Marcelo Dias (Divino), Marcia do Valle, (Viúva) e Xando Graça (Carrapato), três, dos treze atores do elenco de "Céu sobre chuva ou Botequim", de Gianfrancesco Guarnieri (Foto Divulgação)
CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos
de Teatro - AICT)
(Especial)
Interessante observar que
Botequim, de Gianfrancesco Guarnieri, atualmente em cartaz no Teatro dos
Correios, Rio de Janeiro, é intemporal e,
ao mesmo tempo, um importante registro
de nossa História. Tal afirmativa pode parecer contraditória, porém "Céu
sobre chuva ou Botequim" suscita essa contradição; para Guarnieri, tratava-se
de um "teatro de ocasião" para relatar os acontecimentos da época
(anos 70); para o público de hoje é uma peça atual, com sabor de "roda de
samba" e a catástrofe nossa de cada dia. A principal atenção volta-se para
a sua recepção, ou seja, o novo público que freqüenta o espetáculo: ele parece não
saber, ao certo, se está assistindo a uma comédia com bebedeira de malandro e muito samba,
ou se a proposta é denunciar a tragédia, com crianças mortas, e casas desabando. O
público acaba se envolvendo pois passado e presente se confundem. E,
realmente, podemos dizer que muita coisa não mudou.
Em tal conjuntura, o ponto de vista
"histórico/político" representado pelos dois universitários que se
abrigam no bar (Brasil), Dorinha e Julio, passam a pertencer ao domínio do teatro surrealista,
pois o público de hoje - e penso nele ainda como o receptor - ouvirá com estranhamento a comunicação trocada
pelo casal: que "as mortes
continuam" e seus amigos continuam a "desaparecer". Tal
revelação pode ser absorvida pelo público como afogamento na inundação, mas tais
informações são metáforas do que estava acontecendo nos anos 70. Elas são dadas,
no texto, para ficarem mesmo sem resposta, camufladas, parecendo mesmo levadas pela "enxurrada" (metáfora para as execuções políticas feitas pelos militares) pois eram tempos de
repressão. Mas, para o público de hoje, elas são simplesmente jogadas no
ar. Eis o surrealismo em ação.
Uma linguagem cifrada vai cobrando o seu
lugar (ontem e hoje). É o teatro que, para se fazer ouvir, utiliza todas as
linguagens (realista, surrealista, metafórica, épica). O fato é que este
Botequim/Mahagony hoje nos alegra, faz pensar e angustia.
Quanto aos atores, podemos observar que o
papel da viúva, interpretado por Marcia do Valle "é o papel de sua
vida". Assim como a cantora Marlene, que fez a viúva na estréia dos anos 70, também Marcia possui uma pequena
voz e uma grande interpretação. Seu
futuro (atual?) posto de comediante está conquistado, principalmente em sua
antológica interpretação do tango/denúncia, de tom farsesco, que dá a resposta
ao seu acusador. Sim, a sua "defesa" da acusação de assassina, cantada e dançada, é um dos
grandes momentos da peça.
Também Andréa Dantas, com a sua tia Olga, reconstrói
a imagem de atriz brava e talentosa que é. Que bom é ver Andrea novamente! Dirigida, com
precisão, por Antonio Pedro, seu talento
renasce, tanto na apresentação da personalidade da tia Olga, quanto em seu canto.
Em geral, a empolgação do elenco é de tal desenvoltura
que nos deixamos empolgar. Xando Graça, como Carrapto, chega, às vezes, a pedir
"palmadas de menino abusado", para, logo a seguir, abrir sua alma e transmitir
o nosso tão comentado "complexo de cão vira-lata do brasileiro". Bravos,
Xando! Parabéns por sua atuação! Aliás,
para desanuviar esse aglomerado de classes sociais convivendo nem sempre em
harmonia no bar Brasil, nada melhor do que a brincadeira inventada pela viúva,
de cada um tomar a palavra e fazer seu show. Efeito agregador, para quem, na platéia,
já não entende mais nada das motivações de cada personagem. Assim, tia Olga
canta o seu "Azulão Companheiro" para demonstrar o amor que abriga no
peito...; Carrapato desnuda sua alma; Divino (Marcelo Dias), seu ressentimento,
e assim por diante. São momentos artísticos reveladores.
Assim, temos um confuso
trabalhador passando a truculência dos "sem discurso", muito bem
representado por Rogério Freitas, o mesmo que salva Dorinha do afogamento.
Dal Bonfim (Dorinha) e Vandré Silveira
(Julio), são a consciência política do grupo, talvez o papel mais difícil de
ser mantido na época atual (séc XXI), na
qual os estudantes inventam bandeiras para externar sua ânsia de luta. Não há
mais a aterradora batalha contra a repressão e o golpe de 64 (graças!), e o casal de
estudantes trabalha, na atual montagem, a potência de seu mútuo amor. A história
da criança morta, e de seu acolhedor, Tulio (Nil Neves), não chega a ser desvendada às últimas conseqüências:
suspeitamos que Dorinha se aproxime da criança morta com tanto carinho por uma questão
de humanidade. Não fica muito claro.
O rádio, com seus (não) comunicados, se
transforma em uma apreciação de gosto musical, colocando Chopin no lugar das maldades
exterminadoras do militares. Pela reação insatisfeita dos freqüentadores do Botequim, não fica muito claro se tal transmissão é uma alusão aos recortes de "Os
Lusíadas" que a Imprensa da época colocava no auge da censura, ou se era
ordem dos milicos censurarem a transmissão dos graves acontecimentos além Botequim...
Em várias ocasiões, a peça de Guarnieri se
aproxima de Mahagonny, de Brecht e Weill, sendo uma delas a da orgia libertária. Os Encapuzados I,
II e III (Denilson Levy, Leticia Miranda e Gabriel Zanelatto) acabam com a
festa ao se adentrarem no bar fazendo uma simulação de "perigo de contaminação"
que rende a prisão do casal de estudantes, "os contaminados". A
sessão toda é realizada como a do teste do "bafômetro" da Lei Seca
(pelo menos foi essa a impressão que passou).
Entre os músicos (ponto alto do espetáculo),
Luciano Moreira (Indio) e Fabinho D'Lellis (Miguel), iluminam a festa do Botequim.
Nem tudo está perdido. A cena inicial, com os dois e Xando Graça apresentando a
nossa música, é deliciosa a abre bem o espetáculo. A preparação corporal é de
Édio Nunes, e a vocal, de Mona Vilardo. Em resumo, trata-se de um trabalho
honesto, feito com garra, que honra a
nossa dramaturgia. Talvez por humildade (ou descrença mesmo) não costumamos encenar
o nosso tão rico repertório do passado. São verdadeiros clássicos (como os
alemães de Brecht), temos um bom teatro político que deve ser absorvido pelas
novas gerações. Parabéns pela iniciativa!
Na direção, o mesmo Antonio Pedro Borges
dos tempos do Arena. Cenário e figurinos de Ney Madeira, Pati Faedo e Dani Vidal
- principalmente o cenário, com as bossas e criatividade do design moderno,
multicolorido. Iluminação de Aurélio de
Simoni (no dia em que assisti, a luz dançava ao clarear do dia, porém muito
convincente em seus raios assustadores). Direção musical e arranjos de Marcelo
Alonso Neves sobre as letras de Toquinho e Guarnieri. Idealizadora do espetáculo: Marcia do Valle. Assessoria de Imprensa: JSPontes
Comunicação (João Pontes e Stela
Stephany)
|
|
|
|
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário