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segunda-feira, 23 de julho de 2012

"SILÊNCIO - INFERNO"

"A Travessia do rio Estige", de Delacroix. A convulsão dos corpos lembra o movimento dos atores de "Silêncio - inferno", direção de  João Marcelo Pallottino

IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Eis que fui assistir a uma adaptação livre do "Inferno", da "A Divina Comédia", de Dante Alighieri, no Espaço SESC de Copacabana, julho de 2012. Trata-se do espetáculo "Silêncio - inferno", uma interpretação do texto de Dante, com direção de João Marcelo Pallottino. A proposta do diretor é completar a Trilogia com "Purgatório" e "Paraíso", que possivelmente estrearão em 2013. Este "Solidão - inferno" nutre-se do olhar multifacetado do diretor, que traz embutido em si o artista plástico e o músico (sabemos que essas qualidades unem-se, quase sempre, em se tratando de teatro, ao trabalho coletivo dos atores). Desde os primeiros momentos da encenação, o visual do espetáculo e os gestos dos atores são os responsáveis pela sensação de estranhamento que é transmitida ao público. A trilha sonora, uma seleção do diretor, mistura baladas medievais e sinfonias românticas, acentuando esse estranhamento. Pallotinno é oriundo da Companhia dos Atores da Laura, e montou, junto com a atriz Symone Strobel, a Hospedaria Companhia de Teatro, que produz "Silêncio- inferno". Como sabemos, na "Primeira Parte" dos "Cantos", Dante, o poeta florentino, é guiado por Virgílio, outro poeta latino, que lhe dá a conhecer os horrores das almas malditas. 
     O "Inferno" de Dante é uma obra conhecida, montada, adaptada e apresentada das mais diversas maneiras, mas o que surpreende, neste espetáculo, é a força de sua  linguagem. A princípio, pensamos tratar-se de uma "instalação", tal o impacto das artes plásticas na composição das cenas. Nesta encenação contemporânea, o simbolismo predomina. Essa afirmação, que pode parecer contraditória, traz, na  iluminação de Ricardo Grings a sua resposta, estabelecendo o clima e a densidade dos personagens. Mas a responsabilidade de sustentar a ação simbólica é do diretor. Sem falas, é através dos gestos que Pallottino dá a conhecer o que se esconde por detrás das almas em sofrimento. Há uma repetição, incontrolável, dos movimentos, atestando o castigo dos condenados. O silêncio da encenação só é rompido, eventualmente, pela respiração ofegante e os gritos de alguns personagens.
     O ritmo que o diretor dá à movimentação dos atores impregna a cena de suspense e expectativa, e estes sentimentos se refletem na plateia. Porém não conseguimos saber se o silêncio, que a tudo domina, acontece em homenagem ao grande mestre florentino, ou se o público adere a ele por enfrentar, na própria vida, o mistério da morte. Das profundezas do Inferno ela domina, soberana, e esse é o principal questionamento da peça.
     A espera angustiante e claustrofóbica dos personagens terá uma representação semelhante no espaço da cenografia de Leo Bungarten, onde as paredes se movimentam e o pesadelo se impõe. Na representação das almas condenadas, a montagem se revela em seu ritmo delirante. É esse ritmo que o diretor Pallottino imprime à cena, unindo-se ao trabalho de impacto do cenógrafo, que cria as suas especificidades, espelhamentos, reflexos e espaços exíguos. Também o visagismo e os figurinos de Paulo Barbosa contribuem para as situações que vão dar ênfase às cenas "dantescas" do diretor, nas quais as simulações de suicídio se repetem, e onde a tortura praticada contra o próprio corpo também representa a tortura imposta ao outro.    
     Há gestos que marcam o interminável tempo no Inferno. Uma das cenas mais impressionantes é a da eletricidade na água, onde a representação da tortura é feita com absoluto domínio da "estética", devido à beleza da atriz. Ou seja, é espantosa a beleza do "ensemble" do espetáculo, tornando-o passível de ser  assistido de diversas maneiras, porque ficamos presos às suas diversas imagens. A iluminação dá à ação tons de irrealidade e sonho, provocando reações estéticas de quem está assistindo a cenas miseráveis de castigo e abominação.
     Entretanto, o espetáculo emociona pelo inusitado. O único senão, talvez, ficará com a cena da parede de papel (alguma representação simbólica?), e o seu conseqüente esfacelamento. Trata-se de algo previsível e mal resolvido, quebrando a beleza estética do espetáculo. "Silêncio- inferno" atinge a sua finalidade ao relatar a história do massacre físico e mental que é ditado pelas crenças espirituais que o ser humano alimenta. Do ponto de vista da encenação, podemos dizer, para finalizar, que o acerto do espetáculo é motivado também pelo trabalho de Edson Fiuza, operador do som, e do cenotécnico, Moisés Cupertino. Quanto ao mais, é interessante observar que o diretor andou de mãos dadas com o autor, ao se esquecer da libido, tal como acontecia nos tempos de Dante.
     Há, no espetáculo, uma enorme sexualidade reprimida, manifestada nos gestos desesperançados dos mortos-vivos que abdicam de qualquer sentimento, a não ser o de horror. Estamos recordando que a passagem da luxúria, em Dante, não foi destacada nos "Cantos" apresentados, e que dá aos atores de Pallottino (a alguns deles), semelhanças físicas com os  atores de Bob Wilson que, desesperançados, vivem o seu próprio Inferno. O que percebemos, ainda, no espetáculo do brasileiro, é um cenário no qual as três portas simbólicas se transformam e se locomovem, dando-nos a impressão de vislumbrar as cavernas de Dante, dentro das quais os atores evoluem, em vários níveis de "Inferno". Temos a impressão de ver, em certos movimentos dos corpos aflitos, as convulsões dos quadros de Delacroix (daí a sua reprodução, no início da crítica). Elenco de excelentes atores: Ana Amélia Vieira, Flavio Pardal, Leandro Fernandes, Ricardo Gringo e Symone Strobel. Esperamos que este "Silêncio - Inferno" volte brevemente aos palcos do Rio de Janeiro. Seu "estranhamento" enriquece a cena carioca. 

