstra que tem paixão por esse cantor versátil e inteligente que é Ney Matogrosso. Para alguns, que o conhecem desde os tempos de hippie em Santa Teresa, o amor que desperta é uma constatação. Para outros, que o acompanham desde os tempos dos Secos & Molhados - e outros ainda, que leem as suas entrevistas, todos eles sabem que Ney é um artista coerente com suas ideias. Para as mulheres, em particular, ele abre um novo caminho, o da androginia, cortando a barreira entre feminino e masculino, o que as encanta.
     Quanto à sua atuação no palco, Ney leva a plateia à loucura. Neste “Beijo Bandido”, desde seu começo, quando canta “Tango para Teresa” (de Evaldo Gouveia e Jair Amorim), até o momento em que tira o casaco de forro vermelho e, qual um toureiro com sua capa, começa a “tourear” o público (veja a foto), essa fera, ainda contida, às vezes inspira ternura (!) com seu sorriso de menino, ou nos ameaça com um olhar severo,  que remete aos tempos de “Sangue Latino”. Ops! Lá pela quarta música, eis que surge “Invento”, de Vitor Ramil, a razão de ser do título do show, o beijo bandido. É tudo teatro, e do mais  puro. Aliás, ser ator foi o seu primeiro movimento, e ele o concretiza no palco com os shows, e agora também no cinema, onde faz o maior sucesso em “Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha” (argumento de Rogério Esganzerla, direção de Helena Ignez), onde canta o memorável “Sangue Latino”, autoria de João Ricardo (o produtor/cantor que o convidou para participar do Secos & Molhados), e Paulinho Mendonça.   
     Na despedida da turnê “Beijo Bandido”, no Rio de janeiro, Ney Matogrosso é acompanhado por Leandro Braga (que também é o diretor musical e arranjador), ao piano; Alexandre Casado (violino e bandolim); Felipe Roseno (percussão); Lui Coimbra (violoncelo e violão). A música que mais empolga o público (pelo menos no último dia) é “Bicho de Sete Cabeças”, de Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Renato Rocha. Tem também “Mulher sem razão”, de Cazuza, Bebel Gilberto e Dé Palmeira).
     Mas o público também vem abaixo quando Ney canta - aliás, todas, mas, e principalmente: “Segredo”, de Herivelto Martins e Marino Pinto; “Medo de Amar”, de Vinicius de Moraes; e  “Fascinação”, canção francesa tantas vezes traduzida. Ney cantou a tradução clássica de Armando Louzada, segunda parte, e esse foi um momento de intensa emoção: “Os sonhos mais lindos sonhei/ de quimeras mil um castelo ergui/ E no teu olhar/ Tonto de emoção/ com sofreguidão/ mil venturas previ!” música original de Maurice Féraudy e Dante Pilade. Ouve-se gritos de “gostoso”, e assobios, e palmas demoradas a cada música.  O show se encerra com “Fala”, de João Ricardo e Secos & Molhados): “Eu não sei dizer/ Nada por dizer/ Então eu escuto...//.
     Ney Matogrosso vai continuar alternando introspecção e extroversão, na linha de seus shows. O anterior, “Inclassificáveis”, teve um repertório de rock. Esse “Beijo Bandido” é intimista, e o próximo será... ? Aguardemos! Andei vasculhando e descobri que o próximo show será de rock, com uma banda chamada “Zabomba”; um compositor chamado Vitor Pirralho, e outros ainda, inclusive um chamado Tono. Gente nova. Um novo encontro marcado com Ney Matogrosso. Falando em Ney, esse ator/cantor já tem mais dois filmes engatilhados, prontos para serem exibidos. Ele não para: é que nem o “tempo”, na música de Cazuza. Só que Ney desmoralizou o “tempo”. Que efebo é esse?  Vem uma nova cronologia por aí.   

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

"ORÉSTIA"

Elenco de "Oréstia", de Ésquilo.
(foto divulgação)



CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro)
(Especial)


Vocês querem a verdade? Pois a verdade dói. A “Oréstia”, a tragédia dos Átridas, em cartaz no Teatro Laura Alvim, direção de Malu Galli, é uma decepção. Como não quero atrair a ira dos deuses sobre mim, e como essa nefanda missão crítica de apontar erros e acertos em uma tragédia é também uma tragédia, procurarei amenizar as consequências  começando pelos acertos: para contar essa historia de crenças, oráculos, previsões e lutos, há, entre os atores dessa “Oréstia”, uma “pequena gigante” atriz, Daniela Fortes,  no papel de Cassandra. Ela realiza as previsões como se uma Isabelle Huppert brasileira fosse (a cena das visões é a mesma em que Hedda Gabler (direção de Eric Cascade, Théâtre Odéon), queima - no caldeirão - a obra-prima de seu amante. As duas são bruxas, no melhor sentido). Há também outra atriz, Gisele Fróes, que coloca a cena grega em seu lugar, ao interferir como Atená, no julgamento final de Apolo, na visão de Ésquilo sobre a queda do matriarcado.
     O mundo não mudou, pelo menos até agora, e a solução de conciliação entre os sexos enfraquece os “fazedores de concessões” – como Atená, a deusa da sabedoria. Neste texto de Ésquilo, a deusa, ao querer converter a humanidade em um monumento à inteligência, acaba fazendo concessão à força. Sim, porque Agamenon (em tempos de guerra) sacrificou sua filha Ifigênia e “não” atraiu a cólera dos deuses, muito pelo contrario, os acalmou, ao dedicar a eles o sacrifício, para vencer em Troia. Esse gesto de Agamenon atraiu a cólera de uma mãe ultrajada: Clitemnestra, a mais forte das heroínas gregas – e a mais vulnerável. Malu Galli, interpretando-a e a dirigindo, deixou-se cair em uma armadilha: não é tão fácil assim “falar” com Ésquilo. Ela reuniu, em pouco mais de uma hora, a Trilogia, e fez os dois papéis: Clitemnestra e Electra. Podemos até entender Malu Gali. Ela tentou, mas não conseguiu o seu “morceau de bravure”.   
     Há momentos que poderiam ser belos, nesta versão de “Oréstia”, mas que são mal aproveitados. Exemplo: o início, a narrativa da trajetoria dos gregos e seus mitos. E tantos outros momentos, como a da tragédia de Ifigênia, enganada e assassinada pelo pai, ou as libações funerárias de Clitemnestra. Quanto ao elenco escolhido pela diretora, há acertos e erros. Luciano Chirolli, por exemplo,  possui péssima dicção (o que não se perdoa em ator de tragédia grega), há momentos em que não entendemos o que ele emite, há problemas de respiração. Entretanto, ele consegue um entrosamento final, em seu papel de Corifeu (o que acompanha todos os momentos), interpretando, no final, as Eríneas - as Fúrias - defensoras do matriarcado. Na cena final da peça Chirolli acerta, deixando-se tomar pelo espírito das “fúrias”. A tentativa de Atená (Gisele Fróes), de transformá-las em dóceis Eumênides, não é por elas bem recebida, porém, com as doces propostas da deusa, acabam capitulando. Essa capitulação só exalta a vitoria do patriarcado (de graves consequências para a humanidade, pois não?). Sim, fiz uma leitura da “Oréstia” do ponto de vista da mulher. Mas não do ponto de vista da matricida Electra, a filha vingadora da morte do pai.  
     Quanto aos atores, Otto Jr. e Julio Machado não possuem carisma e força para os papeis a que foram escalados. Machado ainda defende com bravura o seu Orestes, o que não chega a ser uma vitoria. O imperdoável, mesmo, nessa montagem, são os microfones para ampliar a voz do coro e para as vozes do Olimpo, que não deviam precisar de microfone. Apolo (Otto Jr.), o reivindicador, perde a força ao ter que segurar aquele erótico aparelho. (Perdão!). Quanto à ficha técnica, a produção foi cercada de todos os cuidados, pelo menos no que se refere à orientação corporal de Dani Lima e à luz de Maneco Quinderé. 
     A preparação vocal de Leticia Carvalho deixa a desejar, o mesmo acontecendo com os figurinos de Claudia Kopke e Marina Franco. Romulo Fróes e Cacá Machado, com suas músicas, apresentam boas propostas. As letras das canções, as declamações do elenco são dos mesmos autores, inspirados no texto de  Ésquilo. Se “direção de arte” envolve perucas (o que não acredito), Afonso Tostes precisa impor detalhes técnicos a elas, o mesmo não ocorrendo com o cenário, de sua autoria: esse causa um forte impacto (positivo) sobre a cena. A tradução (direta do original) é de Alexandre Costa e Patrick Pessoa, esse último também responsável pela dramaturgia. Malu Galli fica nos devendo a matriarca enfurecida: ao tentar defender seu papel de mulher enfrentando o domínio do homem, não ouvimos os gritos e protestos de Clitemnestra! Vemos o patriarcado vencer (meio à força, aqui nos trópicos ocidentais), no final da tragédia (preciso vê-la no Festival de Atenas!). Para saber se Apolo é culpado ou inocente por instigar Orestes a matar sua mãe, Atená (Gisele Fróes dá o tom certo para a deusa) comanda o julgamento. A votação, na concepção de Malu Galli, é feita por dez espectadores. Apolo perde – e não há “voto de Minerva” que o salve – ele perde de 8 a 2! As mulheres sempre são maioria, na plateia! Quem quiser saber (um pouco) dessa trágica historia de sangue e compulsão dos “Átridas”, vá assisti-la no Laura Alvim. Mas vá prevenida. Tenham todos um bom espetáculo!                          


