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segunda-feira, 29 de abril de 2013

"O NÓ NO CORAÇÃO"

"Nó no Coração" - Guida Vianna (Barbara), Monique Franco (Nina) e Camila Nhary (Ângela)
                                                             (foto divulgação)



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da  Associação Internacional  de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

OU:  "DO  AMOR   INCONDICIONAL" 

Estreou, no Teatro Ewa Herz, a peça "Nó no Coração", do dramaturgo inglês David Eldridge, com direção de Guilherme Leme. É a segunda produção dessa casa de espetáculos carioca cujo nascedouro é São Paulo e a Livraria Cultura. O Ewa Herz foi inaugurado, no Rio, com "A Alma Imoral",  monólogo do rabino Nilton Bonder, interpretado por  Clarice Niskier. Localizado no coração da Cinelândia, o Herz é uma grata surpresa, com suas poltronas vermelhas em aclive, possuindo ótimo recurso visual onde quer que o público se instale. Neste novo teatro estamos livres do "jogo de cabeças" que se instala em quase todos os teatros brasileiros, mortificando o espectador. Modernamente, há arquitetos que se preocupam com esse importante detalhe: o  da visibilidade. O que planejou o Ewa Herz/Rio se preocupou.        
     O autor de "Nó no Coração", David Eldridge, é da "geração século XXI" do teatro inglês, (embora tenha nascido em 1973), sendo seu primeiro sucesso uma adaptação livre de "Senhorita Julia", de Strindberg, em 2012.  Ao que parece, a primeira amostra de seu trabalho, individual, no Brasil, é este "Nó no Coração", um texto dedicado a investigar a hipocrisia imposta aos relacionamentos familiares. O texto busca a mudança das regras. A atriz Monique Franco, em uma viagem a Londres, descobriu David. É  desse  autor  o bom e velho drama universal (e inglês), que o Ewa Herz nos apresenta agora. Algumas cenas a que nos foi dado apreciar são uma pequena tradução do teatro realista. Algumas cenas. É quando Nina, interpretada de forma  inquietante pela atriz  Monique Franco, mostra o seu bem desenhado personagem, cujo "caráter de artista", unido ao desencontro de uma juventude que não sabe viver as suas frustrações, nos leva ao mundo das drogas. Nessa viagem ela é  acompanhada pelo seu introdutor neste mundo, interpretado pelo ator Daniel Granieri.
     As intervenções de Monique/Nina, no decorrer da peça, nos revelam a mão firme do diretor Guilherme Leme, impedindo que a revolta da personagem ultrapasse o perfil "idealista" proposto pelo autor. O jogo de Nina se estabelece quando ela confronta  o seu potencial com o  desconforto que é, para ela, enfrentar a realidade.  Ângela (Camila Nhary), advogada e irmã mais velha de Nina, traduz, através de sua lucidez e ressentimento, o relacionamento das três mulheres.  As duas irmãs são personagens de múltiplos desafios, entretanto, a estrutura da peça nos é dada pela trajetória de Barbara, interpretada de maneira brilhante por Guida Vianna. O assunto é: culpa. Essa mãe, que segue o "amor incondicional", vai revelando aos poucos, através dos diálogos, o que a faz  seguir esse caminho em direção ao amor: culpa.
     A presença masculina é realizada em doses muito pequenas. O "Nó no Coração" é  das mulheres. Entretanto, o ator Daniel Granieri destaca-se ao dar ênfase ao  "agente do vício". O papel de Fernanda Thuran como Marina é  discreto.
     Há muitas possibilidades de reflexão sobre as escolhas de David Eldridge. O fato de ele desenhar a personalidade de Nina como a de uma garota mimada e sem limites pode tornar crível o desvio da mesma em direção ao vício. O que ficamos sabendo é que,  ao perder o emprego, o seu desequilíbrio se acentua. Algumas das referências da peça são nossas conhecidas, fica-nos apenas a missão de destacar as que mais impacto nos causou. Talvez a credibilidade do autor se deva mais à criação do diretor, cuja mão lúcida torna essa leitura possível.
      A direção é exata e a encenação, simples. Cenário (Guilherme Leme) servindo ao diálogo. Há, ao fundo, um a parede de cerca viva (bela) onde "as minhocas" se escondem ( uma alusão aos destemperos da mente?).  Os figurinos de Ana Roque são apropriados e a  Iluminação de Thomás Ribas ilustra bem  a ação. Destaque para a trilha sonora impactante de Marcelo H. (A acústica do Ewa Herz é excelente, em todos os sentidos). Tradução de Washington Gonzales. Co-Direção de Gustavo Rodrigues. Assistente de Direção: Pedro Osório. Assessoria de Imprensa:  Alessandra Costa.
     Trata-se de um espetáculo com ótimo padrão de execução. Ele vem somar. Há, em nosso teatro, um interesse, renascido, a respeito da questão dos relacionamentos (familiares). O título em inglês, "The Knot of the Heart", levanta o problema dos nós que precisam ser desatados. Uma frase da esperançosa Nina esclarece o título e convida as mulheres da casa a desatarem os nós. Essa fórmula é atribuida por ela ao misticismo oriental, aquele que visa trabalhar para a harmonia entre iguais. Assistir ao espetáculo, para o público é uma boa oportunidade: conhecer um novo espaço e confirmar os padrões de comportamento do novo século, eis a questão.   





