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terça-feira, 22 de maio de 2018

"rINOCERONTEs"

"rINOCERONTEs", espetáculo do Coletivo Errante. Direção:  Luiza Rangel. Orientação:  Leonora Fabião.
(Foto Maria Barillo)

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)

     Antonio Abujamra costumava dizer que Ionesco é um autor que tem como objetivo o riso levado a sério. Quanto a mim, não sei se ele tem qualquer objetivo (parece-me que, se o tem, é alertar para o ridículo da sociedade humana), mas não se pode negar que ele é um criador empolgante. Agora, por exemplo, temos esse rINOCERONTEs, encenado por um grupo chamado Coletivo Errante, que nos joga na cara o impacto desse romeno maluco.  E COMO É BOM ASSISTÍ-LO! O Coletivo tem a percepção de jogar um hino brasileiro absolutamente surreal, o parnasiano de palavras em desuso... como o nosso Brasil!: “Deitado eternamente em berço esplendido”. De quem é a letra, mesmo? Duque Estrada! Esse hino é o nosso, o Nacional! Precisamos acordar deste sonho em decomposição, deste pesadelo!
     Mas não é só o nosso Hino que nos faz entrar em nonsense!  O que significam, por exemplo, aqueles animais, os rinocerontezinhos verdes, de unicórnio (ou serão cornos duplos?) que se estabelecem, de repente, entre os humanos? Muitos gostariam de ser um deles, e segui-los, emitindo os mesmos sons e requebrando em seu paquidérmico andar.
     E essa brincadeira gostosa deve ser seguida pelo público que, de repente, cai em si: “Mas como? Está todo mundo abandonando o barco? Indo para o meio da floresta? Andando na  mesma manada?”
     Muito a propósito a lembrança de montar Ionesco. Aliás, o grupo também é muito bom. Se o romeno percebeu o absurdo que nos cerca, os atores do Coletivo Errante fazem tudo muito melhor do que os franceses já fizeram, porque eles vão se jogando, se desmantelando, junto com o cenário, no que deve ser, mesmo, o fim de tudo. Somente um homem consegue não aderir a loucura geral, e permanece consciente, apostando para ver o que vai acontecer, pois, afinal, ele é um homem e não um animal!
     Não tenho intimidade com rinocerontes. Somente os vejo, com seu olhar ausente, em zoológicos, e me parece um animal bem desprotegido, apesar de sua carcaça pré-histórica! Eles me causam pena. Mas isso tudo não tem importância, perto do que está acontecendo, realmente, pois, ao que parece eles soltos são muito perigosos.... Sim, precisamos de uma reação determinada para não ficarmos tentados a seguir a manada destruidora de sonhos.
     Mas já que estamos examinando uma peça de teatro onde os acontecimentos nos enchem de estupefação, podemos observar que o trabalho destes talentosos atores, dirigidos por um dos membros do Coletivo (pelo que entendi, eles conseguiram romper as regras da hierarquia teatral, e fazer um rodízio de funções, em um jogo que há muito tempo deveria estar em ação). No caso, Luiza Rangel está na direção, e se desincumbe muito bem de suas funções.   
     Trata-se de um grupo premiado que se coloca à disposição do público, para tomarmos conhecimento de sue existência. O que podemos dizer é que estamos surpresos com o desempenho deste Coletivo. Os atores, os recursos cênicos, sonoros, coreográficos, são da maior competência. Espero não perdê-los de vista. Certamente estes oito atores que compõe o Coletivo Errante (o nome já é uma definição de seu trabalho), vão nos manter sempre atentos para as suas iniciativas. Parabéns a Eleonora Fabião por orientar essa turma! E a cenógrafa é de uma imaginação excitante. Seu nome? Fabiana Mimura. Mas, com certeza, o grupo deve ter cooperado para as boas soluções que o espetáculo consegue com tão pouco. Renato Machado está na orientação deste pessoal. Parabéns para vocês todos. Aconselho ao público que não perca rINOCERONTEs. Ele vai somente até o dia 3 de junho, no Teatro Dulcina. 

quinta-feira, 17 de maio de 2018

"A MARCA DA ÁGUA"



IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Cena de A Marca da Água, direção Paulo de Moraes

       A noite, os arredores, a concepção do teatro, o público que o frequenta, dão-nos uma segurança e um envolvimento de Primeiro Mundo. Trata-se do Teatro Nelson Rodrigues, da CEF, e a noite é dedicada ao espetáculo 'A Marca da Água', concepção de Paulo de Moraes e Mauricio Arruda Mendonça, do Armazém Companhia de Teatro. A direção do espetáculo é de Paulo de Moraes.

