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domingo, 25 de novembro de 2012

"JACINTA"

Cena de "Jacinta". Texto de Newton Moreno e Aderbal Freire-Filho.
Na foto, Augusto Madeira, Isio Ghelman e Andrea Beltrão
(Divulgação)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Dizem que "essa gente" que, logo que nasce, já vai fazendo um palco em casa e chamando os vizinhos, e as pessoas que encontra na rua, para ver seus espetáculos, são os chamados "atores natos". Bem, no programa dessa inacreditável “Jacinta”, em cartaz no Teatro Poeira, há uma explicação seiscentista sobre esse tipo de gente: são os Cambaleo. É deles que vamos (procurar) falar. Os Cambaleo formam uma companhia que canta, dança e sapateia, em troca de cinco coalhos de queijo, e verduras pra digestão. 
     Essa volta ao teatro puro, a esse narrar sem fim que é “Jacinta”, conta com a presença de cinco "atores natos": a própria Jacinta, interpretada com brilhantismo por Andrea Beltrão, e os quatro companheiros que formam a companhia: eles são Augusto Madeira, Gillray Coutinho, José Mauro Brant, Isio Ghelman e Rodrigo França.
     Ficamos sabendo, pela citação do livro de Rojas Villandrando, de 1604, El Viaje Entretenido (que só poderia ter chegado a nós por intermédio desse Cambaleo-Mór, o diretor Aderbal Freire-Filho), que havia oito tipos de companhias de teatro popular, na época, sendo um deles o “cambaleo". Essa “Jacinta” é um dos "tipos", mas o que faz dela algo tão especial? Vejamos: será  por que conta, à sua maneira arrevesada, o despertar do teatro, no Brasil? Ou será por que se refere, através de toques sutis, ao que acontece no Brasil, nos dias de hoje? Sim, é tudo isso. Mas, e principalmente, porque é uma verdadeira lição de teatro, de interpretação. Comecemos com Jacinta, a camponesa apaixonada por teatro que vai para a capital sonhando em ser atriz. Jacinta vive a sua realidade, e a interpretação de quem a compõe (Beltrão), não faz suspeitar a má atriz que o texto promete. Agora, imaginemos essa mesma camponesa quando se vê em cima de um palco. Aí tudo se transforma. É quando lhe permitem interpretar. É neste momento que há uma transformação radical, e a criaturinha decidida que saiu do campo se transforma em uma nervosa over-acting atriz, "a pior atriz do mundo". Os elementos são de comédia, mas a interpretação de Andrea Beltrão passa por todas as linguagens, e o desamparo de Jacinta é tocante. 
     Mas que linguagens são essas que a peça contém? Há momentos em que ela se transforma em um folhetim. É quando mãe e filha se encontram, embora nada fique revelado. Há sempre essa sutil indefinição que ronda o texto, onde a comédia se une a um cruel tom de farsa, unido a um "se aventurar" desbravador, quase épico. É quando a heroína parte em direção às mais longínquas regiões do país, em busca de seu destino, e vive todas as aventuras, e enfrenta as armadilhas mais terríveis. Esse borbulhar febril de linguagens é a riqueza da peça. Situada em um período histórico que se estabelece como sendo o século XVII, ela oferece, mesmo assim, um descompromissado encontro com o tempo, e estabelece a sua própria cronologia: encontramos um jesuíta (que não é Anchieta), trabalhando com os índios, e o fantasma de Shakespeare (um excelente Isio Ghelman), contracenando com Jacinta e dando-lhe conselhos preciosos que modificarão a sua vida.  Gil Vicente e Antonio José, o Judeu, estão no mesmo pacote, enquanto uma Rainha portuguesa, que pode ter sido inspirada em Maria I, e um Rei que o povo quer assassinar, juntam-se às desditas de Jacinta. A atriz mambembe ficou conhecida, no mundo dos atores!, pela façanha de ter sido a responsável pela morte da Rainha! e por muitas outras aventuras e desventuras. Pobre Jacinta! Ela comete todos estes enganos em nome da sua arte!
