"A Travessia do rio Estige", de Delacroix. A convulsão dos corpos lembra o movimento dos atores de "Silêncio - inferno", direção de João Marcelo Pallottino |
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de
Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Eis que fui assistir a uma adaptação
livre do "Inferno", da "A Divina
Comédia", de Dante Alighieri, no Espaço SESC de Copacabana, julho de 2012. Trata-se
do espetáculo "Silêncio - inferno", uma interpretação do texto de Dante, com
direção de João Marcelo Pallottino. A proposta do diretor é completar a Trilogia
com "Purgatório" e "Paraíso", que possivelmente estrearão em 2013. Este "Solidão - inferno" nutre-se do olhar multifacetado
do diretor, que traz embutido em si o artista plástico e o músico (sabemos que
essas qualidades unem-se, quase sempre, em se tratando de teatro, ao trabalho
coletivo dos atores). Desde os primeiros momentos da encenação, o visual do espetáculo e os gestos dos atores são os responsáveis
pela sensação de estranhamento que é transmitida ao público. A trilha sonora, uma seleção do diretor, mistura baladas
medievais e sinfonias românticas, acentuando esse estranhamento. Pallotinno é oriundo da Companhia dos Atores
da Laura, e montou, junto com a atriz Symone Strobel, a Hospedaria Companhia de
Teatro, que produz "Silêncio- inferno". Como sabemos, na "Primeira Parte" dos "Cantos", Dante, o
poeta florentino, é guiado por Virgílio, outro poeta latino, que lhe dá a conhecer os
horrores das almas malditas.
O "Inferno" de Dante é uma obra conhecida,
montada, adaptada e apresentada das mais diversas maneiras, mas o que surpreende,
neste espetáculo, é a força de sua linguagem.
A princípio, pensamos tratar-se de uma "instalação", tal o impacto das
artes plásticas na composição das cenas. Nesta encenação contemporânea, o simbolismo
predomina. Essa afirmação, que pode parecer contraditória, traz, na iluminação de Ricardo Grings a sua resposta, estabelecendo o clima e a densidade dos personagens. Mas a responsabilidade de sustentar a
ação simbólica é do diretor. Sem falas, é através dos gestos que Pallottino dá a conhecer o que se
esconde por detrás das almas em sofrimento. Há uma repetição, incontrolável, dos movimentos, atestando o castigo dos condenados. O silêncio da
encenação só é rompido, eventualmente, pela respiração ofegante e os gritos de
alguns personagens.
O ritmo que o diretor dá à movimentação
dos atores impregna a cena de suspense e expectativa, e estes sentimentos se refletem
na plateia. Porém não conseguimos saber se o silêncio, que a tudo domina, acontece
em homenagem ao grande mestre florentino, ou se o público adere a ele por enfrentar,
na própria vida, o mistério da morte. Das profundezas do Inferno ela domina, soberana, e esse é o principal questionamento da peça.
A espera angustiante e claustrofóbica dos personagens terá uma representação semelhante no espaço da cenografia de Leo Bungarten, onde as
paredes se movimentam e o pesadelo se impõe. Na representação das almas
condenadas, a montagem se revela em seu ritmo delirante. É esse
ritmo que o diretor Pallottino imprime à cena, unindo-se ao trabalho de impacto
do cenógrafo, que cria as suas especificidades, espelhamentos, reflexos e
espaços exíguos. Também o visagismo e os figurinos de Paulo Barbosa contribuem
para as situações que vão dar ênfase às cenas "dantescas" do diretor, nas quais
as simulações de suicídio se repetem, e onde a tortura praticada contra o próprio
corpo também representa a tortura imposta ao outro.
Há gestos que marcam o interminável
tempo no Inferno. Uma das cenas mais impressionantes é a da eletricidade na
água, onde a representação da tortura é feita com absoluto domínio da "estética",
devido à beleza da atriz. Ou seja, é espantosa a beleza do "ensemble"
do espetáculo, tornando-o passível de ser assistido de diversas maneiras, porque
ficamos presos às suas diversas imagens. A iluminação dá à ação tons de
irrealidade e sonho, provocando reações estéticas de quem está assistindo a
cenas miseráveis de castigo e abominação.
Entretanto, o espetáculo emociona pelo inusitado. O único senão, talvez, ficará com a cena da parede de
papel (alguma representação simbólica?), e o seu conseqüente esfacelamento.
Trata-se de algo previsível e mal resolvido, quebrando a beleza estética do
espetáculo. "Silêncio- inferno" atinge a sua finalidade ao relatar a
história do massacre físico e mental que é ditado pelas crenças espirituais que
o ser humano alimenta. Do ponto de vista da encenação, podemos dizer, para
finalizar, que o acerto do espetáculo é motivado também pelo trabalho de Edson
Fiuza, operador do som, e do cenotécnico, Moisés Cupertino. Quanto ao mais, é
interessante observar que o diretor andou de mãos dadas com o autor, ao se
esquecer da libido, tal como acontecia nos tempos de Dante.
Há, no espetáculo, uma enorme sexualidade
reprimida, manifestada nos gestos desesperançados dos mortos-vivos que abdicam
de qualquer sentimento, a não ser o de horror. Estamos recordando que
a passagem da luxúria, em Dante, não foi destacada nos "Cantos" apresentados, e que
dá aos atores de Pallottino (a alguns deles), semelhanças físicas com os atores de Bob Wilson que, desesperançados, vivem o seu próprio Inferno. O que percebemos, ainda, no espetáculo do
brasileiro, é um cenário no qual as três portas simbólicas se transformam e se locomovem,
dando-nos a impressão de vislumbrar as cavernas de Dante, dentro das quais os
atores evoluem, em vários níveis de "Inferno". Temos a impressão de
ver, em certos movimentos dos corpos aflitos, as convulsões dos quadros de Delacroix
(daí a sua reprodução, no início da crítica). Elenco de excelentes atores: Ana
Amélia Vieira, Flavio Pardal, Leandro Fernandes, Ricardo Gringo e Symone
Strobel. Esperamos que este "Silêncio - Inferno" volte brevemente aos
palcos do Rio de Janeiro. Seu "estranhamento" enriquece a cena carioca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário