Elenco de "Eu é um Outro" - Lorena da Silva, Alcemar Vieira, Ana Abbott, André Marinho e João Velho (foto divulgação) |
CRITICA DE TEATRO
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Estreou no Teatro Poeirinha,
"Eu é um Outro", sobre o poeta Arthur Rimbaud. Emocionante saber que o
belo espetáculo é uma homenagem ao nosso querido Sergio Britto. É bom lembrar
que Isabel Cavalcanti, a diretora de Rimbaud, dirigiu Britto em duas peças breves
de Beckett, com as quais o ator ganhou o Prêmio Shell de melhor ator de 2009. Bela
homenagem.
"Eu é um Outro" trata da vida,
poesia e morte de Rimbaud, escrita por Pedro Brício, por encomenda do ator
André Marinho, da produtora Christine Braga e da própria diretora, Isabel
Cavalcanti. O texto é um bem imaginado percorrer da vida do poeta, abordando
inclusive os acontecimentos que o transformaram em mito, e a repercussão desse
mito nos anos 70, no Brasil, e em 2005, em Paris. Trata-se de
uma oportunidade para mostrar como a rápida passagem do poeta pela vida foi marcante
e transformadora, em termos de arte. Rimbaud nos deixou aos 37 anos e sua
motivação, seu caminho, depois dos 20 anos até sua morte, são enigmas. Pois
bem, é sobre esse mito e esse enigma que o autor Pedro Brício e a diretora Isabel
Cavalcanti tecem uma das mais lindas histórias sobre poesia, envolvimento e
emoção.
O que se fazer com estes dois gênios, Arthur
Rimbaud e Paul Verlaine? Um escreve Poèmes Saturnians com 22 anos, o outro Le
Bateau Ivre, aos 17... o encontro dos dois só poderia ser explosivo. Pedro
Brício e Isabel Cavalcanti exploram exemplarmente esse brilho. E a cenografia
de Fernando Mello da Costa forma o trio capaz de tornar texto, atuação e mobilidade
temporal surpreendentes. Estamos em diversos lugares, e os atores se
transformam, conforme a necessidade da narrativa. E não é efeito especial ou
manobras de cenografia: é teatro puro. De repente, estamos na casa da mãe de
Rimbaud, em Charleville, no quarto onde o poeta dorme e divaga; no hotel em que
os dois poetas se separam; ou no século XX, vendo a tradutora de Rimbaud
(Lorena da Silva, em desempenho inspirado), em sua mesa de trabalho; ou na
Paris de 2005... e a revolta dos povos do Oriente, o "pied noir" e
sua dignidade de militante (André Marinho)... Diversas épocas e, ao mesmo
tempo, a intensidade do poeta, a maneira de, tecnicamente, trazer velocidade e transformação
para a cena, através da apresentação dos
personagens. A "a esposa de Verlaine", por exemplo, Matilde (Ana
Abbott), estoura a barriga de balão e se transforma em uma mulher do século
XXI, declarando que não está de acordo com a papel da mulher, "em nenhum
século"! Será a voz do Brício que se manifesta? Ou a de Isabel? Jamais
saberemos. Conforme palavras do autor, a peça foi se desenhando nos ensaios.
Mas o essencial é a luta de Arthur Rimbaud
(João Velho), pela liberdade. A sua tentativa emocionada de ser livre, e de
libertar Paul Verlaine. Em vão, o rompimento se estabelece. Verlaine é também a
representação da poesia, mas sem o arrebatamento de Rimbaud. Poetas simbolistas,
suas poesias são eles mesmos e suas metáforas, e o instante: embora Rimbaud
pense viver duas vidas. E tente vivê-las. Ouçam Verlaine, o poeta da
musicalidade: "Les sanglots longs/Des violons/De l'automne/Blessen mon coeur/D'une
langueur/Monotone" Esse poema virou símbolo, é o mais popular de Verlaine.