domingo, 22 de julho de 2012

Leonardo Medeiros em "O Livro dos Itens do Paciente Estevão
(foto divulgação)


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial) 

Ou estou ficando maluca, ou a incompreensão entre público e espetáculo é radical, neste  "O livro dos itens do paciente Estevão", estreia de Felipe Hirsch e sua Sutil Companhia de Teatro neste último dia 11 de julho, no Rio de Janeiro, SESC Copa. A princípio pensamos estar "enfrentando" (e essa é a palavra, "não temos tempo para a semântica" como diz um dos médicos loucos), um espetáculo de "Grand Guignol", com todos os recursos horripilantes que ele pode oferecer!
     Mas nos comprometemos com as 5 horas de espetáculo e ficamos dispostos a enfrentar o desafio: afinal, saber como o normal Estevão (Leonardo Medeiros) enfrentará suas desditas, nos impede de deixar o teatro ao primeiro (e único) intervalo. Com cenário de Daniela Thomas, e a fantástica luz de Beto Bruel, os artistas pensaram com carinho em todas as representações do horror e do grotesco para incluí-los na cena, desde caveiras, esqueletos, até cadeiras de roda, forcas, etc. - envolvidos por ruídos, sons e marcações de suspense. Mas nada disso se compara à música delirante e adaptável ao circo de horrores do diretor. Fato interessante: os personagens da cultura "pop", que tanto "frisson" causaram em "O Céu está Vazio", se vulgarizaram com a presença maciça nessa peça paulistana. Assim, tem a emo, representada pela filha adolescente de Estevão, e o "costume-player" que se desdobra em vários personagens. Eles variam com tal assiduidade e profusão, misturados a outros personagens fantásticos que, a princípio, pensamos estar testemunhando alucinações, porém depois ficamos sabendo que, sim, tais problemas fazem parte de uma situação de vida do diretor Hirsch, unida à  inspiração vinda de um  livro, "O paciente Steve", de Sam Lipsyte, com tradução de Cid Knipel.
     Felipe Hirsch foi buscar inspiração para escrever sua peça em um fato acontecido com ele - e não só com ele, podemos garantir - e os desmandos da classe médica, dos amores, da compulsão e tudo o mais que envolve a sociedade atual. E, de repente, o que nos parece descabelado começa a tomar forma, corpo, e, súbito, entendemos a peça. Claro, essa forma de narrativa pode ser o caminho para acompanhar a loucura de nossa sociedade. Alguns diretores a estão captando, uns com mais precisão, como é o caso extremo de Hirsch, outros ainda às apalpadelas, porém podemos nos orgulhar de termos cabeças que não precisam de napalm em cima para perceberem que algo está fora de lugar, na nossa sociedade e na raça humana. Tivemos esboços, tanto em tratamentos diferentes para a nossa subjetividade, como o exemplo recente "Abram-se os Histéricos!" - atualmente em cartaz no Espaço Tom Jobim, ou mesmo o já citado "O Céu está Vazio" - mas nunca com a contundência do que se imagina ser um Tadeusz Kantor, como é o caso de Hirsch.
     Sim, Felipe Hirsch resolveu falar sobre a morte. Enfrentar o seu mistério. Só podemos dizer que, aproveitando esse olhar, ele o estende a todas as distorções da vida. Cerca-se, é claro, de excelentes atores, para conseguir realizar o seu intento. Ele trabalha com Guilherme Weber, seu companheiro de tantas montagens bem sucedidas, e com Leonardo Medeiros, o alter ego do diretor que acompanha toda a montagem, o único personagem coerente e levemente sadio. Weber, por sua vez, é um alucinado que se transforma o tempo inteiro, culminando, em um dado momento, em Adolfo Henrique (por que será esse Adolfo, hein?), o criador do "Centro de Recuperação de Almas": mais  mórbido impossível.
     Quem quiser assistir a peça - só vai até dia 5 de agosto - vai se surpreender com o seu final. Indeed. Os figurinos são de Cassio Brasil, uma enrascada futurista; os vídeos de Frederico Machuca; produção de Objetos de Alice Carvalho e o cenotécnico, bom pra caramba, é Paulo Batistela. O sistema de projeção fica com Martin Bonardi. Agradeço a gentileza de Beto Bruel, que me cedeu a ficha técnica.
     ... E assim se escreve um livro: em 5 horas, 9 cadernos divididos em 2 partes: "Os Princípios" e "Os Domínios". Autor: Estevão, o paciente.                 

quinta-feira, 19 de julho de 2012

"NÃO EXISTE MULHER DIFICIL"

Marcelo Serrado em "Não existe mulher difícil" (foto divulgação)