      A personagem  fala em montar os “Autos”, embora não tenha muita certeza do que seja isso, e escolhe trechos dos mais lúgubres e pessimistas da literatura Ibérica. A verdade é que, interpretada com absoluta maestria por  Andrea Beltrão, essa Jacinta representa a melhor tradição dos artistas populares da região ibérica. E um grande desafio.  
     Há cenas tão belas, em sua entrega teatral, que dá vontade de rir e de chorar, a quem as assiste.   A camponesa conta: “Na minha aldeia volta e meia / Eu cantava eu dançava eu declamava / na minha aldeia volta e meia / Eu subia num tablado e lá ficava” (letra de Freire-Filho). Eis como fala a a atriz que habita a camponesa. E há esse encontro definitivo com a arte, quando Jacinta encontra o “diretor sublime” que a ensina como  apresentar-se em um palco. O fantasma de Shakespeare mostra-lhe os mistérios do palco, e Jacinta nunca mais será a mesma. A sua fala final nos leva às lágrimas.     
     Difícil essa situação de falar sobre uma obra de arte! Diz o crítico de teatro, interpretado por Isio Ghelman:  “A atriz que interpreta... / Interpreta? /... que transformou nossa noite num naufrágio,/ teve seus três minutos de carreira teatral,/ porque no que depender de mim,/ sua carreira acabou”. (letra de Freire-Filho e Newton Moreno). Existe algo mais autoritário?
     Porém as letras deste “poema musicado sobre o ator”, nas palavras de Newton Moreno, contam a  aventura louca do "mambembar". Nada menos do que a perfeição acompanha esses companheiros do mambembar, nessa aventura de Jacinta. Eles cobrem com euforia e talento sua difícil (e divertida) missão: José Mauro Brant interpreta a grávida torpe, e tantos outros personagens, com tal paixão, que o público adere, com boas risadas. Augusto Madeira desfila seu talento, nos mais variados papéis e  Rodrigo França acompanha-lhe o ímpeto irresistível, seja como o criado da rainha, ou o provador das comidas envenenadas que seriam destinadas ao rei. Isio Ghelman interpreta a Rainha, com absoluto despudor. Nunca o assisti tão solto em um papel. E Gillray Coutinho, o premiado ator de Aderbal,  interpreta Gil Vicente e principalmente o coveiro/ator "cambaleo" perdido nos fundões do Brasil.
     Há os músicos, “Os Jacintas” que acompanham a função do que se convencionou chamar de uma comédia-rock. Essa “trupe” do balcão é formada por Mauricio Coringa (guitarra, violão e bandolim); Tássio Ramos (baixo); Ricardo Rito (teclados); Helio Ratis (bateria), executando as músicas de Branco Mello (direção musical). E, por falar em Mello, há uma parceria com Emerson Villani que não pode ser esquecida. Branco se entusiasma (o que é válido, em se tratando de “Jacinta”), e dedica: “Ai meu deus lá vem Jacinta. / Essa menina pinta e borda./ Que mania de cantar que mania!!! [...]  e festeja: “O Teatro e a Música!!!/ A Música e o Teatro!!! / Que felicidade!!!”
     Uma equipe técnica brilhante desenha o sucesso! João Saldanha na coreografia, em parceria com Marcelo Braga. No cenário: de Fernando Mello da Costa! com suas superposições de objetos de cena que vão sendo utilizados durante o espetáculo. As soluções de Fernando sempre são absolutamente criativas e se adaptam à cena como se tivessem nascido com elas (e nasceram...). Os figurinos, muito bons, são de Antonio Medeiros. Na luz, Maneco Quinderé! Precisa dizer mais, para quem quer um espetáculo afinado? E prosódia! Sim, os atores falam um português... de Portugal! Vão fazer temporada por lá, certamente, pois a sua história é a continuação de outra, e “A Barraca” portuguesa não me deixa mentir. Pois a prosódia é de Iris Gomes da Costa. “Jacinta” consegue mexer com  o nosso tempo, com as sutis, e rápidas, citações de nossas mazelas. Aconselha-se essa "Jacinta" do teatro Poeira!         

Um comentário:

  1. Ida, impossível deixar de ver essa peça depois de ler sua avaliação (aliás, como sempre, uma delícia de texto). Vou ver.

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