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quarta-feira, 25 de junho de 2014

CONTRAÇÕES





Debora Falabella e Yara de Novaes, em Contrações, direção de Grace Pasô





IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

CONTRAÇÕES

Sabemos que o teatro é uma lente de aumento sobre o mundo, mas o teatro dirigido por Grace Pasô é um Hublle. O Grupo 3, iniciado pelos atores mineiros Yara de Novaes, Debora Falabella e Gabriel Fontes Paiva está em sua quarta montagem. O texto dessa última montagem é escrito por Mike Barttlett (tradução Silvia Gomes), um autor inglês contemporâneo. Seu trabalho é "embalado" pelas mãos precisas da diretora Grace Pasô, que nos traz um espetáculo fora dos rótulos. É grande a tentação de pensar em Ionesco, mas do autor romeno ele não tem nada. Aliás, o autor inglês, Barttlett, vai muito além, ele se interessa pela História da Humanidade e a humilhação dos povos. Ao focalizar as duas personagens há uma visão universal sobre a degradação a que certas situações podem levar um ser humano. E não é só isso. Na direção de Pasô há inovações cênicas e reações insuspeitadas. O controle, e a loucura de suas mãos nos levam a um caminho poucas vezes desvendado. 

No texto, estamos na presença da mais reles submissão de uma funcionária subalterna. Ela é o célebre personagem explorado de Brecht, aquele que não sabe dizer "não". O autor quis mostrar uma cena absurda de sujeição, sem pensar em Brecht, talvez. Porém o caminho é o mesmo. A dependência, e a falta de coragem para se rebelar são degradantes, em qualquer contexto. Debora Falabella é uma atriz que possui grande força. Seu personagem em "Contrações" vai muito além dos papeis a ela confiados em outros veículos. Com exceção de "Dois Perdidos numa Noite Suja", no qual ela encontrou seu personagem nas figuras fortes e verdadeiras de Plinio Marcos. Agora, com a cena de Barttlett e Pasô, Debora mostra do que é capaz - em palco.

Yara de Novaes, como a subjugadora, não lhe fica atrás. Ela está com o poder, e nada a detém (na verdade, sua missão é "cumprir ordens"). Barttlett, como dissemos, é um homem sintonizado na História. Quanto á execução de sua tragédia moderna: há sons e gestos ritmados, há a exumação de um cadáver. Também instrumentos selvagens (como o é o de uma bateria de metal) - e a fúria do explorado a vencer obstáculos para se entregar à sua obsessão. Até o final, ela aposta em sua degradação. Podemos dizer que as cenas dessa peça são de um sadomasoquismo extremo. Se as encenações anteriores do Grupo 3 foram "O continente negro", do chileno Marco Antonio de La Parra; ou três contos absurdos de Murilo Rubião, é natural que o repertório vá em um crescendo, conforme o propósito do Grupo. Podemos dizer que, "Contrações" é uma pungente carta de apresentação para quem não conhece o trabalho do Grupo 3. 

A ficha técnica é de enorme precisão. Na trilha sonora temos o misterioso "Dr. Morris". A caracterização, de Anna Van Steen. (gente que conhece bem o assunto). "Conceito e preparação baterística dos atores", Bruno Tessele. O cenário e figurinos (de grande sensibilidade cênica), são de André Cortez. Direção de palco , Tadeu Costa. Preparação Corporal (encarregada da perfeita expressão do elenco), Kênia Dias. Luz de Alessandra Domingues. Imprensa: Ana Gaio.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

RICARDO III

Gustavo Gasparani (Ricardo III) envolvido com a narrativa da guerra. (foto divulgação)




IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

O que Shakespeare acharia da versão de Ricardo III criada por Gustavo Gasparani e Sérgio Módena? Podemos imaginar que se divertiria muito. Os artistas têm senso de humor e, para nossa surpresa, o público do século XXI também! Tragédias de Shakespeare aceitam todas as loucuras, já vimos ator pedir socorro, na cena final de Ricardo III, gritando: "meu reino por uma moto!" - em vez de um cavalo.
Mas Gasparani nos mantém atentos, quando, entre fugas e retornos ao texto, chega até a guerra que irá derrotar o "vilão". Neste final o ator mostra - e cremos que propositadamente - o que os atores têm de melhor: a sua criança. E eis que a solução fantástica para essa guerra se resolve com canetas coloridas, azuis e vermelhas, representando os dois adversários. E tudo acontece como se fosse um brinquedo - não essa castradora guerrinha dos jogos eletrônicos - mas a guerra do Ricardo que temos em nossa imaginação. Ouvimos ruídos da cavalaria se aproximando; das espadas se chocando, da respiração arfante, - tudo em um crescendo no qual o único recurso do ator é a sua voz e o seu talento. E, no meio do combate, com gestos, Gasparani rege a plateia...
Nesta adaptação de Shakespeare há o ator e seu contraponto, o texto. Quando começa, Gasparani adverte ao público que a história que vai contar é "metade verdadeira e metade ficção". Ficamos surpreendidos com a viva explicação da árvore genealógica daquelas "Famílias" todas. Dessa vez é com os Plantagenetas

E tem início a mais original versão shakespeariana. Gasparani se transforma em Lady Anne, nas mulheres do povo com seu sotaque peculiar, em condes e príncipes, em rainhas desesperadas. Não há como relatar as metamorfoses de Gasparani, desde o momento em que, pela primeira vez, o ator se transforma em Ricardo III.