CRÍTICA TEATRO
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


     Trata-se de um texto de Lucio Mauro Filho, inspirado no livro de André Aguiar Marques, com direção de Otavio Müller (um excelente diretor), e com o ator Marcelo Serrado aceitando o desafio de interpretar um texto descompromissado, segundo os idealizadores, um texto sobre "o cafajeste moderno"... O espetáculo nos pegou de surpresa. Ele visita todos os tipos de comédia, desde a chanchada brasileira até à fescenina italiana, passando pelo rústico interiorano do Brasil, e indo até a suposta ginga do carioca. Marcelo Serrado é uma caixinha de surpresas, só vendo para crer.
     Perpassando o espetáculo, a marcação operada por Serrado, ao piano, apresentando as cenas que vão ser interpretadas: de terror, amor! suspense... É quando entram em cena Erasmo Carlos, os sertanejos... e Michel Teló! Trechos sussurrados pelo ator. Somente trechos, é claro, citados na voz de Marcelo. Surge até Roberto Carlos... e o "show" da noite que é a sua interpretação de Renato Russo! Sim, vale a pena, Marcelo Serrado é um dos melhores intérpretes do cantor brasiliense, e faz uma justa homenagem a ele, neste tempo de homenagens a Renato Russo! Eu ouvi o timbre, não me pareceu play back, a não ser que tenha sido muito bem operado. O ator consegue surpreender, ainda, quando se "comunica" com a plateia. Trata-se de algo inesperado, vindo de um ator de perfil tão... clássico! (não estou exagerando, mesmo apesar de algumas comédias que ele tem participado, ultimamente).    
     Explico: Falo de seu aspecto físico. Marcelo Serrado parece talhado para fazer um Calígula, um Cipião, o Africano, o grande general romano da Segunda Guerra Púnica, ou um "Varão de Plutarco"! (e não fujo à verdade). Porém, para nossa surpresa, ou talvez não, ele se compraz em fazer comédias. Desafios? Neste "Não existe mulher difícil" ele nos brinda com marcações musicais ao piano e um "encontro com o público", onde a descontração impera... e também os olhares fascinados da plateia.   
     O mínimo que posso registrar é o surpreendente poder de comunicação de Marcelo Serrado. Conheço seu trabalho, e tenho observado com cuidado o desempenho deste ator em cinema e televisão. Trata-se de um artista cuidadoso com os detalhes de sua profissão, um ator sério e talentoso que nem sempre teve a oportunidade de jogar com um papel que revelasse todo o seu talento. Este monólogo apresenta um ator disposto a se comunicar, ora como personagem de um  homem que acaba de se separar da esposa, ora como ele mesmo, Marcelo Serrado, com seus comentários e improvisações. Neste monólogo, Marcelo não se limita a comentar o comportamento e as idiossincrasias femininas, passando em revista todo tipo de mulher: desde a patricinha, a cachorra, a mulher casada, e outras mais, seu retorno, como personagem, ao "mercado dos solteiros" depois de uma fracassada experiência de vida a dois, pode ser hilariante...e, às vezes,  traumatizante!
     Nestes tempos de homens se justificando, chorando e pedindo desculpas por um passado autoritário do qual eles não foram protagonistas (os patriarcas autoritários  pertencem, agora, a uma classe extinta), este homem que chora e pede desculpas é o mesmo fiel cafajeste, representante de uma espécie (talvez) em extinção: o  heterossexual! Neste espetáculo nos confrontamos com o homem temeroso do poder da mulher, este ser que "sangra e não morre". A plateia fica absolutamente fascinada por este ator/personagem que é  capaz de reconhecer a sua parceira e seduzir o público com as grandes diferenças que existem entre o masculino e o feminino. Seu bordão? "Não vai dar certo!" É o que provoca um sorriso nervoso nos jovens casais que lotam a plateia, e, ao mesmo tempo em que Marcelo interage com seu público, ele incorpora, como ator, os fatos ocorridos entre palco e plateia, adaptando-os ao espetáculo. Marcelo Serrado consegue essa interatividade, e o que presenciamos é um diálogo gostoso, saudável e carinhoso. Fica aqui o registro. Se algum dia Marcelo Serrado voltar a apresentar "Não existe mulher difícil", não percam! Agora ele está no SESI de Itaperuna.    
Ficha técnica: Direção de Arte, Maria Borba; Direção Musical, Marcio Tinoco; Trilha Sonora: Dany Rolland. Iluminação: Paulo Denizot.

  





segunda-feira, 16 de julho de 2012

"EU É UM OUTRO"

Elenco de "Eu é um Outro" - Lorena da Silva, Alcemar Vieira, Ana Abbott, André Marinho e João Velho
(foto divulgação)