   



terça-feira, 16 de abril de 2013

"CABEÇA DE VENTO"

Jan Macedo, Leo, em "Cabeça de Vento", autoria e direção Cleiton Echeveste (foto Cristina Froment)


CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da  Associação  Internacional  de  Críticos  de  Teatro - AICT)
(Especial)

Até dia 5 de maio, todo sábado e domingo às 16h, crianças e adultos têm um bom pretexto para irem ao Teatro Dulcina, ali, na Rua Alcindo Guanabara, Centro. Trata-se de "Cabeça de Vento", escrito e dirigido por Cleiton Echeveste. A peça é para crianças, mas, creiam, é teatro para todas as idades!
     Essa "chamada" serve para localizar uma história poética. "Cabeça de Vento", apelido carinhoso que a mãe de Leo, o protagonista, dá ao filho, é um relato que privilegia o encontro entre a emoção e o saber. O que está em jogo é o contato do menino Leo (Jan Macedo, ótimo) com a vida. Esse contato se dá através do olhar profundamente poético do autor. A narrativa tem início com o cotidiano do menino, do relacionamento afetivo de Leo com seus pais. São relatos divertidos e, às vezes. Pungentes. Como o da ausência do pai - mas sempre teatrais, lúdicos. Nas cenas vão surgindo os primeiros jogos, as primeiras teimosias, as primeiras leituras. E são essas leituras que vão determinar os acontecimentos. O relato se  debruça sobre a ausência do pai, sendo as brincadeiras com a  "pandorga" (a pipa carioca),  a ligação lúdica entre pai e filho. A pipa será o fio condutor da ação, mas o que a transforma são os encontros fictícios entre Leo e os grandes personagens da História.   
     Leo gosta de ler. Desenvolveu este prazer através do presente que ganhou de sua mãe, um livro que pertencia a seus antepassados: um livro de História Universal. O menino passa a dividir a sua vida entre o prazer da leitura, a escola, e as brincadeiras com sua pipa. É quando ela desaparece entre o bambuzal, que a história verdadeira começa: em sua procura, o que Leo encontra são os personagens da História! Essa é a dinâmica da narrativa. A cada um dos  personagens o autor dá a visão histórica correspondente, acrescida de sua própria visão: Benjamin Franklin (Eduardo Alomeida) é o distraído inventor que tem forte ligação com o movimento dos ventos. O menino se identifica com ele. A "generala" chinesa Fu Hao, também sacerdotisa (Luciana Zule), e por último o hilariante "Cruzado" Ricardo Coração de Leão, Rei da Inglaterra (Eduardo Almeida).
     A cada um desses personagens históricos o autor enfeita com sua visão pessoal. Podemos dizer que a ênfase que Echeveste dá ao Rei da Inglaterra é, talvez, a mais ilustrativa dos personagens (o ator Eduardo Almeida alterna o papel do pai, de Benjamin Franklin e de Ricardo Coração de Leão, enquanto Luciana Zule, mãe e generala Fu Hao, ambos perfeitos). Falando em atores, o elenco dá uma dinâmica especial ao texto, através de primoroso desempenho.  Eduardo faz uma crítica hilariante, ao interpretar Ricardo Coração de Leão seu furor a lutar com muçulmanos pela conquista de Jerusalém. A insensatez humana está muito bem representada neste personagem. O menino Leo chega a ficar escandalizado com o furor e o sotaque francês do Rei, e pergunta-lhe a causa.
     São acenos do autor para despertar o interesse da jovem platéia  por informações históricas. E este espetáculo é um importante elo cultural teatro/educação, aproveitado com a presença, na platéia, de escolas convidadas. O interesse dos alunos por História pode surgir, expandindo-se para outros domínios culturais. No episódio do rei inglês o  autor chega a citar Saladino, o bravo guerreiro muçulmano pouco conhecido entre nós. Nestes termos, "Cabeça de Vento" é uma surpresa, ao combinar  importantes momentos culturais com uma terna convivência familiar do menino com seus pais. Espera-se que cada um dos espectadores desfrute o espetáculo com o conhecimento que possui, e desenvolva uma visão crítica da História, incluindo a nossa.
      Pois o autor não deixou de lado o outro aspecto da História: a nossa. Percebe-se, na  narrativa, o tratamento dado à região natal de Echeveste, o Sul do pais. O autor é gaúcho, e é  através da paisagem estabelecida no cenário, e, principalmente do figurino do pai (Eduardo Almedia), que ele acena para sua terra natal. É uma citação comovente. Também o bambuzal é um suporte característico da região, e um bom recurso utilizado pela cenógrafa (Danielle Geammal), além das pandorgas, é claro. As cenas vão se estruturando através da mobilidade dos  canteiros de bambu, transformando-se em floresta, em quarto de dormir, sala, e assim por diante, estabelecendo a dinâmica da ação (Danielle Geammal é responsável por cenário e  figurino). Os atores fazem a manipulação do cenário, e nada fica forçado ou fora do contexto. Trata-se de uma dinâmica positiva.  
      Em resumo, essa procura das raízes, as lembranças do passado, os jogos educativos e os personagens históricos tornam a experiência de assistir "Cabeça de Vento" um acontecimento marcante. O carinho e a inteligência desse projeto, sua temática  cultural falam por si. Na ficha técnica temos, além dos citados acima: Gustavo Finkler, na trilha sonora e sonoplastia; iluminação Thiago Mantovani; preparação corporal, Fernanda Guimarães; assessoria pedagógica, Janine Hofmaister;  preparação vocal, Dani Calazans; assessora de king fu, Lucilene Pessanha; identidade visual, Arthur Screinert; assessoria de imprensa, Mônica Riani.            



domingo, 14 de abril de 2013

"CÉU SOBRE CHUVA OU BOTEQUIM"

Marcelo Dias (Divino), Marcia do Valle, (Viúva) e Xando Graça (Carrapato), três, dos treze atores do elenco de "Céu sobre chuva ou Botequim", de Gianfrancesco Guarnieri (Foto Divulgação)


CRÍTICA TEATRAL

IDA VICENZIA FLORES

(da  Associação  Internacional  de  Críticos  de  Teatro - AICT)

(Especial)


Interessante observar que Botequim, de Gianfrancesco Guarnieri, atualmente em cartaz no Teatro dos Correios, Rio de Janeiro, é intemporal  e, ao mesmo  tempo, um importante registro de nossa História. Tal afirmativa pode parecer contraditória, porém "Céu sobre chuva ou Botequim" suscita essa contradição; para Guarnieri, tratava-se de um "teatro de ocasião" para relatar os acontecimentos da época (anos 70); para o público de hoje é uma peça atual, com sabor de "roda de samba" e a catástrofe nossa de cada dia. A principal atenção volta-se para a sua recepção, ou seja, o novo público que freqüenta o espetáculo: ele parece não saber, ao certo, se está assistindo a  uma comédia com bebedeira de malandro e muito samba, ou se a proposta é denunciar a tragédia,  com crianças mortas, e casas desabando. O público acaba se envolvendo pois passado e presente se confundem. E, realmente, podemos dizer que muita coisa não mudou.  

