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segunda-feira, 23 de julho de 2012

"SILÊNCIO - INFERNO"

"A Travessia do rio Estige", de Delacroix. A convulsão dos corpos lembra o movimento dos atores de "Silêncio - inferno", direção de  João Marcelo Pallottino

IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Eis que fui assistir a uma adaptação livre do "Inferno", da "A Divina Comédia", de Dante Alighieri, no Espaço SESC de Copacabana, julho de 2012. Trata-se do espetáculo "Silêncio - inferno", uma interpretação do texto de Dante, com direção de João Marcelo Pallottino. A proposta do diretor é completar a Trilogia com "Purgatório" e "Paraíso", que possivelmente estrearão em 2013. Este "Solidão - inferno" nutre-se do olhar multifacetado do diretor, que traz embutido em si o artista plástico e o músico (sabemos que essas qualidades unem-se, quase sempre, em se tratando de teatro, ao trabalho coletivo dos atores). Desde os primeiros momentos da encenação, o visual do espetáculo e os gestos dos atores são os responsáveis pela sensação de estranhamento que é transmitida ao público. A trilha sonora, uma seleção do diretor, mistura baladas medievais e sinfonias românticas, acentuando esse estranhamento. Pallotinno é oriundo da Companhia dos Atores da Laura, e montou, junto com a atriz Symone Strobel, a Hospedaria Companhia de Teatro, que produz "Silêncio- inferno". Como sabemos, na "Primeira Parte" dos "Cantos", Dante, o poeta florentino, é guiado por Virgílio, outro poeta latino, que lhe dá a conhecer os horrores das almas malditas. 
     O "Inferno" de Dante é uma obra conhecida, montada, adaptada e apresentada das mais diversas maneiras, mas o que surpreende, neste espetáculo, é a força de sua  linguagem. A princípio, pensamos tratar-se de uma "instalação", tal o impacto das artes plásticas na composição das cenas. Nesta encenação contemporânea, o simbolismo predomina. Essa afirmação, que pode parecer contraditória, traz, na  iluminação de Ricardo Grings a sua resposta, estabelecendo o clima e a densidade dos personagens. Mas a responsabilidade de sustentar a ação simbólica é do diretor. Sem falas, é através dos gestos que Pallottino dá a conhecer o que se esconde por detrás das almas em sofrimento. Há uma repetição, incontrolável, dos movimentos, atestando o castigo dos condenados. O silêncio da encenação só é rompido, eventualmente, pela respiração ofegante e os gritos de alguns personagens.
     O ritmo que o diretor dá à movimentação dos atores impregna a cena de suspense e expectativa, e estes sentimentos se refletem na plateia. Porém não conseguimos saber se o silêncio, que a tudo domina, acontece em homenagem ao grande mestre florentino, ou se o público adere a ele por enfrentar, na própria vida, o mistério da morte. Das profundezas do Inferno ela domina, soberana, e esse é o principal questionamento da peça.
     A espera angustiante e claustrofóbica dos personagens terá uma representação semelhante no espaço da cenografia de Leo Bungarten, onde as paredes se movimentam e o pesadelo se impõe. Na representação das almas condenadas, a montagem se revela em seu ritmo delirante. É esse ritmo que o diretor Pallottino imprime à cena, unindo-se ao trabalho de impacto do cenógrafo, que cria as suas especificidades, espelhamentos, reflexos e espaços exíguos. Também o visagismo e os figurinos de Paulo Barbosa contribuem para as situações que vão dar ênfase às cenas "dantescas" do diretor, nas quais as simulações de suicídio se repetem, e onde a tortura praticada contra o próprio corpo também representa a tortura imposta ao outro.    
     Há gestos que marcam o interminável tempo no Inferno. Uma das cenas mais impressionantes é a da eletricidade na água, onde a representação da tortura é feita com absoluto domínio da "estética", devido à beleza da atriz. Ou seja, é espantosa a beleza do "ensemble" do espetáculo, tornando-o passível de ser  assistido de diversas maneiras, porque ficamos presos às suas diversas imagens. A iluminação dá à ação tons de irrealidade e sonho, provocando reações estéticas de quem está assistindo a cenas miseráveis de castigo e abominação.
     Entretanto, o espetáculo emociona pelo inusitado. O único senão, talvez, ficará com a cena da parede de papel (alguma representação simbólica?), e o seu conseqüente esfacelamento. Trata-se de algo previsível e mal resolvido, quebrando a beleza estética do espetáculo. "Silêncio- inferno" atinge a sua finalidade ao relatar a história do massacre físico e mental que é ditado pelas crenças espirituais que o ser humano alimenta. Do ponto de vista da encenação, podemos dizer, para finalizar, que o acerto do espetáculo é motivado também pelo trabalho de Edson Fiuza, operador do som, e do cenotécnico, Moisés Cupertino. Quanto ao mais, é interessante observar que o diretor andou de mãos dadas com o autor, ao se esquecer da libido, tal como acontecia nos tempos de Dante.
     Há, no espetáculo, uma enorme sexualidade reprimida, manifestada nos gestos desesperançados dos mortos-vivos que abdicam de qualquer sentimento, a não ser o de horror. Estamos recordando que a passagem da luxúria, em Dante, não foi destacada nos "Cantos" apresentados, e que dá aos atores de Pallottino (a alguns deles), semelhanças físicas com os  atores de Bob Wilson que, desesperançados, vivem o seu próprio Inferno. O que percebemos, ainda, no espetáculo do brasileiro, é um cenário no qual as três portas simbólicas se transformam e se locomovem, dando-nos a impressão de vislumbrar as cavernas de Dante, dentro das quais os atores evoluem, em vários níveis de "Inferno". Temos a impressão de ver, em certos movimentos dos corpos aflitos, as convulsões dos quadros de Delacroix (daí a sua reprodução, no início da crítica). Elenco de excelentes atores: Ana Amélia Vieira, Flavio Pardal, Leandro Fernandes, Ricardo Gringo e Symone Strobel. Esperamos que este "Silêncio - Inferno" volte brevemente aos palcos do Rio de Janeiro. Seu "estranhamento" enriquece a cena carioca. 

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