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

"CALANGO DEU!"

Suzana Nascimento e seu bandolim, em "Calango Deu!"
(foto Sergio Santoian)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro)
(Especial)

 É um prazer conhecer Dona Zaninha. Ela agora está em cartaz no Teatro Café Pequeno. Até o dia 9 de dezembro, com “Calango Deu!”. Não percam tempo, vai ter até sessão extra no próximo domingo, pois o teatro “não dá conta”! Pois é, a gente sai de lá até falando “mineirêz”! Não se sabe quantas vezes o sino toca, chamando pro espetáculo. Não sei o que Molière  pensaria dessas batidas, acho que iria gostar. Mas que é bem diferente das “batidas” dele, ah, lá isso é!
     Suzana Nascimento, mineira de Juiz de Fora, formada pela Casa das Artes de Laranjeiras, é uma incansável “show-woman”. Não se pode fazer essa crítica dentro do espírito da “Dona Zaninha”, senão o tal de “show-woman” vai pro espaço. O que estou querendo dizer é que Suzana Nascimento canta, conta histórias, toca instrumentos e se movimenta pelo cenário sem nunca perder o fio da meada. É surpreendente.
      Em cena, ela chega a fazer a proeza de entrar em contato com alguém na plateia (a interação palco/plateia é absoluta), e retomar esse contato quase no final do espetáculo, sem perder o fio da meada. É que o público entrou, de tal maneira, na vida louca do planeta Minas, que já não se admira de mais nada. É claro que a atriz tem a orientá-la a tessitura dos detalhes, criados pela sensibilidade do diretor Isaac Bernat. E tem, também, a inspiração dos “amigos” Guimarães (principalmente esse Guimarães Rosa!), Barros, Drummond e Queirós (Bartolomeu Campos de, recentemente falecido). E ainda: Dona Zaninha é instigada por Francisco Gregório Filho, o mestre dos contadores de histórias.
     Mas voltemos ao Guimarães. Suzana Nascimento consegue a proeza de inventar uma versão caseira do espírito do jagunço criador de palavras, de Rosa. A prosódia encanta. E as definições? “A infelicidade é um caso de prefixo”, ou as histórias da sapiência milenar oriental “quando um velho morre, uma biblioteca se incendeia” (trazido, certamente, por Bernat), louvando a “contação de histórias”? O próprio diretor, segundo o programa, é um seguidor das histórias africanas.
     E vocês querem coisa mais deliciosa (e maldosa, dentro do espírito caipira), do que a resposta da “noiva” a seus pretendentes? (quem quiser saber da história, que vá ouvir o causo!), ou a construção da vingança do “Podela”? E a história dos ovos “pôche”? (prá ôce”), e a referência às “ervas finas”? As receitas... E por aí vai, até a música final, tirada por Zaninha das cordas do bandolim. Essa música toca as cordas do nosso coração. Deixo a surpresa para quem a for ouvir, mas conto quem a ensinou: Pedro Amorim, o excelente preparador musical.
     Prossigo com a ficha técnica afinada: Aurelio de Simoni, na iluminação, faz a luz dançar, ampliando o espaço e iluminando os pequenos palcos. Sim, porque o cenário de Desirée Bastos vai se desdobrando em pequenos palcos, abrindo cenas, conforme Dona Zaninha necessita de espaço. Ah! esse “Zaninha” é o apelido de infância de Suzana Nascimento. Imaginamos que “Calango Deu!” é a peça de sua vida, de seu coração, porque leva à cena a experiência familiar, a árvore genealógica da atriz. Ela está toda lá, no palco! É tudo tão autobiográfico, que a emoção nos ronda, a nós, a plateia. E isso é fascinante. 
     Mas voltemos às pequenas cenas: Desirée imaginou oratórios que guardam álbuns de família, em vez de santos; armários com panelas; portas e cercados - de tal maneira que os espaços vão se construindo, à medida que Zaninha vai contando as suas histórias. Esse espetáculo é uma homenagem aos contadores de histórias. Muito bem imaginado. Como também o figurino criado por Desirée, em tons pastéis, delicado, porém com a capacidade de se adaptar às cenas. A direção de movimento é de Marcelle Sampaio.
     Raquel Alvarenga fez um projeto gráfico primoroso. No programa há o roteiro dos caminhos de Zaninha. Não há como as pessoas se perderem. Suspeito até que atriz e diretor se socorreram dele! São tantas as ações, que é necessária a memória prodigiosa dos artistas para não se perder naquele labirinto. O café mineiro também tem seu papel na ação. E o público se rejubila, e passa no “boca a boca” essa história de Dona Zaninha fazer café em cena, e oferecer ao público, como se estivesse em sua casa. E está! A edição de som é de André Poyart; e Chico Werneck gravou na sanfona o Trenzinho do Caipira, de Villa Lobos, tocado no início. Tem uma hora que a atriz/personagem embarca nesse trem, e dá uma explicação hilária (e poética) do porquê do mineiro gostar tanto de trem.
     Pra finalizar, o programa, bem escrito, explica o que é o Calango: “é um gênero poético-musical típico do interior, cantado em rimas improvisadas ou decoradas, carregadas de humor. Em Minas tem calango pra mais de metro, cantado e dançado”. Não percam essa Zaninha! É bom, ver bom teatro.                          
          