CRITICA DE TEATRO
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Estreou no Teatro Poeirinha, "Eu é um Outro", sobre o poeta Arthur Rimbaud. Emocionante saber que o belo espetáculo é uma homenagem ao nosso querido Sergio Britto. É bom lembrar que Isabel Cavalcanti, a diretora de Rimbaud, dirigiu Britto em duas peças breves de Beckett, com as quais o ator ganhou o Prêmio Shell de melhor ator de 2009. Bela homenagem.
     "Eu é um Outro" trata da vida, poesia e morte de Rimbaud, escrita por Pedro Brício, por encomenda do ator André Marinho, da produtora Christine Braga e da própria diretora, Isabel Cavalcanti. O texto é um bem imaginado percorrer da vida do poeta, abordando inclusive os acontecimentos que o transformaram em mito, e a repercussão desse mito nos anos 70,  no Brasil, e em 2005, em Paris. Trata-se de uma oportunidade para mostrar como a rápida passagem do poeta pela vida foi marcante e transformadora, em termos de arte. Rimbaud nos deixou aos 37 anos e sua motivação, seu caminho, depois dos 20 anos até sua morte, são enigmas. Pois bem, é sobre esse mito e esse enigma que o autor Pedro Brício e a diretora Isabel Cavalcanti tecem uma das mais lindas histórias sobre poesia, envolvimento e emoção.   
     O que se fazer com estes dois gênios, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine? Um escreve Poèmes Saturnians com 22 anos, o outro Le Bateau Ivre, aos 17... o encontro dos dois só poderia ser explosivo. Pedro Brício e Isabel Cavalcanti exploram exemplarmente esse brilho. E a cenografia de Fernando Mello da Costa forma o trio capaz de tornar texto, atuação e mobilidade temporal surpreendentes. Estamos em diversos lugares, e os atores se transformam, conforme a necessidade da narrativa. E não é efeito especial ou manobras de cenografia: é teatro puro. De repente, estamos na casa da mãe de Rimbaud, em Charleville, no quarto onde o poeta dorme e divaga; no hotel em que os dois poetas se separam; ou no século XX, vendo a tradutora de Rimbaud (Lorena da Silva, em desempenho inspirado), em sua mesa de trabalho; ou na Paris de 2005... e a revolta dos povos do Oriente, o "pied noir" e sua dignidade de militante (André Marinho)... Diversas épocas e, ao mesmo tempo, a intensidade do poeta, a maneira de, tecnicamente, trazer velocidade e transformação para a cena, através da apresentação  dos personagens. A "a esposa de Verlaine", por exemplo, Matilde (Ana Abbott), estoura a barriga de balão e se transforma em uma mulher do século XXI, declarando que não está de acordo com a papel da mulher, "em nenhum século"! Será a voz do Brício que se manifesta? Ou a de Isabel? Jamais saberemos. Conforme palavras do autor, a peça foi se desenhando nos ensaios.
     Mas o essencial é a luta de Arthur Rimbaud (João Velho), pela liberdade. A sua tentativa emocionada de ser livre, e de libertar Paul Verlaine. Em vão, o rompimento se estabelece. Verlaine é também a representação da poesia, mas sem o arrebatamento de Rimbaud. Poetas simbolistas, suas poesias são eles mesmos e suas metáforas, e o instante: embora Rimbaud pense viver duas vidas. E tente vivê-las. Ouçam Verlaine, o poeta da musicalidade: "Les sanglots longs/Des violons/De l'automne/Blessen mon coeur/D'une langueur/Monotone" Esse poema virou símbolo, é o mais popular de Verlaine. Ou Nuit de Walpurgis Classique: "C'est plutôt le sabbat du second Faust que l'autre,/Un rythmique sabbat, rythmique".../
     Pedro Brício nos relata o que Rimbaud pensa de seu companheiro: ele não escreve poesia, Baudelaire, sim. Estamos falando do jovem Arthur... e o ponto alto do espetáculo se aproxima - não o percam, por favor! - é  quando Rimbaud (João Velho), declama, em português, trechos de Le Bateau Ivre. A plateia devia ouvi-lo de joelhos (aux genoux). E, enquanto o poeta fala, é  projetado ao fundo da cena o poema em francês, escrito na caligrafia de Rimbaud - e o mar ao fundo, e o poeta/ator oscilando, em sua embriagues... Imperdível!  (Arte de Massimo Esposito). "Ah! Se as crianças vissem o dourar das ondas/Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes.../- Espumas em flor ninaram minhas rondas/E as brisas da ilusão me alaram por instantes"//. O jovem Rimbaud dizia em carta a seu professor e mentor, Izambar (nome oriental...), que alcançava a transcendência poética através de um "longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos."
     O ator Alcemar Vieira abre o espetáculo, fazendo um resumo dessa vida desregrada, e criticando como as biografias são escritas, tão friamente. Na verdade, é impactante ver como elas são interpretadas, ao vivo, em cima de um palco. Alcemar interpreta Paul Verlaine e, enquanto "apresentador, que abre portas para o público",  nos faz descortinar o mundo vibrante que vamos testemunhar. O elenco acompanha a emoção, e defende, no momento em que vive, seja no século XIX, na França, ou anos 70, no Brasil, ou ainda na França, em 2005, a revolta e a emoção dos dias que testemunha. E há sempre no ar a presença do poeta: Lorena da Silva, forte como a brasileira que não se conforma com a censura a Rimbaud, feita no Brasil de seu tempo (o autor declara ser um fato verídico, essa censura). O argelino (interpretado por André Marinho), não se conforma com o preconceito em sua época, e quer transformar o mundo - um Rimbaud moderno? A amorosa Isabelle, irmã de Rimbaud (Ana Abbott), se transforma em tantas outras mulheres, igualmente amorosas, igualmente revoltadas: a esposa do poeta, a irmã do poeta.... mulheres.
     Enfim, esse jogo do tempo, o retorno no tempo, ele nos mostra o caminho amargo (e sutil?), dos que conseguem transcender. E a indagação sempre presente: quem foi, na verdade, Arthur Rimbaud? Para uns, um jovem ambicioso à procura do enriquecimento. Para outros, um ser ferido, um romântico tardio que foi em busca de seu oriente fantástico. Um Lord Byron francês?
     Enfim, o espetáculo tem na sua equipe técnica Tomás Ribas na iluminação, dando vida ao cenário de Fernando Mello da Costa e aos figurinos de Rui Cortez. Como a luz estabelece os ambientes, não percebemos quando os personagens mudam seus figurinos, tão absorvidos estamos pelo que se passa na encenação. Aliás, mudam-se os acessórios e entram em cena novos personagens, somente João Velho personaliza o Eu de Arthur Rimbaud. E talvez seja essa a peça a que coloca com maior perfeição o relacionamento entre esses dois grandes poetas.
     A ação é secundada pela direção musical de Tato Taborda e a movimentação cênica de Cristina Moura. A participação destes dois artistas da à composição cênica a vibração necessária. Também as projeções de Paola Barreto e Lucas Canavarro dão vida ao contexto histórico/poético que embala a narrativa. Até o programa da peça é realizado com acabamento poético, com o design de Sonia Barreto. Um cenotécnico perfeito complementa o acerto do espetáculo: ele é Mario Pereira. Podemos dizer que "Eu é um Outro" é um vôo ao tempo seminal da poesia simbolista em seu caminho para a modernidade. Entretanto, Arthur Rimbaud foge aos rótulos, com "seus solados de vento", e o elenco fica impregnado dessa imagem. Eles ensaiam, em cena, e no final há um corte, e os atores debatem o que acaba de acontecer. Há confusão, eles parecem  perdidos, não sabem qual personagem representar, como preencher os vazios. Somente o ator que interpreta Rimbaud não se desliga de seu personagem, tentando decifrar-lhe o enigma e, espírito tomado pelo poeta, atira para a plateia um verso da despedida de Rimbaud, que pode ser uma abertura para desvendar o seu mistério... Aconselha-se uma ida ao teatro, pois o espetáculo é imperdível. 