     Em tal conjuntura, o ponto de vista "histórico/político" representado pelos dois universitários que se abrigam no bar (Brasil), Dorinha e Julio, passam a pertencer ao domínio do teatro surrealista, pois o público de hoje - e penso nele ainda como o receptor -  ouvirá com estranhamento a comunicação trocada pelo casal: que "as mortes continuam" e seus amigos continuam a "desaparecer". Tal revelação pode ser absorvida pelo público como afogamento na inundação, mas tais informações são metáforas do que estava acontecendo nos anos 70. Elas são dadas, no texto, para ficarem mesmo sem resposta, camufladas, parecendo mesmo levadas pela "enxurrada" (metáfora para as execuções políticas feitas pelos militares) pois eram tempos de repressão. Mas, para o público de hoje, elas são simplesmente jogadas no ar. Eis o surrealismo em ação.

     Uma linguagem cifrada vai cobrando o seu lugar (ontem e hoje). É o teatro que, para se fazer ouvir, utiliza todas as linguagens (realista, surrealista, metafórica, épica). O fato é que este Botequim/Mahagony hoje nos alegra, faz pensar e angustia.     

     Quanto aos atores, podemos observar que o papel da viúva, interpretado por Marcia do Valle "é o papel de sua vida". Assim como a cantora Marlene, que fez a viúva na estréia dos anos 70, também Marcia possui uma pequena voz e uma grande interpretação. Seu futuro (atual?) posto de comediante está conquistado, principalmente em sua antológica interpretação do tango/denúncia, de tom farsesco, que dá a resposta ao seu acusador. Sim, a sua "defesa" da acusação de assassina, cantada e dançada, é um dos grandes momentos da peça.

     Também Andréa Dantas, com a sua tia Olga, reconstrói a imagem de atriz brava e talentosa que é. Que bom é ver Andrea novamente! Dirigida, com precisão, por Antonio Pedro, seu  talento renasce, tanto na apresentação da personalidade da tia Olga, quanto em seu canto.

     Em geral, a empolgação do elenco é de tal desenvoltura que nos deixamos empolgar. Xando Graça, como Carrapto, chega, às vezes, a pedir "palmadas de menino abusado", para, logo a seguir, abrir sua alma e transmitir o nosso tão comentado "complexo de cão vira-lata do brasileiro". Bravos, Xando! Parabéns por sua atuação! Aliás, para desanuviar esse aglomerado de classes sociais convivendo nem sempre em harmonia no bar Brasil, nada melhor do que a brincadeira inventada pela viúva, de cada um tomar a palavra e fazer seu show. Efeito agregador, para quem, na platéia, já não entende mais nada das motivações de cada personagem. Assim, tia Olga canta o seu "Azulão Companheiro" para demonstrar o amor que abriga no peito...; Carrapato desnuda sua alma; Divino (Marcelo Dias), seu ressentimento, e assim por diante. São momentos artísticos  reveladores.  Assim,  temos um confuso trabalhador passando a truculência dos "sem discurso", muito bem representado por Rogério Freitas, o mesmo que salva Dorinha do afogamento.

     Dal Bonfim (Dorinha) e Vandré Silveira (Julio), são a consciência política do grupo, talvez o papel mais difícil de ser mantido na  época atual (séc XXI), na qual os estudantes inventam bandeiras para externar sua ânsia de luta. Não há mais a aterradora batalha contra a repressão e o golpe de 64 (graças!), e o casal de estudantes trabalha, na atual montagem, a potência de seu mútuo amor. A história da criança morta, e de seu acolhedor, Tulio (Nil Neves), não chega a ser desvendada às últimas conseqüências: suspeitamos que Dorinha se aproxime da criança morta com tanto carinho por uma questão de humanidade. Não fica muito claro.

     O rádio, com seus (não) comunicados, se transforma em uma apreciação de gosto musical, colocando Chopin no lugar das maldades exterminadoras do militares. Pela reação insatisfeita dos freqüentadores do Botequim, não fica muito claro se tal transmissão é uma alusão aos recortes de "Os Lusíadas" que a Imprensa da época colocava no auge da censura, ou se era ordem dos milicos censurarem a transmissão dos graves acontecimentos além Botequim...  

