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terça-feira, 8 de maio de 2012

"A PEÇA DO CASAMENTO"

CRÍTICA TEATRO
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Dudu Sandroni e Guida Vianna em "A Peça do Casamento"
(foto de Cláudia Ribeiro)
     Em cartaz, no Teatro Laura Alvim, Edward Albee e a "A Peça do Casamento" (1987). Em cena, as últimas horas de um casamento. Mas serão mesmo "as últimas horas"? A verdade é que estamos na presença de uma  situação delicada. Gillian, casada com Jack há 30 anos, se defronta com a decisão do marido, que volta mais cedo do trabalho e declara à sua mulher que está deixando o lar. Famoso por escrever uma dramaturgia que contesta o "status quo" (lembram-se da controvertida peça "Quem tem medo de Virgínia Woolf?" e seu grito contra a academia e seus professores?), Albee quer cortar na carne do burguês. Ele não pertence à geração dos "angry young men", dos ingleses, de John Osborne, dos "fifties". Considerado o maior dramatrugo americano vivo, o tema de suas peças é a família e suas idiossincrasias. "A Peça do Casamento" trafega no limite do teatro do absurdo. Porém, uma verdade salta aos olhos, é quando Jack pergunta: "Que espécie de animais somos? A gente faz o que o instante manda". Albee parece estar questionando, através de Jack, o caráter do homem, não somente o do homem burguês, mas a sofreguidão do gênero humano.   
     Vemos que, em "A Peça do Casamento", a vida bem vivida da burguesia pode transformar-se em uma tragédia... ou em uma comédia. Há momentos, no espetáculo, em que isso se manifesta, de maneira clara. É  quando Jack fala do "brilho", e não é sobre a cocaína que ele está falando: é sobre a beleza. Aliás, há três movimentos na peça que a tornam inesquecível: o primeiro é o da "rejeição" na qual Gillian (em excelente interpretação de Guida Vianna), faz o discurso da rejeitada: "eu estou velha? Deixo você com medo?" e, num crescendo teatral, vai mostrando a insegurança e a perplexidade da esposa abandonada. No final de sua fala, é aplaudida pelo marido. Guida Vianna, nesta peça, tem oportunidade de mostrar a gradação de seu talento, indo da mais pura comédia à angústia, agressividade e ironia da mulher que está perdendo o seu amor. 
     Observamos que, no texto de Albee (eu li a tradução de Marcos Ribas de Faria), há um verdadeiro "show de rubricas", nas quais o autor destaca o grau de liberdade que proporciona a seus personagens. Na fala de GILLIAN, por exemplo, a respeito de Jack, ela observa: "Retórica é algo além de sua capacidade". Imaginamos a cena, quando JACK responde, tranquilamente: "É... Você  pode estar certa.". ALBEE a indica, referindo-se a Jack: (Levanta-se, se Jack, por acaso, estiver sentado). Ele não sabe onde o diretor colocará o seu personagem, e isso não tem a menor importância. Apenas, com essa observação, o autor  dá liberdade a seus personagens, eles adquirem vida própria.
     É o que acontece com Frank, o personagem de Sandroni. Vida própria. Com a súbita revelação de mudança em sua vida, ele pensa que está ficando louco, e passa a controlar a sua ação (controlando a do ator), para não entrar em colapso. Sandroni, nesta peça, está em um momento inspirado de sua carreira, e o diretor Pedro Brício explora com sucesso a sutileza e a fragilidade do seu personagem. Encontro perfeito: há uma simbiose entre personagem e ator, entre Sandroni e Jack, algo semelhante ao que aconteceu a Aderbal Freire Filho, no filme "Juventude", quando o diretor Domingos de Oliveira jogou com a tensão e a  fragilidade do personagem/ator. Com seu desempenho, Dudu lembra Aderbal, e demonstra que está apto a participar da "Ceia dos Cardeais" dos três amigos: Aderbal, Domingos e Paulo José, fazendo o "quarto cardeal".
     Mas os meandros do absurdo são elásticos. E muito particulares. Podemos comprová-lo em Ionesco e seu teatro, ele que foi o iniciador de "todas as loucuras". E dizer que o romeno se inspirou em uma aula de inglês! Foi fazendo uma paródia sobre as aulas que ele era obrigado a frequentar, que Ionesco chegou à "A Cantora Careca"! E onde se localiza o absurdo em "A Peça do Casamento"? Obviamente, no impasse ocasionado pela vida a dois. A opção foi experimentar todo o tipo de reação possível ao descompasso dos dois, inclusive através de música e dança, ao som da trilha sonora de Lucas Marcier e Fabiano Krieger.  Relembramos, também, no final da peça, de "a luta", onde os dois atores quase se estraçalham em cena. Uma luta absurda, porém "um discurso adorável, e um atentado à verdade", como são encarados,  pelo casal, os seus embates. O autor, depois de aconselhar, na rubrica (de uma página), os movimentos da luta, emenda: (Obviamente, tudo isso deverá ser coreografado dentro das possibilidades dos atores, até os seus limites). O diretor Pedro Brício e Andrea Jabor, em sua preparação corporal, seguem à risca a sugestão do autor. Nos momentos finais da luta, ouve-se o diálogo absurdo do casal: GILLIAN: "Você está ótimo" JACK: "Você também". GILLIAN: Desculpe a joelhada". JACK: "Você sabe como atingir um homem". GILLIAN: "Talvez esse seja o problema".
     A iluminação preenche todos os caminhos, inclusive o do jardim, último reduto indicado para o herói (uma citação de Voltaire?), a luz é desenhada por Tomás Ribas; figurinos, sublinhando as citações do texto, são de Rita Murtinho. Cenário, Aurora dos Campos. Há um espaço livre, na cenografia, uma arena dentro do palco (ao menos foi essa a impressão que ficou), para melhor desenvolver o "interlúdio físico" da luta entre os atores. E há o terceiro movimento, depois da luta, "o brilho" da beleza perdida. JACK afirma: "Ainda hoje eu brilho... quando estou sozinho... não vou andar por aí brilhando pra qualquer um. Para que gastar meu brilho? E GILLIAN, em um jogo de palavras: "Você não brilha para mim faz muito tempo, não é?" Outro jogo interessante, a que Albee se entrega, são as brincadeiras com os autores famosos, como  Henry James, D. H. Lawrence, Hemingway... Quem quiser ver bons atores, e um bom texto, não perca "A Peça do Casamento". É muito bom ver bom teatro.
   