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

"UM INIMIGO DO POVO"

Os irmãos Stockmann, Tomas, o médico (Marcello Escorel), e Peter, o prefeito (Charles Myara), em  "Um inimigo do Povo", de Herik Ibsen.
(foto Marcelo Carnaval)         

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)


Todo ato é político. Mais político ainda se torna quando é realizado em um Tribunal de Justiça, como é o caso do presente trabalho de direção teatral de Silvia Monte, à frente do Centro Cultural do Poder Judiciario (CCPJ) do Rio de Janeiro. O CCPJ-Rio, como é conhecido, foi criado para investigar o tema do “poder”. Nada mais justo, em se tratando de teatro na Justiça. Porém, este “Um Inimigo do Povo”, do norueguês Henrik  Ibsen, em cartaz no CCPJ, vai além do poder (embora fale a respeito de homens ligados ao poder), e seu principal foco é a corrupção, sua aliada. 
     Entretanto, é preciso analisar o problema, procurando, se for possível, não estabelecer paralelos. Se o fizermos, deixaremos de refletir sobre o assunto, e falharemos ao analisar um problema universal, referente à alma humana. A questão de Ibsen foi justamente colocar um problema, humano, com as suas distorções e limitações, e tentar resolvê-lo do ponto de vista jurídico. A corrupção, no caso, consegue absorver todos os princípios. No programa da peça, diz a diretora Silvia Monte: “Vivemos hoje no Brasil [...] momento em que todos os cidadãos esclarecidos do país tentam acompanhar e compreender o que de fato acontece” – ela refere-se a esse obscuro jogo político de muitas faces, a que fomos apresentados recentemente.   
      Não é o mesmo problema apresentado por Henrik Ibsen. No caso de Ibsen, há o desdém pela verdade, e o interesse particular impera. O caso assemelha-se antes aos grandes julgamentos da História, como foram o de Joanna D’Arc, ou o de Mary Stuart, cujo veredicto já era conhecido, antes mesmo de o julgamento começar. Assim foi com o Dr. Stockmann, proibido de falar, de se fazer entender. Impossível assistir a “Um inimigo do povo” sem tomar partido. Assunto bastante delicado, como podemos constatar. O mais interessante, no trabalho de Silvia Monte, desde os tempos de teatro na Escola de Magistratura, é que ela aponta os erros jurídicos, e deixa para a plateia chegar às próprias conclusões. Sempre foi assim, ao menos nos espetáculos a que me foi dado assistir, como “O Processo”, de Kafka, ou “Os Físicos”, de Dürrenmatt. 
     Ora, sabemos que “Um inimigo do Povo” trata do acobertamento de fatos que podem prejudicar a comunidade, e esse acobertamento é feito, justamente, pelos homens que detém o poder: no caso, o prefeito da cidade, o jornalista e o gráfico, que é também o presidente da Associação dos Moradores do lugar. Portanto, é a burguesia que se coloca contra a iniciativa de um médico honesto, o também burguês Dr. Stockmann (interpretado por Marcello Escorel), preocupado com a saúde da população. Ibsen partiu de um caso exemplar – o envenenamento da água de um povoado, e as consequências maléficas que tal fato pode trazer. A questão acaba envolvendo interesses econômicos de grande vulto. O resultado das investigações do médico é ignorado pelo prefeito e pelos moradores do local, pois os faria arcar com enormes despesas. O problema  detectado pelo médico envolve o encanamento do parque aquático, principal fonte de renda da cidade: eles abrigam água poluída. O médico alerta para o perigo, e se transforma no inimigo numero um da cidade. Está criado o problema.
     O impasse transforma homens cordiais em agressivos defensores do erro. Tal atitude os vai conduzir à fraude e à corrupção. Está aberta a questão: de um lado, o poder; do outro, o ponto de vista humanitário do Dr. Stockmann, o médico, e no meio, o povo do local. Os três homens, de cordiais amigos do médico, e respeitadores de sua comunidade, se transformam em defensores de um ponto de vista  que os levará, fatalmente, ao erro.
     A cena se passa em uma antiga sala do CCPJ, na qual os presos aguardavam seu julgamento. Hoje é a sala multiuso, de 54 lugares, que se transforma em um acolhedor teatro de câmara. No presente espetáculo, a sala multiuso é adaptada em meia arena, onde palco e plateia convivem muito próximas. Assim, podemos observar bem de perto como o médico, um cidadão hospitaleiro e de agradável convivência (Marcello Escorel atuando com simpatia e verdade), recebe os amigos em sua casa. Neste primeiro movimento a situação começa a ser desenhada. A atriz Nedira Campos vive a Sra. Stockmann, doce solidária companheira do médico. É nesta primeira cena que entramos em contato com os personagens de Ibsen. Todos bem desenhados, elenco e diretora  enfatizam o realismo da cena.
     Assim, temos o irmão e cunhado do médico, o Prefeito da cidade, Peter Stockmann, interpretado com arrebatamento por Charles Myara. Enfim, os personagens de Ibsen estão bem representados, e a ênfase é necessária. Lauro Góes surpreende como o sentencioso Morten Kill, e Paulo Japyassu apresenta um desempenho sutil, interpretando o Sr. Aslaksen, o representante do povo (leia-se da burguesia do local), defensor da “moderação”. Ele é o impressor (o gráfico) do jornal A Voz do Povo, editado por Hovstad (interpretado pelo sempre correto Gustavo Ottoni). Há ainda o casal de jovens, a filha do médico, uma senhorita pré-sufragista, Petra Stockmann, à qual a atriz Brenda Jaci dá vida. E o Capitão Horster, uma figura honesta, interpretado por Eduardo Diaz.
     Em um segundo movimento, somos introduzidos a um novo espaço cênico, com a simples troca de posição do mobiliário. Agora o ruído das máquinas  nos faz compreender que estamos em uma redação de jornal. Observamos que é muito agradável ver este tipo de teatro realista acontecendo, de maneira singela, sem a impostação cerimonial, tradição nas montagens de Ibsen. Assim, elenco e espaço cênico apresentam uma saudável disposição para contar essa história, que deixa a nu o comportamento egoísta de alguns personagens. Estabelece-se, entre os atores, um momento teatral que confere verdade ao espetáculo e o torna de fácil entendimento. O público participa atentamente, identificando-se, às vezes, ou repelindo, outras, os acontecimentos do palco. No final, o médico será julgado e condenado como “um inimigo do povo”. A frase final do Dr. Tomas Stockmann, “o inimigo número um” da cidade, é pronunciada com envolvimento por Marcello Escorel, causando impacto: “O homem mais poderoso que há no mundo é o que está mais só”. Esse poder, a que Stockmann se refere, não o leva a jogar com a fragilidade humana, mas à transformá-la. O final fica em aberto. E o público se emociona.    
     O interessante, neste trabalho de Silvia Monte, desde seu início, é a sua determinação de desvendar os perigos do poder. Há sempre um caso a ser julgado, uma opinião a ser defendida. Trata-se do surgimento de algo digno de atenção.
     Na ficha técnica temos cenário e figurinos, bem cuidados, de Ronald Teixeira. Iluminação: José Henrique. Trilha sonora de Silvia Monte, para movimentos de Edvard Grieg em “Peer Gynt”. O espaço é limitado, e a entrada é franca. A finalidade é interessar o público por peças de valor dramático, desenvolvendo o interesse pelo teatro. Trata-se de uma boa iniciativa do CCPJ-Rio. Até 19 de dezembro.                           


domingo, 25 de novembro de 2012

"JACINTA"

Cena de "Jacinta". Texto de Newton Moreno e Aderbal Freire-Filho.
Na foto, Augusto Madeira, Isio Ghelman e Andrea Beltrão
(Divulgação)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Dizem que "essa gente" que, logo que nasce, já vai fazendo um palco em casa e chamando os vizinhos, e as pessoas que encontra na rua, para ver seus espetáculos, são os chamados "atores natos". Bem, no programa dessa inacreditável “Jacinta”, em cartaz no Teatro Poeira, há uma explicação seiscentista sobre esse tipo de gente: são os Cambaleo. É deles que vamos (procurar) falar. Os Cambaleo formam uma companhia que canta, dança e sapateia, em troca de cinco coalhos de queijo, e verduras pra digestão. 
     Essa volta ao teatro puro, a esse narrar sem fim que é “Jacinta”, conta com a presença de cinco "atores natos": a própria Jacinta, interpretada com brilhantismo por Andrea Beltrão, e os quatro companheiros que formam a companhia: eles são Augusto Madeira, Gillray Coutinho, José Mauro Brant, Isio Ghelman e Rodrigo França.
     Ficamos sabendo, pela citação do livro de Rojas Villandrando, de 1604, El Viaje Entretenido (que só poderia ter chegado a nós por intermédio desse Cambaleo-Mór, o diretor Aderbal Freire-Filho), que havia oito tipos de companhias de teatro popular, na época, sendo um deles o “cambaleo". Essa “Jacinta” é um dos "tipos", mas o que faz dela algo tão especial? Vejamos: será  por que conta, à sua maneira arrevesada, o despertar do teatro, no Brasil? Ou será por que se refere, através de toques sutis, ao que acontece no Brasil, nos dias de hoje? Sim, é tudo isso. Mas, e principalmente, porque é uma verdadeira lição de teatro, de interpretação. Comecemos com Jacinta, a camponesa apaixonada por teatro que vai para a capital sonhando em ser atriz. Jacinta vive a sua realidade, e a interpretação de quem a compõe (Beltrão), não faz suspeitar a má atriz que o texto promete. Agora, imaginemos essa mesma camponesa quando se vê em cima de um palco. Aí tudo se transforma. É quando lhe permitem interpretar. É neste momento que há uma transformação radical, e a criaturinha decidida que saiu do campo se transforma em uma nervosa over-acting atriz, "a pior atriz do mundo". Os elementos são de comédia, mas a interpretação de Andrea Beltrão passa por todas as linguagens, e o desamparo de Jacinta é tocante. 
     Mas que linguagens são essas que a peça contém? Há momentos em que ela se transforma em um folhetim. É quando mãe e filha se encontram, embora nada fique revelado. Há sempre essa sutil indefinição que ronda o texto, onde a comédia se une a um cruel tom de farsa, unido a um "se aventurar" desbravador, quase épico. É quando a heroína parte em direção às mais longínquas regiões do país, em busca de seu destino, e vive todas as aventuras, e enfrenta as armadilhas mais terríveis. Esse borbulhar febril de linguagens é a riqueza da peça. Situada em um período histórico que se estabelece como sendo o século XVII, ela oferece, mesmo assim, um descompromissado encontro com o tempo, e estabelece a sua própria cronologia: encontramos um jesuíta (que não é Anchieta), trabalhando com os índios, e o fantasma de Shakespeare (um excelente Isio Ghelman), contracenando com Jacinta e dando-lhe conselhos preciosos que modificarão a sua vida.  Gil Vicente e Antonio José, o Judeu, estão no mesmo pacote, enquanto uma Rainha portuguesa, que pode ter sido inspirada em Maria I, e um Rei que o povo quer assassinar, juntam-se às desditas de Jacinta. A atriz mambembe ficou conhecida, no mundo dos atores!, pela façanha de ter sido a responsável pela morte da Rainha! e por muitas outras aventuras e desventuras. Pobre Jacinta! Ela comete todos estes enganos em nome da sua arte!
      A personagem  fala em montar os “Autos”, embora não tenha muita certeza do que seja isso, e escolhe trechos dos mais lúgubres e pessimistas da literatura Ibérica. A verdade é que, interpretada com absoluta maestria por  Andrea Beltrão, essa Jacinta representa a melhor tradição dos artistas populares da região ibérica. E um grande desafio.  
     Há cenas tão belas, em sua entrega teatral, que dá vontade de rir e de chorar, a quem as assiste.   A camponesa conta: “Na minha aldeia volta e meia / Eu cantava eu dançava eu declamava / na minha aldeia volta e meia / Eu subia num tablado e lá ficava” (letra de Freire-Filho). Eis como fala a a atriz que habita a camponesa. E há esse encontro definitivo com a arte, quando Jacinta encontra o “diretor sublime” que a ensina como  apresentar-se em um palco. O fantasma de Shakespeare mostra-lhe os mistérios do palco, e Jacinta nunca mais será a mesma. A sua fala final nos leva às lágrimas.     
     Difícil essa situação de falar sobre uma obra de arte! Diz o crítico de teatro, interpretado por Isio Ghelman:  “A atriz que interpreta... / Interpreta? /... que transformou nossa noite num naufrágio,/ teve seus três minutos de carreira teatral,/ porque no que depender de mim,/ sua carreira acabou”. (letra de Freire-Filho e Newton Moreno). Existe algo mais autoritário?
     Porém as letras deste “poema musicado sobre o ator”, nas palavras de Newton Moreno, contam a  aventura louca do "mambembar". Nada menos do que a perfeição acompanha esses companheiros do mambembar, nessa aventura de Jacinta. Eles cobrem com euforia e talento sua difícil (e divertida) missão: José Mauro Brant interpreta a grávida torpe, e tantos outros personagens, com tal paixão, que o público adere, com boas risadas. Augusto Madeira desfila seu talento, nos mais variados papéis e  Rodrigo França acompanha-lhe o ímpeto irresistível, seja como o criado da rainha, ou o provador das comidas envenenadas que seriam destinadas ao rei. Isio Ghelman interpreta a Rainha, com absoluto despudor. Nunca o assisti tão solto em um papel. E Gillray Coutinho, o premiado ator de Aderbal,  interpreta Gil Vicente e principalmente o coveiro/ator "cambaleo" perdido nos fundões do Brasil.
     Há os músicos, “Os Jacintas” que acompanham a função do que se convencionou chamar de uma comédia-rock. Essa “trupe” do balcão é formada por Mauricio Coringa (guitarra, violão e bandolim); Tássio Ramos (baixo); Ricardo Rito (teclados); Helio Ratis (bateria), executando as músicas de Branco Mello (direção musical). E, por falar em Mello, há uma parceria com Emerson Villani que não pode ser esquecida. Branco se entusiasma (o que é válido, em se tratando de “Jacinta”), e dedica: “Ai meu deus lá vem Jacinta. / Essa menina pinta e borda./ Que mania de cantar que mania!!! [...]  e festeja: “O Teatro e a Música!!!/ A Música e o Teatro!!! / Que felicidade!!!”
     Uma equipe técnica brilhante desenha o sucesso! João Saldanha na coreografia, em parceria com Marcelo Braga. No cenário: de Fernando Mello da Costa! com suas superposições de objetos de cena que vão sendo utilizados durante o espetáculo. As soluções de Fernando sempre são absolutamente criativas e se adaptam à cena como se tivessem nascido com elas (e nasceram...). Os figurinos, muito bons, são de Antonio Medeiros. Na luz, Maneco Quinderé! Precisa dizer mais, para quem quer um espetáculo afinado? E prosódia! Sim, os atores falam um português... de Portugal! Vão fazer temporada por lá, certamente, pois a sua história é a continuação de outra, e “A Barraca” portuguesa não me deixa mentir. Pois a prosódia é de Iris Gomes da Costa. “Jacinta” consegue mexer com  o nosso tempo, com as sutis, e rápidas, citações de nossas mazelas. Aconselha-se essa "Jacinta" do teatro Poeira!         