domingo, 8 de julho de 2012

"BANDEIRA DE RETALHOS"

Renan Monteiro (Bituca), Edson Oliveira (Sargento) e Kizi Vaz (Tiana), em "Bandeira de Retalhos"
(foto de Ricardo Gama)



CRÍTICA DE TEATRO
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado, "Bandeira de Retalhos", texto de Sérgio Ricardo, encenada pelo grupo Nós do Morro. A direção é do fundador do grupo, Guti Fraga, com Fátima Domingues. Direção musical, Sérgio Ricardo. O espetáculo é uma homenagem a Fred Pinheiro, um dos fundadores do Nós do Morro, e aos 25 anos de atividade do grupo. Comemora-se também os 80 anos de Sérgio Ricardo, o conhecido músico, morador do Vidigal há pelo menos 30 anos. "Bandeira de Retalhos" é vida real e é História, com H maiúsculo. O episódio de remoção dos barracos, na década de 70,  foi uma tentativa do governo dos militares de desestabilizar a comunidade e entregar uma parte do morro (a com vista por mar), para a iniciativa privada. História pura, a da resistência e da paixão do povo do Vidigal. A organização da comunidade, a Associação de Moradores se fortalecendo, teve início ali, naquele instante.
    Impossível entrar na História sem se emocionar. Resumindo: ao mesmo em tempo que o autor conta o episódio vivido por ele, o da remoção do seu barraco (na ocasião o artista era morador do "Lado do IPTU", como eles chamavam os da "Estrada do Tambá"), mas acabara de mudar-se para um barraco, para viver o contexto do roteiro de  "Zelão". O artista ficou mobilizado pela arbitrariedade do governo da época (o dos milicos), e não saiu mais de lá, lutando por justiça junto com os moradores. Na peça, o seu personagem é Tuim, interpretado pelo próprio filho, o músico e ator João Gurgel. Tuim entrega para o engenheiro (Danilo Batista) a chave do apartamento que acaba de receber para se mudar para Antares, Zona Oeste do Rio. Nenhum dos moradores do Vidigal queria se mudar para lá, mas foi o músico Tuim quem verbalizou esse desejo da comunidade, de permanecer, de ficar: "aqui está a chave do ap, pode ficar com ela, dá pro prefeito, pro governador, pro presidente da República, daqui eu não saio não". E assim foi deflagrado o movimento. Todos de lá aderiram. Ou quase todos...
     O que mais encanta em "Bandeira de Retalhos", além do tema, é a sua concepção de opereta: ilustrando cada movimento da história, uma música: "Passarim Currupião", que encontra a corruptela para a palavra corrupção: "currupia daqui, currupia de lá/ É tanta "currupição"/ Que não quer se acabar". (Não pode ser mais atual, agora que a luta contra a corrupção se acentua). Ou a letra de "Abraço a Retirante", poesia pura: Pra que paredes, porta e tramelas/Jardim em flor e o fogo que acalenta/Perdeu o sentido o mundo na janela/do triste olhar que só o fim contempla". Aceita-se a tristeza porque faz parte dessa história, mas se deseja a alegria. Há esperança na vibrante "Quando menos se  espera": "Oh, liberdade, presa às grades da paixão/sem ti não faz sentido/ser um folião". São tantas as músicas! Algumas nossas conhecidas, como "Enquanto a tristeza não vem", que parece preparar o final, com seu belo refrão: "nasce uma rosa na favela". Tão nossas conhecidas, parece o início da esperança, mas o autor e os diretores estão preocupados em contar a história dessa luta infinda, que nos faz submergir, vergados ao peso do arbítrio dos poderosos! No final é quase impossível recobrar o fôlego para aplaudir, após o impacto da última cena. Fica a pergunta: por que as histórias da favela não podem ter um final triunfante?