   

quinta-feira, 3 de maio de 2012

"ABRAM-SE OS HISTÉRICOS!"



CRÍTICA TEATRO
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
       Marina Salomon,  Marina Magalhães, Patrícia Niedmeier,
   Aline Luna e Antonio Quinet - (foto da produção)
CENTRO CULTURAL
JUSTIÇA FEDERAL
AV. RIO BRANCO
           - RJ -
       Atenção! Um novo espetáculo de Regina Miranda está em cena até dia 17 de maio, no Centro Cultural da Justiça Federal. É lá que, cercados pelo frenético trânsito da Avenida Rio Branco, nos sentimos, de repente, em pleno século XIX. Fantasia e realidade se entrecruzam, mostrando o caminho das grandes damas loucas! Trata-se de "Abram-se os Histéricos", um espetáculo de dança e teatro que fala sobre o trabalho do Dr.Jean-Martin Charcot (1825-1893), médico e professor de neurologia. Suas aulas de medicina foram adaptadas para teatro pelo psicanalista-dramaturgo Antonio Quinet (com a colaboração de Regina Miranda), retiradas de seu livro "A Lição de Charcot". Na direção, o vigor e a inteligência de  Miranda, unido-se à intensa pesquisa teatral de Quinet, um apaixonado pelo teatro. O psicanalista é o criador da "Cia. Inconsciente em Cena", que apresenta o espetáculo. O autor nos faz ver que o tema fascinante da histeria vence preconceitos: Charcot  também. O médico oitocentista declara que a histeria não é um privilégio da mulher, e passa a pesquisar o homem histérico, o que, à época, era uma blasfêmia.  
Os gestos convulsivos dessa síndrome, Quinet os entregou à Regina Miranda coreógrafa, especialista em Rudolf Von Laban. Regina se encarrega também da encenação do espetáculo. 
    Em um cenário branco sobre branco, lava-pés, banheiras brancas e portas envidraçadas, o público fica entregue à realidade do hospício de La Salpêtrière, em Paris. Ao fundo do palco, protegidas pelas paredes de vidro, as pacientes são tratadas pelos enfermeiros. Em outro plano, no proscênio, ficamos entregues ao  mundo da alma das pacientes: é neste espaço onde o interior humano se revela. Para Charcot, o útero é um órgão articulado que protagoniza a alucinação: um órgão volante que sufoca a mulher. Aplicando um método por ele criado, o da compressão do ovário, ele atenua a dor e os ataques de suas pacientes. As demonstrações do método são feitas nas aulas que ministra a seus alunos, em um salão onde uma plateia de leigos (nós, a plateia), também pode observar o resultado de suas pesquisas: a histeria é o assunto do momento. É quando Blanche Wittman (Marina Salomon),  paciente-vedete das aulas de Charcot, faz a sua "performance". Essas encenações se tornaram moda, na Paris dos oitocentos.    
     Em suas aulas o neurologista cita o diretor francês Antoine, e seu teatro realista, e nos diz que a histeria "é uma verdade feita de mentiras", como no teatro! Os gestos exacerbados de suas pacientes (doença ou encenação?), mais parecem um espetáculo teatral. O jovem Freud (interpretado com incrível verossimilhança por Evandro Manchini), a tudo assiste, e se contrapõe ao mestre. Para ele são "fantasias do inconsciente", o que aquelas mulheres hipnotizadas protagonizam. Trata-se de uma época estimulante para os estudos da psique. A psicanálise está começando a nascer, e é através do teatro que Freud chega a Sófocles, a Édipo e a seu complexo! Mas há outros alunos de Charcot que também brilham,  como Joseph Babinski (interpretado com charme pelo ator Jano Moskorz), o descobridor do reflexo de babinski, ou "reflexo plantar", cuja reação adversa sinaliza lesões neuroniais. E, interpretando o neurologista e clínico geral, o excelente Lourival Prudêncio. 