     Em várias ocasiões, a peça de Guarnieri se aproxima de Mahagonny, de Brecht e Weill, sendo uma delas a da orgia libertária. Os Encapuzados I, II e III (Denilson Levy, Leticia Miranda e Gabriel Zanelatto) acabam com a festa ao se adentrarem no bar fazendo uma simulação de "perigo de contaminação" que rende a prisão do casal de estudantes, "os contaminados". A sessão toda é realizada como a do teste do "bafômetro" da Lei Seca (pelo menos foi essa a impressão que passou).

     Entre os músicos (ponto alto do espetáculo), Luciano Moreira (Indio) e Fabinho D'Lellis (Miguel), iluminam a festa do Botequim. Nem tudo está perdido. A cena inicial, com os dois e Xando Graça apresentando a nossa música, é deliciosa a abre bem o espetáculo. A preparação corporal é de Édio Nunes, e a vocal, de Mona Vilardo. Em resumo, trata-se de um trabalho honesto, feito com garra, que honra a nossa dramaturgia. Talvez por humildade (ou descrença mesmo) não costumamos encenar o nosso tão rico repertório do passado. São verdadeiros clássicos (como os alemães de Brecht), temos um bom teatro político que deve ser absorvido pelas novas gerações. Parabéns pela iniciativa!   

          Na direção, o mesmo Antonio Pedro Borges dos tempos do Arena. Cenário e figurinos de Ney Madeira, Pati Faedo e Dani Vidal - principalmente o cenário, com as bossas e criatividade do design moderno, multicolorido.  Iluminação de Aurélio de Simoni (no dia em que assisti, a luz dançava ao clarear do dia, porém muito convincente em seus raios assustadores). Direção musical e arranjos de Marcelo Alonso Neves sobre as letras de Toquinho e Guarnieri.  Idealizadora do espetáculo: Marcia do Valle. Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação (João Pontes e Stela Stephany)




domingo, 7 de abril de 2013

"PEQUENAS TRAGÉDIAS"

D. Juan (Ana Carbatti) seduzindo Doña Ines  (Renato Carrera), direção Fabiano de Freitas
                                                                 (Foto Divulgação)



CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Para escrever tenho que ter liberdade total, inclusive de escolha. Fui assistir "Pequenas Tragédias" por causa de Pushkin, o iniciador de tudo o que de melhor temos, em matéria de ideia, de texto. Não me interessa quem sejam os atores, desde que sejam bons. Felizmente, foi o que aconteceu na Sala Rogério Cardoso, do Centro Cultural Laura Alvim, Rio de Janeiro: Ana Carbatti e Renato Carrera são bons, e isso basta. Imagine se eu tivesse que ficar rendendo homenagem a Bernadette Peters, por exemplo, só por ser ela uma atriz conhecida na Broadway? Rende-se homenagem porque ela é boa no que faz. Há, no Hemisfério Norte, a possibilidade de os artistas serem somente "de teatro", e, como tal são conhecidos. Ninguém (especialmente a crítica) tem que render homenagem a quem está "em um veículo famoso" e faz teatro para se  exercitar. Como devemos saber, "duas tábuas a uma paixão" (Shakespeare) é um compromisso; penso que elas não têm muita afinidade com a linguagem da mídia! Vemos, com surpresa e paixão, que muitos atores já fizeram essa opção de vida.
     Bem, encerro o desabafo aqui, realizado em essência para responder à atriz do espetáculo, que estranhou essa crítica desconhecer o seu currículo. Falha minha, críticos não tem que conversar com atores, devem, sim, assistir ao seu desempenho em cima do palco! Gente, agora identifiquei Ana Carbatti, ela fez "A Revista do Ano" e eu a adorei! Já fui acusada por leitores, apressados, de só dar destaque a atores que trabalhem na platinada. Não é verdade. E se tal acusação não é "direcionismo", não sei o que essa palavra significa. Pior: ver-se obrigado a ter alguém do elenco na grande mídia para ter público (ou ser público) é uma espécie de imposição que cerceia produtores e críticos. Principalmente a produtores, que são obrigados a fecharem os seus elencos com esse tipo de ator que, afinal, está sempre (com raríssimas exceções) representando a si mesmo.
    Pois bem, o parágrafo acima é política. Crítica também é política. Vamos ao espetáculo. Em primeiro lugar quero destacar a excelência do programa da peça que, sem pretensão, esclarece e encaminha o espectador. Sim, eles dão o merecido destaque a Alexander Pushkin  (1799-1837), esse poeta russo que morreu jovem e que era, por tudo o que realizou, um romântico de cepa. Ele alavancou a cultura atual. Não sei o porquê dos eslavos serem tão geniais, mas ainda vou descobrir. Estive lá assistindo-os, e quase morri do coração. Vamos às "Pequenas Tragédias"!
     O tradutor e pesquisador Sean McIntyre é um estudioso que honra qualquer espetáculo. Ignoro se foi ele quem escolheu o repertório, porém as três pequenas tragédias (e um intróito) selecionadas são uma delícia para olhos e ouvidos do espectador (a tradução, que atualiza alguns termos, foi um achado. Note-se que Pushkin foi um romântico moderno). Une-se a isso uma direção segura (Fabiano de Freitas). Aliás, uma equipe técnica muito bem escolhida, com Sueli Guerra dirigindo os movimentos; Renato Machado iluminando (o sonho de todo simbolista, esse jogo de luz que Machado nos brinda); figurinos acertados e excitantes de Daniele Geammal e a direção musical  de Roberto Bahal (falaremos sobre isso); e o perfeito design de som de Isadora Medella. A  cenografia, que valoriza o espaço, é  de Carlos Alberto Nunes.
     Voltamos a Roberto Bahal porque, certamente, ele não teve dificuldade ao selecionar as músicas, mas fê-lo com o mais apurado senso artístico: o encaixe para o "Requiem" do final de "Mozart e Salieri" NOS FAZ AGRADECER DE JOELHOS. Para não falar das soluções roqueiras que ele dá às manifestações Don juanescas. É muito bom, quando um espetáculo nos pega de surpresa. Como crítica, isso é o menos que posso pedir, para escrever sobre. Portanto, a música teve importância capital para o bom andamento dessa surpresa.
     Passemos à escolha das tragédias. Passemos à interpretação dada por Pushkin a Fausto, Mozart, Don Juan e ao O Poeta e o Editor: algumas com inspiração de mestres anteriores (ou contemporâneos de Pushkin, como Goethe, por exemplo), porém todas impulsionadoras de um futuro para essa Rússia de magníficas obras (Dostô, Tchecov, Tolstoi, tantos! se inspiraram nessa fonte!). Só quem vai à matriz e assiste a palestras, a espetáculos, a recitais, sabe o amor do povo russo a Pushkin! Ele ajuda até  escritores brasileiros a se tornarem melhores contistas e, claro! romancistas.
    Chega de homenagens, vamos aos fatos. O espetáculo começa com o diálogo entre um editor e o artista. O homem de negócios quer convencê-lo a retomar sua lira, para extrair dela a merecida fortuna, o dinheiro que necessitará para viver bem. Ele não percebe que está na presença de um romântico, que só anseia por Liberdade! Renato Carrera (para mim um total desconhecido, a impressão que eu tinha é que estava (salvo o idioma) em um espetáculo russo)! Sonha-se, também, quando se é espectador! Aliás, tenho um amigo francês que pensa ter o idioma português o mesmo ritmo e acento russo...
   Unindo-se ao prazer de conhecer Renato Carrera, vemos, na interpretação de Ana Carbatti, que estamos em boas mãos. A partir desse momento (os primeiros minutos de um espetáculo são cruciais), podemos desfrutar e respirar tranqüilos, pois, certamente, o que virá depois será auspicioso! E ninguém, na platéia, tem a menor dúvida disso. Vemos, a seguir, Fausto (Ana Carbatti) entediado; Mozart (Carrera) e Salieri (Carbatti) em momentos inspirados, tendo por desfecho o Réquiem, de Mozart! E D. Juan (Carbatti), buscando o seu próprio infortúnio, querendo-se vítima de "O Convidado de Pedra"! Cenas muito boas. Fabiano de Freitas está de parabéns, por não ter estremecido de excitação e colocado tudo a perder. Penso que este é o papel do diretor, segurar a emoção, e jogá-la nas horas certas, para que os atores não se percam. Estamos diante de uma jóia rara, um  mecanismo de precisão. Não percam este espetáculo! É teatro, e dos bons!

Idealização e Realização:  Ana Carbatti e Sean McIntyre
Assessoria de Imprensa: João Pontes e Stella Stephany