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

"LAR LONGE LAR"

Atores de "Lar Longe Lar" - Rafael Ferrão (Efraim); José de Ipanema (José); Nina Reis (Berta).
No primeiro plano: Diego Araujo (Simão); Thiago Freire (Manuel); Raquel Tamaio (Helena)
(Foto Divulgação)  


CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)

Em temporada até dia 16 de dezembro, no Solar de Botafogo, “Lar Longe Lar”,  uma comédia dramática a respeito da imigração de uma família judia vinda da Polônia, nos anos 30, que escolhe o Rio de Janeiro para escapar do furacão nazista que se aproxima. Escrita pela dramaturga Miriam Halfim, é um relato verídico de acontecimentos que antecederam a II Guerra Mundial, com um ramo de sua família, cuja tia, Berta Loran, muito menina ainda, era uma das refugiadas. “Lar Longe Lar” é dirigida, com precisão e  sensibilidade, por Gilberto Gawronski, que trabalha cinco atores vindos de experiências e escolas as mais e variadas: a atriz que faz Helena, a mãe (Raquel Tamaio), é formada pela EAD, de São Paulo e trabalhou como atriz e orientadora no grupo de Cacá Carvalho e Roberto Bacci (da Fondatione Pontedera de Teatro), em São Paulo. Rafael Frazão é oriundo da CAL/RJ, e interpreta o primo Efraim, que reside em Buenos Aires,  e o patriarca Arão, morador de Varsóvia. Frazão consegue um bom rendimento na dupla interpretação. Como a peça é um vai-e-vem entre Brasil e Polônia, há boas ocasiões para ele demonstrar seu talento. Nina Reis, que interpreta Berta (a própria Berta Loran),  é uma atriz que possui grande carisma e consegue transmitir, sem dramas, esse viver no “fio da navalha” que é relatado na peça.
     Os primeiros contatos de Berta em sua nova pátria, o Brasil, já apontam para uma carreira de sucesso da própria Berta Loran, no teatro. Ainda que estes contatos tenham se iniciado no teatro amador, ainda que muito menina, seu futuro está traçado. José de Ipanema interpreta o pai de Berta, José, um apaixonado pelo teatro, que inicia a filha na carreira. Há ainda o irmão menor, Manuel, interpretado com entusiasmo por Thiago Freire, e o filho Simão, o mais juisch de todos, tem Diego Araujo a dar-lhe vida. Neste “meio de campo” entre a tragédia e a ação cômica, os cinco atores conseguem equilibrar o que poderia ser um angustiante relato. 
     A autora Miriam Halfim, com o vai-e-vem que deu à sua narrativa, consegue prender o público e fazê-lo torcer para que tudo dê certo. Há, entre os membros da família, pessoas que acreditam na tragédia iminente, e outras que relutam em aceitar o pesadelo que envolveria a Europa. A ação constante faz-nos entrar naquele período de triste lembrança, porém não há o habitual clima negativo envolvendo o relato. Ilustrando a ação, estão os bem desenhados do perfil da “mãe judia”, do marido amoroso, e das rusgas por amor, que se aprofundam e podem ser trágicas, naquele povo que se tornou unido pela esperança e desamparo. Aliás, a esperança é o tema dominante, na historia que ouvimos contar. Complementando o texto de Halfim, o cenário e figurinos de Ney Madeira, Dani Vital e Pati Faedo acentuam o toque de realidade do texto. As inscrições em hebraico - marcas de um povo – acentuadas pelas “passagens” do cenário, com seus  planos diferenciados para localizar o país, e o tempo em que se passa a ação, tornaram-se excelentes recursos para reforçar a dinâmica do texto. A luz de Paulo César Medeiros complementa os ambientes, e a trilha sonora de Warley Goulart dá vida à época dos acontecimentos. As músicas são trechos de interpretações de Carlos Gardel (quando José visita seu primo e tenta se estabelecer em Buenos Aires), ou em visita  ao Rio de Janeiro, destacada a região por trechos de músicas na voz de Francisco Alves, Vicente Celestino, ou Carmem Miranda, entre outros. E, para nossa surpresa, encerrando o espetáculo, a interpretação da famosa canção brasileira, “Asa Branca” em hebraico!
     Podemos considerar o texto de Miriam Halfim como uma volta “ao contrário” do que aconteceu com Anne Frank e seus familiares, na Holanda. Os que ficaram na Polônia, no texto de Halfim, foram o patriarca Arão e o filho mais velho de Helena e João, Simão (interpretado por Diego Araujo) e sua esposa e filho (eles só são citados, na historia), que não tiveram a mesma chance. Os cinco atores formam hoje (salvo engano) o grupo “Poeira de Teatro”. Eles trazem, para o espetáculo, além do adequado phisique du rôle, a correta compreensão do núcleo familiar tão específico como é o da “família judia”. Às vezes ficamos com a sensação de que estamos vendo, em teatro, o que Woody Allen nos deu, no cinema, ou seja, essa maneira muito específica de se relacionar, que os judeus possuem. Embora transmitidos com naturalidade, os sentimentos exacerbados desse povo causam estranheza e divertem os “goys”. 
     Interessante entrar nesse mundo de verdades estabelecidas e amores solidários. É uma lição de solidariedade familiar, embora, no presente, este sentimento esteja  deturpado, em relação a alguns grupos humanos. Mesmo assim, vale a pena assistir a este espetáculo, para lembrar que os bons sentimentos do passado estão aí, no teatro, e podem voltar ao mundo real, a qualquer momento: a guerra foi, e sempre será, o flagelo da humanidade. “Lar Longe Lar” é uma história difícil de contar, na qual se misturam aspectos sociológicos e políticos que não podem ser esquecidos. Aconselha-se veementemente dar uma conferida neste espetáculo.            