     Mas sempre aparece um vingador, ao se dobrar a esquina. No desenrolar dos acontecimentos, vários deles foram citados, e o principal é o Dr. Sobral Pinto, tal como lembra o autor em seu texto, o advogado que deu aos favelados o caminho para o "interdito proibitório" que, como o nome jurídico tão pomposamente o declara, proíbe a remoção! Eles conseguem fazer o público dar boas risadas com os meandros da Lei, mas o resultado dos cuidados do advogado amigo é compensatório. Pra resumir, até o Papa dá seu veredicto em prol dos direitos dos povos (tal acerto não aparece na peça), e a felicidade acontece, modificando a região, para sempre. Mas, no final de "Bandeira de Retalhos", infelizmente, a testosterona vence. Explico. Esse é um hormônio que, se não é bem dosado, consegue desencadear o fundo escuro das pessoas: digo, o dos homens. Quando o espetáculo vai pro fundo do poço fica difícil, depois, aplaudi-lo com entusiasmo. E ficamos procurando, nessa historia, qual é a representação da alma humana? Contraditoriamente, o grande personagem parece ser o belo traficante Bituca (Renan Monteiro), que tudo entrega a seu rival Neno (Marcelo Mello), o marido da não menos bela Tiana (Kizi Vaz), a quem Bituca ama. Como sempre, quem deflagra a tragédia é a mulher.
     "Nós do público", embarcamos na poesia e na esperança, para no fim sermos levados de roldão a uma realidade que nos atordoa. Por ser construída pelos próprios moradores da favela, ela nos leva ao fundo do poço! Já não temos tempo de nos refazer, como público, e não conseguimos seguir o ritmo que nos promete a canção: "Quem vai pro fundo/Tem que agitar o braço/Tem que apertar o passo/Tem que remar contra a maré". Assim, não temos tempo de recobrar o fôlego para a apoteose final, e os aplausos são tristes: estamos pensando na última cena que acabamos de assistir. O público não consegue mudar do pranto ao riso, e fico o travo amargo, no final.
      Pensando bem, talvez a tragédia lhe caia bem. Por que não? Excelentes atores, eles extraem da vivência a sua própria arte. Neste domínio estão inseridos Cida Costa (uma atriz forte), no papel de Angélica, a esposa temerosa (figura típica do Nordeste), e seu marido dominador, Isidoro (Flavio Mariano), algoz da mulher e da filha Ângela (a ótima Jackie Brown). Muitas "figuras exemplares" surgem, nesse universo que povoa a peça de Sérgio Ricardo. Talentos como Marilia Coelho, uma excelente comediante - a Julia - em suas interferências hilariantes; Kizi Vaz, a bela e talentosa atriz; Francisca Damião, a Costureira; Maga Cavalcanti, a grávida; ou Duque (Alexandre Cipriano); Délio dos Santos (Alexis Abraham) e tantos outros. Sargento (Edson Oliveira) cumprindo com acerto o seu difícil papel de pau mandado. Luiz Henrique Delfino (Pernambuco). Tantos! Mais uma vez Tuim (João Gurgel), reivindicando, na ação e nas músicas. Aliás, os músicos dão seu recado e são atores. É impossível cita-los a todos, e ao elenco (entre atores e músicos, são 21 nomes), mas sem eles o espetáculo não teria essa preciosa coesão. Perdem-me os não citados.
     Não deixem de assistir a essa joia preciosa, tipo exportação. Ah" Antes que me esqueça, a cenografia é uma detalhada reprodução da favela nos anos 70. Diz\em que a fonte de água que abastece o elenco é referência, até hoje, naquele local. E a bandeira de retalhos, que volta e meia aparece, vai relacionando os acontecimentos marcantes da favela. Ela é costurada, em cenas rápidas, pelas atrizes da peça.        
    
FICHA TÉCNICA
Autor e Direção Musical: Sérgio Ricardo
Diretores: Guti Fraga e Fátima Rodrigues
Direção de Movimento: Johane Hildefonso
Direção de Arte: Rui Cortez
Iluminação: Márcia Francisco
Figurinos: Pedro Sayad e Tita Nunes
Supervisão Dramaturgica: Luiz Paulo Correa e Castro
Direção Vocal e Assistência de Direção: Tiago Barbosa
Preparação Vocal: Leila Mendes, Isabel Schumann e Roberta Bahia
Preparação Rítmica: Wellington Soares