     Em Primeiro Lugar, o teatro. A impressão que nos domina, ao nos aproximarmos do Teatro Nelson Rodrigues, na  Avenida Chile, é a perfeição do que nos cerca, e aí vem a vontade de fazer um pedido: nunca, mas nunca mesmo! pensem em nos negar este teatro... e também o "Teatro da Caixa", logo ali ao lado, na Av. Almirante Barroso. Ambos são espaços da CEF, que muito honram a cidade do Rio de Janeiro.
     
         A Armazém Cia. de Teatro festejou, em 2012, os seus 25 anos de existência com 'A Marca da Água'. Em 2018 tivemos uma reestreia da peça. Para quem ainda não viu, aconselha-se. O diretor comenta:

        "Na nossa sala com paredes de tijolos aparentes, no coração da Lapa carioca (sua sede é na Fundição Progresso), alguma sensação primitiva nos impulsionava no sentido de reafirmar certas questões (...) buscando novos códigos, novas formas de se relacionar com o processo criativo, com o  espaço cênico e com a narrativa. (Paulo de Moraes).   

          A proposta foi atingida, em sua plenitude. A maneira desta Cia, "de se relacionar com o processo criativo" abre portas para novas percepções, misturando estilos e jogando com emoções contraditorias. Laura, a protagonista, interpretada por Patricia Selonk, nos traz um personagem rico em nuances, apresentando-nos momentos de puro surrealismo ligados a uma consciência forte de quem entende o que está acontecendo. E muitas coisas acontecem com a protagonista! 

          Os autores aproveitam o texto e trazem um problema jamais enfrentado em teatro, e o enfrentam, com leveza e humor. Sei, vocês vão dizer que existem muitas peças que tratam de problemas neurológicos! Mas nunca dessa maneira tão clara (um dos atores - Ricardo Martins - interpreta o neurologista), expondo com  clareza o problema. São nuances que podem afetar o cérebro que sofreu uma lesão cerebral. Estas nuances afetam Laura, e ela as transmite aos que a cercam. São detalhes de um cérebro ferido por um impacto que transformou a sua vida aos 10 anos de idade. E o texto vai nos narrando os detalhes do problema, com o auxilio da pesquisa realizada pelos autores com a obra do neurologista britânico Oliver Sacks. O cérebro, a água no cérebro, a 'marca da água', que pode fazer o cérebro explodir... E a opção de Laura adulta, aos 40 anos, de  aceitar o inevitável . 

               E tudo começa com a narrativa surrealista de um peixe gigante que atravessa a vida do casal Jonas e Laura, e que desencadeia o processo que a atormentou a vida toda, e que retorna: a pressão cerebral, os sons que essa pressão desencadeia, e a maneira pela qual essa lesão vai tomando conta de sua vida. Laura aposta na possibilidade da morte, em sua obsessão ao se negar aos médicos e ao tratamento, preferindo captar a música imaginaria que sobrevém de seu distúrbio cerebral. E aí entramos em uma possível recuperação do que seria o seu repertorio musical, através de um concerto interpretado pelo elenco através de diversos acordeões, acompanhados pela guitarra de Ricco Viana, o diretor musical, criador da trilha sonora (original) da peça. 

                 O que torna irresistível a presença no palco - além do relatado acima - é o brilhantismo do elenco: cada ator é dono de sua interpretação, com sutileza. Este fato só se torna possível em companhias que tenham um repertorio variado e uma presença cênica constante, dos atores. Entre eles a mãe, Eugênia, interpretada por Lisa Eiras, e as personagens masculinas: Marcos Martins, o marido Jonas; Ricardo Martins o médico e o pai; Marcelo Guerra, o irmão Domênico. O cenário, impressionante, reproduz uma piscina gigante com seu jogo de luz (cenário de Paulo de Moraes e luz de Maneco Quinderé). Os muito citados figurinos de Rita Murtinho, que fazem, com o material adotado - neoprene e tactel - absorver o impacto da água (pois os atores convivem com o mundo líquido onde aparecem peixes e escafandros, além de uma piscina!) As projeções também causam impacto. Enfim, sempre que Paulo de Moraes está em cartaz, aconselha-se uma ida ao teatro. Quem sai ganhando é o espectador!                
          
                 
       

domingo, 6 de maio de 2018

"INCÔMODOS"



IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

                               Elenco de "Incômodos", direção Kel Gogliatti. Atrizes: Ângela Valerio, Andessa Guerra Bia Quadros, Gabriela Inoujain, Helena Bielinski, Luisa Olinto, e outras. (Foto Produção):


INCÔMODOS

     Antes de tudo, trata-se de uma Celebração. Um ritual de acolhimento saudado por "Salve Regina", entoado por vozes ocultas para a plateia que, ao entrar, está de olhos escondidos por detrás de vendas negras... Estaremos quebrando algum misterio do espetáculo? Alguma surpresa? 

     O fato é que INCÔMODOS (pois é dele que se trata) acolhe um bom público de adolescentes - garotas e garotos  - e homens e mulheres! - interessados nesta nova tentativa de compreensão do feminino. A "celebração" inicia-se com a entrega do sangue e da carne (femininos), em verdadeira transposição dos rituais masculinos. E onde está a mulher? "Tomai e bebei" ... dizem as novas bacantes - este vinho é o meu sangue. Esta hóstia é a minha carne". trata-se da "desconstrução" do proibido. Mulher só tem sangue quando menstrua: e à mulher não é permitido o gozo da carne... da sexualidade! E Vêm estas atrizes, estas meninas! - dizer o que devemos (elas devem) fazer?! 

     São 18 jovens em cena - 18 mulheres no esplendor de sua beleza e juventude! E se pensamos que a historia da mulher já está muito bem contada, nos enganamos. Ouvimos, na saída do espetáculo,  rapazes comentando, como se tivessem percebido as obrigações sociais da mulher naquele momento, e uma dessas obrigações é ser bonita... (Quando pensamos que todos sabem tudo, eis a surpresa...). Também no espetáculo é contestada a tão famosa vocação materna da mulher. Uma invenção da nossa sociedade! Há muitas mulheres que não têm essa vocação... elas são consideradas desnumanas! 

     Mas voltemos à celebração... sem medo de romper com o misterio! Conhecemos, nos primeiros passos das bacantes (se as pudermos assim chamar) - jovens vestidas com véus cor de carne, que deixam expostas as suas caracteristicas femininas. As mulheres apresentadas como heroínas, em outros séculos, enfrentaram o mundo cultural (dos homens) e se destacaram. A Curadoria de Kel Cogliatti - e suas companheiras - fazem citações sem visão política: somente constatações da atuação destas mulheres. O espetáculo não é uma manifestação política mas, insistimos, uma "Celebração" ao feminino. Estaremos erradas? 

     ... E assim Rosa Luxemburgo é citada, como também Nísia Floresta, e tantas outras que cultivaram idéias, colocando-se acima da submissão estabelecida. Não há perdão para a inação de  nossas contemporâneas. As mulheres citadas atuaram, apesar da repressão contra elas, em todos os tempos!

     Ficou a cargo de Kel Cogliatti a direção do espetáculo. A "Casa Rio" foi pensada para dar acolhida a estudantes vindos de fora do país. Ela também funciona como espaço cultural. Já funcionou, em passado recente, como Museu do Teatro do Rio, mas sua administração não surtiu efeito. Hoje o espaço está sendo aproveitado com espetáculos experimentais como este a que nos referimos, no qual entram performances, música, e interpretação. "Incômodos", que nos deu a conhecer o local, apresentou  dele um bom aproveitamento. E aqui respiramos um pouco, nos divertindo com a reação do público. O chamado para o espetáculo já é aterrorizante, mas, felizmente, o prometido não acontece. Os destaques arrepiantes são muitos!  Será uma jogada profissional? O fato é que a Casa Rio fica lotada todo fim de semana! (Este é o último) E quais são estes chamados? Na "planta baixa" de uma casa, desenhada no programa, acontecem coisas estranhas... "entre quatro paredes"... como sói acontecer com as nossas companheiras de sexo... daí a impressão de o espetáculo ser uma sucessão de depoimentos. Não é. Mas, na cozinha desenhada no programa destaca-se que  "476 mil estupros já foram realizados no Brasil"...  (número é espantoso, já que não há referência das datas!) No "Escritorio" do desenho ficamos sabendo que "a cada 11 minutos uma mulher é estuprada"!   ... e acabamos nos informando também (que coisa pavorosa!), que "uma mulher foi morta com um espeto de churrasco!" Pode ser até engraçada, tanta desgraça, mas também dá pra arrepiar os cabelos e fazer como Paula Lavigne: se revoltar por ter nascido mulher!

     A reação do público ao espetáculo é respeitosa. Parece até mais tranquila e conhecedora dos rumos do que é ser mulher (no Brasil e no Mundo)!!! A temporada na Casa Rio terminou, mas prestem atenção! pois a aventura do feminino deve continuar em outros locais. VAMOS TORCER PARA QUE TAL ACONTEÇA!