sábado, 17 de novembro de 2012

" A TEMPESTADE"

               "A Tempestade", de Shakespeare, pela companhia PeQuod. Atriz Mariana Fausto (Ariel)
                                                             (Foto divulgação)



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     Em cartaz no Teatro do Jockey até dia 16 de dezembro, “A Tempestade”, de William Shakespeare, tradução de Geraldo Carneiro; direção Miguel Vellinho e Miwa Yanagizawa; dramaturgia e adaptação de Izadora Schettert, em trabalho conjunto com os diretores. Marcos Nicolaiewsky é o artífice dos objetos em cena. O projeto é do PeQuod.
     Trata-se de um Shakespeare “de animação”, por isso estabelecemos nesta crítica, como primeiro passo, as atividades pré-cênicas citadas acima, e que tanto influenciam a cena. O resultado, inusitado para um Shakespeare, é um espetáculo ilustrado pelos movimentos brevíssimos de uma performance oriental. Embora tal afirmação possa parecer estranha, tudo no espetáculo, desde as ondas do mar, as árvores na mata, as embarcações na tempestade, os jogos - são trabalhos tão delicados (executados em papel) que,  unidas a sons e luzes, e ao desempenho dos atores, provocam sensações que nos remetem a uma realidade  além da nossa, influenciada que é pelo teatro ocidental, a uma realidade poética e agressiva tão... oriental! É o “teatro”, muito além da palavra. Parece estranho, em se tratando de Shakespeare, que a palavra não se transforme no domínio da ação. Nesta fantasia de sons, luzes e sombras há o esboço de um teatro oriental que, segundo as palavras de Yun-Cheol, presidente da AICT – “não fornece uma versão da realidade, mas uma espécie de jogo, em que o “estilo” é mais importante do que a “narrativa”.  
     Não estamos querendo dizer, com isso, que a narrativa de Shakespeare não seja estrutural, porém, neste caso, ela não é dominante, está integrada a outros fatores que a compõe, independentes dela. Daí o mistério de sua proposta. Ariel, por exemplo, aquele ser da floresta (bela interpretação de Mariana Fausto), não tem compromisso com a palavra, mas com os gestos. É um espírito encantado. Ele depende muito mais da concepção de quem o apresenta. Há vários Ariel..., porém o de Vellinho e Miwa,  desenvolvido por Mauricio Durão - através de sua trilha sonora - e por Renato Machado, através da luz, provoca um bem sucedido encantamento, em sua transposição para a cena. Esse é um fator de “estilo”. 
     Há, na cena em geral, um envolvimento mágico - e a constatação de como é simples realizar coisas belas. Essa montagem talvez tenha sido a mais delicada e verdadeira, das versões a que já me foi dado assistir. Próspero, por exemplo, o destronado duque de Milão (interpretado com carisma por André Gracindo) tem aparições e desaparecimentos súbitos – proporcionados pela luz e pelo ângulo em que o ator se projeta - na cena.  Esses recursos são testemunhos de sua integração e da vivência misteriosa que ele estabelece na ilha em que está condenado a viver (e o faz por um longo tempo). Há uma hierarquia (amorosa), criada por ele, onde não impera a ameaça do tirano. Como a magia comanda a sobrevivência na ilha, e o poder da magia, que Prospero domina, está acima da vida e da morte, ele precisa somente dominá-la, para ser respeitado. 
      Ariel se torna uma espécie de secretário de Prospero, e aceita a perda provisória de sua liberdade. Ele, que é o espírito livre da floresta, aceita  colaborar com o Bem, no momento devido. A hierarquia, estabelecida por Próspero, na ilha, após o naufrágio, é obedecida por todos, inclusive pela doce e decidida Miranda, sua filha (interpretada com verdade por Raquel Botafogo), e também por Caliban (um excelente Paulo Giannini), o gênio do Mal, que serve a contragosto a seu senhor, até se aproximar de outro ser, que considera mais poderoso do que Prospero. Grotesco, primitivo e bajulador, Paulo Giannini se sai muito bem do desafio.   
      Como sói acontecer, nas peças de Shakespeare, os “representantes do povo”, tão queridos ao autor, também aparecem em “A Tempestade” nas figuras do “jester” Trúnculo (Liliane Xavier em hilária e competente interpretação), e o drunken “Butler” Estefano (Gustavo Barros, também entregue positivamente ao papel). A ilha é um mundo, no qual todos os sentimentos se manifestam. Há inveja, intriga, amor (a cena do enamoramento de Miranda com o filho do rei de Nápoles, Fernando (Miguel Araujo) é sutil e cheia de encantamento. Há momentos de grande beleza, nesta montagem. Mas, e principalmente, devemos destacar a sua singeleza, seja nos figurinos (destaque para o de Ariel) de Daniele Geammal; na ação, ou no cenário (Carlos Alberto Nunes). A equipe técnica é responsável pela magia em cena, tendo na iluminação de Machado o seu ponto forte. Há, na cena, o predomínio dos tons pastéis, o que dá a ela a aparência de fatos acontecidos em “um longo tempo atrás”, estabelecido pelas sombras de Cisko Dis, e o cenário de Carlos Alberto Nunes.  
     Enfim, a história de “A Tempestade” é bem conhecida: um irmão usurpa o trono ao herdeiro e o abandona em um barco, para morrer em pleno oceano, na companhia de sua filha Miranda. Mas o pai, Prospero, conhecedor das magias da natureza e da força dos seres da floresta, se comunica com eles. O representante nefasto dessas forças é Caliban. Em resumo, Shakespeare fala em traição e, também em perdão e amor. Este aparece quando o rei de Nápoles, que também naufraga na ilha (ação de Prospero?), possibilita a Miranda conhecer um jovem, Fernando, o filho do rei.  Eles se apaixonam e tudo acaba bem.  No final da peça, Ariel é devolvida a seu reino na floresta, e Caliban tem nova oportunidade na vida. E o traidor irmão do duque, Antonio (Gustavo Barros), recebe o perdão de Prospero. Pedro Florim e Tales Coutinho fazem pequenas intervenções como os lordes e o velho amigo e defensor de Prospero no reino.       
     Para encerrar, a bela frase do duque de Milão: “a vida é feita do material de que são feitos os nossos sonhos” (desculpem a tradução de memória), frase chave na peça: a mais reconhecida. Pois ela quase é perdida, ao menos no dia em que assisti, tal a surpresa de Prospero, ao perceber que alguns de seus súditos (os da plateia), não a conseguiam captar. A delicadeza nos impede de mencionar a falha (do público), mas o certo, "meu doce Shakespeare", é que às vezes jogamos ao desconhecido os nossos sonhos mais amados, e os vemos cair no vazio. O duque de Milão perdeu o arroubo, e quase a elegância, ao pronunciar a bela frase. E essa foi a única grande perda, no dia em que assisti "A Tempestade". Mas a arte é assim mesmo, cheia de altos e baixos. Um consolo: foi único senão do ator André Gracindo, em um  trabalho de personagem tão bem desenvolvido. Conclusão: há um longo caminho a percorrer até o dia em que o "sonho" seja reconhecido, e  encontrado, por pessoas que nele acreditam. É para estas pessoas que  indico “A Tempestade”, do PeQuod, um espetáculo de beleza singela.      






segunda-feira, 5 de novembro de 2012

"TRILOGIA CARIOCA"




Antunes Filho, criador de "Trilogia Carioca" - CPT - Sesc São Paulo
(foto Divulgação)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

O Grupo Macunaíma, do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), Sesc São Paulo, apresentou-se no 
Rio de Janeiro com a Trilogia Carioca: composta por 'Policarpo Quaresma', 'Foi Carmen' e 
'Lamartine Babo'. Antunes Filho não esteve conosco, mas foi representado por cerca de 30 atores 
do grupo, e alguns membros da equipe técnica.  Tudo aconteceu entre os dias 7 e 30 de 
outubro de 2011. Estamos rememorando essa visita. Tentaremos recuperar o que aconteceu.
     O espetáculo que abriu a Trilogia, 'Policarpo Quaresma', é uma reconhecida homenagem ao 
talento do escritor Afonso Henriques de  Lima Barreto (com este nome parece um nobre 
português, mas era um pobre filho de escrava com português, vivendo as consequências 
de tal nascimento, sem a sorte de Machado de Assis). Os três espetáculos mostraram ser 
inesperadas leituras de nossa situação como Nação, pois é de política que vamos tratar.
  Principalmente em 'Policarpo Quaresma', no qual Antunes Filho enfatiza a leitura crítica 
dos acontecimentos desde a, digamos assim, "expulsão" de D. Pedro II por seu amigo 
pessoal, Deodoro da Fonseca. Depois o Marechal ainda tentou aprontar algumas, como o 
golpe de Estado que dissolveu o Congresso, mas não foi bem sucedido e teve que renunciar. 
Isso Antunes não conta, mas deixa no ar a sandice humana e a sua representação, com todos 
aqueles marechais, generais e civis, que se estabeleceram com a assim chamada 'Res Pública', 
que de 'pública' não tinha nada, era só negociata mesmo. 
     Desculpem o arrebatamento, mas é o que se depreende dos escritos de Lima Barreto. Mas 
vamos com calma, o diretor/poeta assim ensina, e vai mostrando, através do "visível" 
(cenas inesquecíveis dos embates de Policarpo com a realidade), e do invisível, este por 
conta da poética do diretor e da nossa imaginação, os acontecimentos da época. 
Indescritíveis, mas verdadeiros.  Antunes parece apreciar o mistério, e este se estabelece 
com o romantismo/simbolismo de Lima Barreto, apresentando a doce Ismênia, a virgem que 
morre de amor, em uma cena romântica que Antunes reproduz, conduzindo o público ao pré-modernismo (e à solidão) de Policarpo Quaresma. 
     Explico: Lima Barreto viveu essa passagem da literatura, e, como Alphonsus de Guimarães, escolheu  "Quando Ismênia enlouqueceu...", e o simbolismo de sua respiração contida abriu 
espaço para a mais aterradora solidão. Destaque para a interpretação de Natalie Pascoal. É um 
tempo em que se morria de amor. A rápida, mas eloquente, sequência da mascarada após o 
romântico enterro de Ismênia, o personagem de Antunes, mostra ao público algo desafiador. 
Deboche? Loucura? É a única quebra na fluidez do espetáculo, não sabemos se ocasionada por 
alguma passagem ainda por trabalhar. Enfim...
     Não ser fácil pensar o processo de criação de Antunes Filho. Desde o primeiro gesto, em 
'Policarpo Quaresma', quando personagens histriônicos estendem um trilho branco sobre o 
palco e começam, através de gestos, a contar a história, percebemos sempre um fio, ou um gesto, 
que arremata os acontecimentos, reconduzindo-nos ao romance. Trata-se de uma sofisticada 
tessitura.
     Também na cena em que o funcionário Policarpo, o "major", confronta-se  com o 
"marechal"  Floriano Peixoto, constatamos a coragem de Lima Barreto ao se reportar, no 
início do século XX (o livro saiu em 1915), a acontecimentos tão próximos a ele. Sim, era ficção 
mas, como sabemos, o autor narrou, de maneira explícita, coisas da jovem República. O encontro 
entre os dois personagens escancara o caráter perverso do marechal (interpretado por Marcos 
de Andrade) e a integridade de Quaresma (Lee Taylor). Essa cena, traduzida por Antunes Filho, é 
uma das grandes narrativas teatrais de nossa época.
     Já no início do espetáculo assistimos, deliciados, ao embate do herói (Taylor), com as raízes 
tupi de nossa gente e, na sequência, constatamos que a excentricidade habita os justos - e tememos 
por eles - pois são os justos que acabam, sempre, pagando a conta. Da encenação nos ficou 
ainda a memória de Olga, a afilhada de Policarpo, possuidora de consciência política 
(Priscila Gontijo); de Adelaide, a irmã devotada de Quaresma (Angélica Colombo); e de Anastácio, 
o ex-escravo (Geraldo Mário). Há o violeiro Ricardo Coração dos Outros (André de Araújo) 
e, principalmente, Policarpo Quaresma, interpretado por Lee Taylor, ator surpreendente que 
completa o texto com o olhar. Elenco inspirado. Aliás, percebe-se que os atores também 
inspiram Antunes Filho, estabelecendo um caminho de mão dupla. E não podemos esquecer 
o já famoso sapateado de Taylor, quando Policarpo tenta eliminar as saúvas do seu sítio Sossego. 
Há mais, muito mais, além das saúvas, rondando este trágico e ingênuo patriota.
     Impossível deixar de observar a força do elenco, o que comprova o vigor do Grupo 
Macunaíma e do CPT. Há atrizes deslumbrantes, pela beleza e talento, e atores 
expressivos que colaboram com uma entrega entusiasmada para o resultado final. Quem 
não viu o espetáculo e ainda não leu 'O Triste Fim de Policarpo Quaresma', por favor, o faça. 
Fica-nos a turbulenta passagem do século XIX para o século XX, e a Trilogia continua, 
com 'Foi Carmen', concebido por Antunes Filho como um poema e uma denúncia a respeito 
do olhar estrangeiro sobre nós. A visão crítica do diretor continua. Critica, poesia e mistério são 
os seus elementos.
     O que representou Carmen Miranda, realmente? O 'mistério' se estabelece com a estranha 
presença de uma Carmen sem rosto (Emilie Sugai), e a forte proposta de seus movimentos. 
O malandro carioca a tudo observa, com seus olhos atônitos (Lee Taylor). Há 
também a instalação/cenário de J.C.Serroni, no qual turbantes, sandálias, bananas, pulseiras, 
colares, caixas e infinitos adereços levantam questões e estabelecem a  estética do espetáculo. 
'Foi Carmen' vive também da trilha sonora de Raul Teixeira. A única certeza que nos fica 
é a atualização da artista, envolvendo os passos da menininha (Mariah Teixeira), e da 
desinibida passista, interpretada por Patrícia Carvalho. Mas a interrogação permanece.
     A seguir, 'Lamartine Babo', texto, corpo e voz de Antunes Filho e sua capacidade de despertar 
em seus atores os mais variados talentos. Dessa vez a direção é de Emerson Danesi, e a 
direção musical de Fernanda Maia. Os figurinos (do início do século XX) e adereços são de 
Rosângela Ribeiro. Há precisão no tratamento dos detalhes.
    O espetáculo se desenvolve em cena única, em um galpão de ensaio, com os atores formando 
um conjunto musical, cantando as músicas de Babo e tocando instrumentos. Ele nos traz 
algumas surpresas, a principal delas é perceber que Lamartine Babo, tão pouco conhecido 
dos brasileiros (sabemos apenas de suas marchinhas de carnaval), nos remete à linguagem 
universal de Cole Porter. Sim, algumas de suas marchinhas podem ser comparadas, pelo 
seu charme, às composições do americano. Querem ver?
"A vitória vai ser tua, tua, tua, moreninha prosa/ Lá no céu a própria lua, lua, lua, não é mais 
formosa... (etc)/ o inglês diz yes, my baby/ o alemão diz ya, coração,/ o argentino, ao te ver tão 
bonita, toca um tango e só diz "milonguita"/ e o chinês diz que diz, mas não diz..." (e por aí vai). 
Eles foram contemporâneos e a singeleza de Lamartine lembra "You're to Top/ you're the 
Colosseum/ you're the top/ you're the Louvre Museum/". Claro, as referências de Porter são as 
de um mundo mais sofisticado, e suas músicas são mais elaboradas, mas o espírito de 
algumas composições é o mesmo, brincalhão e apaixonado.
    Perdão. A crítica se assemelha ao misterioso Silveirinha (novamente o ótimo Marcos de 
Andrade), o personagem apaixonado por Lamartine Babo. É difícil resisti-lo. Neste verdadeiro 
"ensaio em cena" que é o espetáculo em homenagem ao compositor carioca, surpreende a 
afinação do elenco (e, às vezes, a desafinação proposital). 
    Resumindo: 'Lamartine Babo' é peça ágil, elegante, e também uma brincadeira misteriosa: 
quem é, verdadeiramente, Silveirinha? Uma reencarnação de Lamartine Babo? E sua afilhada 
de voz magnífica? Podemos acrescentar que os atores seguem o refinamento do início do 
culo XX, mimetizando expressões levemente aportuguesadas, e a delicada maneira de falar 
de nossos irmãos d'além mar. 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"É CULPA DA VIDA QUE SONHEI E DOS SONHOS QUE VIVI"

