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domingo, 14 de abril de 2013

"CÉU SOBRE CHUVA OU BOTEQUIM"

Marcelo Dias (Divino), Marcia do Valle, (Viúva) e Xando Graça (Carrapato), três, dos treze atores do elenco de "Céu sobre chuva ou Botequim", de Gianfrancesco Guarnieri (Foto Divulgação)


CRÍTICA TEATRAL

IDA VICENZIA FLORES

(da  Associação  Internacional  de  Críticos  de  Teatro - AICT)

(Especial)


Interessante observar que Botequim, de Gianfrancesco Guarnieri, atualmente em cartaz no Teatro dos Correios, Rio de Janeiro, é intemporal  e, ao mesmo  tempo, um importante registro de nossa História. Tal afirmativa pode parecer contraditória, porém "Céu sobre chuva ou Botequim" suscita essa contradição; para Guarnieri, tratava-se de um "teatro de ocasião" para relatar os acontecimentos da época (anos 70); para o público de hoje é uma peça atual, com sabor de "roda de samba" e a catástrofe nossa de cada dia. A principal atenção volta-se para a sua recepção, ou seja, o novo público que freqüenta o espetáculo: ele parece não saber, ao certo, se está assistindo a  uma comédia com bebedeira de malandro e muito samba, ou se a proposta é denunciar a tragédia,  com crianças mortas, e casas desabando. O público acaba se envolvendo pois passado e presente se confundem. E, realmente, podemos dizer que muita coisa não mudou.  

     Em tal conjuntura, o ponto de vista "histórico/político" representado pelos dois universitários que se abrigam no bar (Brasil), Dorinha e Julio, passam a pertencer ao domínio do teatro surrealista, pois o público de hoje - e penso nele ainda como o receptor -  ouvirá com estranhamento a comunicação trocada pelo casal: que "as mortes continuam" e seus amigos continuam a "desaparecer". Tal revelação pode ser absorvida pelo público como afogamento na inundação, mas tais informações são metáforas do que estava acontecendo nos anos 70. Elas são dadas, no texto, para ficarem mesmo sem resposta, camufladas, parecendo mesmo levadas pela "enxurrada" (metáfora para as execuções políticas feitas pelos militares) pois eram tempos de repressão. Mas, para o público de hoje, elas são simplesmente jogadas no ar. Eis o surrealismo em ação.

     Uma linguagem cifrada vai cobrando o seu lugar (ontem e hoje). É o teatro que, para se fazer ouvir, utiliza todas as linguagens (realista, surrealista, metafórica, épica). O fato é que este Botequim/Mahagony hoje nos alegra, faz pensar e angustia.     

     Quanto aos atores, podemos observar que o papel da viúva, interpretado por Marcia do Valle "é o papel de sua vida". Assim como a cantora Marlene, que fez a viúva na estréia dos anos 70, também Marcia possui uma pequena voz e uma grande interpretação. Seu futuro (atual?) posto de comediante está conquistado, principalmente em sua antológica interpretação do tango/denúncia, de tom farsesco, que dá a resposta ao seu acusador. Sim, a sua "defesa" da acusação de assassina, cantada e dançada, é um dos grandes momentos da peça.

     Também Andréa Dantas, com a sua tia Olga, reconstrói a imagem de atriz brava e talentosa que é. Que bom é ver Andrea novamente! Dirigida, com precisão, por Antonio Pedro, seu  talento renasce, tanto na apresentação da personalidade da tia Olga, quanto em seu canto.

     Em geral, a empolgação do elenco é de tal desenvoltura que nos deixamos empolgar. Xando Graça, como Carrapto, chega, às vezes, a pedir "palmadas de menino abusado", para, logo a seguir, abrir sua alma e transmitir o nosso tão comentado "complexo de cão vira-lata do brasileiro". Bravos, Xando! Parabéns por sua atuação! Aliás, para desanuviar esse aglomerado de classes sociais convivendo nem sempre em harmonia no bar Brasil, nada melhor do que a brincadeira inventada pela viúva, de cada um tomar a palavra e fazer seu show. Efeito agregador, para quem, na platéia, já não entende mais nada das motivações de cada personagem. Assim, tia Olga canta o seu "Azulão Companheiro" para demonstrar o amor que abriga no peito...; Carrapato desnuda sua alma; Divino (Marcelo Dias), seu ressentimento, e assim por diante. São momentos artísticos  reveladores.  Assim,  temos um confuso trabalhador passando a truculência dos "sem discurso", muito bem representado por Rogério Freitas, o mesmo que salva Dorinha do afogamento.

     Dal Bonfim (Dorinha) e Vandré Silveira (Julio), são a consciência política do grupo, talvez o papel mais difícil de ser mantido na  época atual (séc XXI), na qual os estudantes inventam bandeiras para externar sua ânsia de luta. Não há mais a aterradora batalha contra a repressão e o golpe de 64 (graças!), e o casal de estudantes trabalha, na atual montagem, a potência de seu mútuo amor. A história da criança morta, e de seu acolhedor, Tulio (Nil Neves), não chega a ser desvendada às últimas conseqüências: suspeitamos que Dorinha se aproxime da criança morta com tanto carinho por uma questão de humanidade. Não fica muito claro.

     O rádio, com seus (não) comunicados, se transforma em uma apreciação de gosto musical, colocando Chopin no lugar das maldades exterminadoras do militares. Pela reação insatisfeita dos freqüentadores do Botequim, não fica muito claro se tal transmissão é uma alusão aos recortes de "Os Lusíadas" que a Imprensa da época colocava no auge da censura, ou se era ordem dos milicos censurarem a transmissão dos graves acontecimentos além Botequim...  

     Em várias ocasiões, a peça de Guarnieri se aproxima de Mahagonny, de Brecht e Weill, sendo uma delas a da orgia libertária. Os Encapuzados I, II e III (Denilson Levy, Leticia Miranda e Gabriel Zanelatto) acabam com a festa ao se adentrarem no bar fazendo uma simulação de "perigo de contaminação" que rende a prisão do casal de estudantes, "os contaminados". A sessão toda é realizada como a do teste do "bafômetro" da Lei Seca (pelo menos foi essa a impressão que passou).

     Entre os músicos (ponto alto do espetáculo), Luciano Moreira (Indio) e Fabinho D'Lellis (Miguel), iluminam a festa do Botequim. Nem tudo está perdido. A cena inicial, com os dois e Xando Graça apresentando a nossa música, é deliciosa a abre bem o espetáculo. A preparação corporal é de Édio Nunes, e a vocal, de Mona Vilardo. Em resumo, trata-se de um trabalho honesto, feito com garra, que honra a nossa dramaturgia. Talvez por humildade (ou descrença mesmo) não costumamos encenar o nosso tão rico repertório do passado. São verdadeiros clássicos (como os alemães de Brecht), temos um bom teatro político que deve ser absorvido pelas novas gerações. Parabéns pela iniciativa!   

          Na direção, o mesmo Antonio Pedro Borges dos tempos do Arena. Cenário e figurinos de Ney Madeira, Pati Faedo e Dani Vidal - principalmente o cenário, com as bossas e criatividade do design moderno, multicolorido.  Iluminação de Aurélio de Simoni (no dia em que assisti, a luz dançava ao clarear do dia, porém muito convincente em seus raios assustadores). Direção musical e arranjos de Marcelo Alonso Neves sobre as letras de Toquinho e Guarnieri.  Idealizadora do espetáculo: Marcia do Valle. Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação (João Pontes e Stela Stephany)




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