    Nesta montagem foi dada uma atenção muito especial à semelhança dos atores com os seus personagens. Tais cuidados vemos acontecer no teatro e no cinema europeus. Prudêncio, assim como os atores que interpretam Freud e Babinski, possui o phisique du rôle de seu personagem, e a presença carismática do médico, tal como a podemos imaginar, se concretiza no palco. 
     Quanto à encenação, Regina Miranda transporta para seus espetáculos o impacto das artes visuais (lembramos "Contra-Ataque", produção em que Regina joga em cena, como se fosse uma instalação, um túnel de raio lazer, e na confluência das luzes do túnel, os bailarinos dançam a sua dança de impacto). É de tirar o fôlego. Dessa vez Regina divide o palco em dois planos: o hospital, ao fundo, e o salão da casa de Charcot, no proscênio. É neste salão que o médico apresenta o resultado de suas pesquisas. Trata-se de um visual impregnado de ação. Em primeiro plano, as atrizes-bailarinas evoluem, mostrando seus ataques e delírios. É de uma beleza fundamental a cena das sonâmbulas dançando, no proscênio, enquanto são examinadas por Babinski (Morskorz) e observadas pela escandalizada enfermeira (Berenice Xavier).
    Entre as bailarinas-atrizes, Marina Salomon encanta com a sua presença. Ela é uma artista que, com um simples gesto, pode encarnar uma trágica grega, uma cantora lírica, ou a histérica  vedete das apresentações de Charcot. O rosto esplêndido de Salomon, sua voz e sua atuação podem transformar a cena. Aliás, a seleção de bailarinas-atrizes de Regina Miranda é perfeita: Sarah Bernardt é interpretada com precisão por Patricia Niedmeier. Sim, Sarah Bernardt frequenta Charcot, assim como (segundo Antonio Quinet), - pasmem! - o nosso querido D. Pedro II (o monarca não aparece em cena). A atriz-bailarina Aline Luna protagoniza Jane Charcot, filha do neurologista. E a atriz Berenice Xavier interpreta a enfermeira que a tudo assiste e reprova os métodos de Babinski... a quem ela acusa de pervertido! - porque em suas pesquisas o jovem estudante, descobridor do "reflexo plantar", examina com excessivo cuidado os pés de suas histéricas! Marina Magalhães tem a instigante cena do assédio, protagonizando Blanche Wittman menina. 
     Não podemos esquecer que as pacientes, como todos os "angustiados" e loucos, são dominadas pela ânsia de fugir do hospício. A cena da fuga é plena de teatralidade: o fundo do palco se abre e deixa ver o jardim do Centro Cultural, local onde, em algaravia, as histéricas se refugiam, tendo ao fundo o movimento do trânsito da rua México. Essa cena é um dos pontos altos do espetáculo, em termos operísticos, como também o é o acompanhamento musical realizado por José Eduardo Costa Silva, diretor musical. Desde a música apresentada no início da ação, a "Serenata ao Luar", de Beethoven - e as louquinhas, envoltas em branco, traçando passos labanianos com seus figurinos esvoaçantes - até trechos de "A Sonâmbula", de Bellini, e de "La Traviata", de Verdi, com as atrizes e seus figurinos brancos (acertos de Luiza Marcier, mestra a dar requinte ao espetáculo com as soluções de seus tecidos). O século XIX impera. E, no pequeno teatro da Justiça Federal temos uma "camerata operística" das mais bem sucedidas, com a voz de Márcia Lyra (soprano), e o piano de Ernesto Hartmann. 
     A iluminação de Dani Sanchez, com variações de luz e sombra, e a bateria de "spots" (outro ator em cena), dão o clima adequado para a ação. Não podemos esquecer a histeria "de salão", representada pela hostess (Aline Luna), que oferece, insistentemente, "champagne, champagne para todos!" Segundo Quinet, "a histeria, com a sua teatralidade, continua a desafiar a ciência". Ele afirma: "nada melhor que o teatro e a ópera para colocar em cena o corpo histérico que grita". Agora um conselho: não percam "Abram-se os histéricos!" Precisa mais?