Não somos especialistas em Shakespeare, infelizmente, mas percebemos que o enredo de Ricardo III foi respeitado e os personagens essenciais surgiram das mãos de Gasparani. A ficha técnica também não lhe ficou atrás. Temos Ana Amélia Carneiro de Mendonça traduzindo as falas ritmadas; Gasparani e Módena fazendo a contextualização para os nossos dias. Módena, como Shakespeare, sabe brincar com as situações terríveis. Ótima direção.
Assistente de Direção, Erika Ribas; Direção musical, Marcelo Alonso Neves; Cenografia (simples e funcional), Aurora dos Campos. Figurinos Marcelo Olinto. Iluminação Tomas Ribas; Direção de movimento Marcia Rubin. Pesquisa e apoio teórico, Liana Leão; preparação vocal Marly Santoro de Britto. Produção: Alice Cavalcante.

sábado, 7 de junho de 2014

INCÊNDIOS

Elenco de "INCÊNDIOS":
Julio Machado, Marcio Vito, Kelzy Ecard, Felipe de Carolis, Marieta Severo, Fabianna de Mello e Souza, Keli Freitas, Isaac Bernat em INCÊNDIOS", de Wajdi Mouavad.



IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

"A gente constrói a historia em cima de outras histórias". Saímos de "Incêndios" com essa frase na cabeça. A peça constrói vários caminhos. Desenvolveremos o caminho do amor. No caso de "Incêndios", peça do libanês Wajdi Mouawad, dirigida por Aderbal Freire Filho (tradução de Ângela Leite Lopes), vemos representada a força do amor - e as consequências da sua falta.
Sempre que surge alguém querendo preservar os valores humanos é logo transformado em lenda, como se a bondade e a boa vontade não fizessem parte do mundo "real". Esse é o caso de Nawal (magnífica interpretação de Marieta Severo), transformada na mítica "Mulher que Canta". A humanidade, para sobreviver, necessita de Mitos. No caso de Nawal, a sua voz contra o desamor é transformada em silêncio, e sua passagem pelo mundo em mistério mítico.
Como o autor não está interessado em fazer nenhum estudo sobre a ambição humana, ele poetiza os acontecimentos (a poesia nem sempre fala de coisas belas), dando ao público o resultado terrível da ambição funesta. Talvez o mais aterrorizante seja aquele filho do deserto (Julio Machado, também magnífico) ... aliás, achamos que este adjetivo vai aparecer inúmeras vezes neste espaço... Nihad, o segundo elemento dessa tragédia do amor, mostra como a sua perturbada sensibilidade de artista assimila a cultura do opressor e a sedução do mal. Estamos nos referindo à arte agressiva dos "Senhores do Norte", e seus reflexos. Por exemplo: os acordes da guitarra assassina de Nihad.
É tudo tão espantoso, tão forte, neste espetáculo, que temos a bendita sensação de estar na presença do teatro puro, daquela perfeição que transfigura o ator. O desempenho dos atores é de uma entrega absoluta: a mãe rancorosa que não tem consciência do seu ódio; a generosa avó, que ensina o caminho a Nawal, depois que o "incêndio" estoura em seu peito (a proibição de amar seu filho); ou a parteira, cuja intervenção na historia impulsiona a tragédia. Todas elas representadas por Fabianna de Mello e Souza, uma surpresa de atriz e seu poder de transformação.Felipe de Carolis e Keli Freitas, os gêmeos Simon e Jeanne, tão jovens, possuem uma experiência de cena acèss rare. 
Kelzy Ecard e Isaac Brenat. Kelzy representa Sawda, em sua vontade de crescer, de conhecer um mundo melhor. Isaac, e seus diversos personagens fazem uma mutação de cena impressionante. Marcio Vito, ator carismático, é também uma surpresa como Hemili Lebel, inventariante e amigo de Nawal. É atribuído a seu personagem a ligação entre as três histórias, paralelas que compõem a cena.
Aderbal Freire Filho, com o material talentoso que teve em mãos, construiu o que talvez seja o melhor espetáculo de sua carreira. Nada como a maturidade unida a um texto excitante, duro e concreto como a própria vida. Tempos e momentos se entrecruzam, e o autor nos conduz, com segurança, em seu relato construído sob as regras do teatro contemporâneo. Trata-se de uma narrativa levada ao público em duas horas. E poderia durar mais. Não sentimos o tempo passar, tal o envolvimento com a trama proposta por Maouwad. A cada momento uma revelação, no mais tradicional estilo trágico. E, no entanto, o desenvolvimento do texto, e da cena, mostram a mais contemporânea das linguagens.  
Traduzida para o nosso momento, essa tragédia nos parece violenta, mas o mundo em que vivemos é violento. Trata-se de uma narrativa atual, onde reina no mundo o demoníaco império das armas. Eis o comercio que ensanguenta o mundo e dissemina o ódio. Ter uma arma nas mãos, como se sabe, é ter um poder irrefreável.
A ficha técnica nos traz Marcia Rubin controlando os movimentos: garantia de cena bem produzida. A luz aberta e reveladora em seus tons dramáticos é de Luiz Paulo Nenen. Cenário e objetos de cena de Fernando Mello da Costa, que sempre nos traz belos trabalhos criativos.
No continente, e no país em que vivem os personagens, a linguagem simbólica é importante, daí os símbolos refletidos nos objetos de Fernando. Os figurinos de Antonio Medeiros falam através dos personagens. Trilha sonora de Tato Taborda. Visagismo, Lu de Morais. As perucas de Emi Sato são responsáveis pela desconcertante e rápida mudança de personagens, principalmente no caso de Isaac Bernat. Assistência de direção Fernando Philbert. Trata-se de um trabalho enxuto, no qual a direção dos atores e a técnica cênica estão em profunda comunicação. Direção de Produção: Maria Siman. Produção Executiva: Luciano Marcelo. Aconselha-se calorosamente.