Elenco da peça "É culpa da vida que Sonhei e dos sonhos que VIVI", de Iuri Kruschewsky
(foto Black Ninja)





CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Quando a peça começa, pensamos que se trata de uma espécie de "Pelo Amor de Deus, Não Fala assim Comigo!", de Maria Carmem Barbosa. O assunto é o mesmo, um escritor que define a ação da peça conforme a vai escrevendo. A peça dentro da peça?  Há outras que já experimentaram esse caminho. É um percurso difícil e há de ser bem definido. O de "É culpa da vida que Sonhei ou dos sonhos que Vivi" parece ser a comunicação com a  plateia. Por que? Porque, além de ser essa a intenção inicial do autor, a participação com a plateia irá dar alguma identidade ao espetáculo: moderno? pós-moderno? psicológico? Veremos.
     Até que a ideia é simpática, porém ainda não amadureceu, não é esse o momento de entregá-la à plateia, à crítica.  O andamento ainda é o de uma ação inacabada. Muito ensaio, muitos cortes virão. Muita calma, ainda, para considerá-la pronta. Essa "É culpa da vida que Sonhei ou dos sonhos que Vivi", escrita e dirigida por Iuri Kruschewsky (com esse nome eu pensaria duas vezes antes de apresentar algo que se quer revolucionário!), está no Glaucio Gil, com sabor de incerteza. No início, surpreende-nos aquele ator que quer nos levar para Buenos Aires (daí a participação com a plateia), depois percebemos que ele quer nos colocar no espetáculo, nos fazer participar da história dele - no melhor estilo dos anos 70, teatro participativo - contudo, uma participação  equivocada. Porque malandra? Porque habitante do inconsciente do autor? Não. Até aí tudo bem, nada contra o inconsciente.  
    Ficamos sabendo, também, que tudo o que acontece em cena é dedilhado na imaginação do "outro". Algo começa a se delinear, mas por que não aprofundar o desejo? Não deixá-lo na superfície. Há ambiguidades, sim. Mas por que será que elas, ao invés de dinamizarem a ação, a enfraquecem? Dou a resposta: porque elas não fixam os acontecimentos. Como não há timming teatral, não há envolvimento, não há profundidade. Está em jogo algum sentimento? Não parece.    
     Perdão, mas o fato é que assistimos indiferentes a algo que se inscreve, na cabeça do autor, e se propõe a viver, na cabeça dos atores. Ficamos em dúvida se aquilo não é apenas a preparação para algo, alguma coisa que vai acontecer, depois. Se ao menos houvesse uma razão oculta para viver, em dois planos, uma situação tão corriqueira! Sugiro, para "esquentar a história", que a incansável mulher de vermelho seja a irmã dele, do autor, a que lhe aparece em sonhos! Seria mais rodriguiano...ao menos.
      Esperamos uma nova incursão de Iuri na dramaturgia. É prematuro, ainda, qualquer julgamento, só fizemos algumas observações. Atores: Bruno Quaresma, Kelly Iranzo, Manoel Madeira, Marianna Pastori. Iluminação: João Gioia; Figurino: Ticiana Passos; Cenário (um bom espaço cênico), de Carlos Augusto Campos. Coreografia: Luiza Azeredo; Sonoplastia: Pedro Poema; Produção: Gustavo Rodrigo Herdt.