Ou Nuit de Walpurgis Classique: "C'est plutôt le sabbat du second Faust
que l'autre,/Un rythmique sabbat, rythmique".../
Pedro Brício nos relata o que Rimbaud pensa
de seu companheiro: ele não escreve poesia, Baudelaire, sim. Estamos falando do
jovem Arthur... e o ponto alto do espetáculo se aproxima - não o percam, por
favor! - é quando Rimbaud (João Velho),
declama, em português, trechos de Le Bateau Ivre. A plateia devia ouvi-lo de
joelhos (aux genoux). E, enquanto o poeta fala, é projetado ao fundo da cena o poema em francês,
escrito na caligrafia de Rimbaud - e o mar ao fundo, e o poeta/ator oscilando,
em sua embriagues... Imperdível! (Arte
de Massimo Esposito). "Ah! Se as crianças vissem o dourar das ondas/Áureos
peixes do mar azul, peixes cantantes.../- Espumas em flor ninaram minhas
rondas/E as brisas da ilusão me alaram por instantes"//. O jovem Rimbaud
dizia em carta a seu professor e mentor, Izambar (nome oriental...), que
alcançava a transcendência poética através de um "longo, imenso e sensato
desregramento de todos os sentidos."
O ator Alcemar Vieira abre o espetáculo,
fazendo um resumo dessa vida desregrada, e criticando como as biografias são
escritas, tão friamente. Na verdade, é impactante ver como elas são
interpretadas, ao vivo, em cima de um palco. Alcemar interpreta Paul Verlaine
e, enquanto "apresentador, que abre portas para o público", nos faz descortinar o mundo vibrante que
vamos testemunhar. O elenco acompanha a emoção, e defende, no momento em que
vive, seja no século XIX, na França, ou anos 70, no Brasil, ou ainda na França,
em 2005, a revolta e a emoção dos dias que testemunha. E há sempre no ar a
presença do poeta: Lorena da Silva, forte como a brasileira que não se conforma
com a censura a Rimbaud, feita no Brasil de seu tempo (o autor declara ser um
fato verídico, essa censura). O argelino (interpretado por André Marinho), não
se conforma com o preconceito em sua época, e quer transformar o mundo - um
Rimbaud moderno? A amorosa Isabelle, irmã de Rimbaud (Ana Abbott), se transforma
em tantas outras mulheres, igualmente amorosas, igualmente revoltadas: a esposa
do poeta, a irmã do poeta.... mulheres.
Enfim, esse jogo do tempo, o retorno no
tempo, ele nos mostra o caminho amargo (e sutil?), dos que conseguem
transcender. E a indagação sempre presente: quem foi, na verdade, Arthur Rimbaud?
Para uns, um jovem ambicioso à procura do enriquecimento. Para outros, um ser
ferido, um romântico tardio que foi em busca de seu oriente fantástico. Um Lord
Byron francês?
Enfim, o espetáculo tem na sua equipe
técnica Tomás Ribas na iluminação, dando vida ao cenário de Fernando Mello da
Costa e aos figurinos de Rui Cortez. Como a luz estabelece os ambientes, não
percebemos quando os personagens mudam seus figurinos, tão absorvidos estamos pelo
que se passa na encenação. Aliás, mudam-se os acessórios e entram em cena novos
personagens, somente João Velho personaliza o Eu de Arthur Rimbaud. E talvez
seja essa a peça a que coloca com maior perfeição o relacionamento entre esses
dois grandes poetas.
A ação é secundada pela direção musical de
Tato Taborda e a movimentação cênica de Cristina Moura. A participação destes
dois artistas da à composição cênica a vibração necessária. Também as projeções
de Paola Barreto e Lucas Canavarro dão vida ao contexto histórico/poético que
embala a narrativa. Até o programa da peça é realizado com acabamento poético, com
o design de Sonia Barreto. Um cenotécnico perfeito complementa o acerto do
espetáculo: ele é Mario Pereira. Podemos dizer que "Eu é um Outro" é
um vôo ao tempo seminal da poesia simbolista em seu caminho para a modernidade.
Entretanto, Arthur Rimbaud foge aos rótulos, com "seus solados de
vento", e o elenco fica impregnado dessa imagem. Eles ensaiam, em cena, e
no final há um corte, e os atores debatem o que acaba de acontecer. Há confusão,
eles parecem perdidos, não sabem qual
personagem representar, como preencher os vazios. Somente o ator que interpreta
Rimbaud não se desliga de seu personagem, tentando decifrar-lhe o enigma e,
espírito tomado pelo poeta, atira para a plateia um verso da despedida de
Rimbaud, que pode ser uma abertura para desvendar o seu mistério...
Aconselha-se uma ida ao teatro, pois o espetáculo é imperdível.
Ida, que mente privilegiada a sua, que cultura, que sensibilidade. Eu me ajoelho a seus pés e a reverencio. Beijos.
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