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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"A EVA FUTURA"


CRITICA
TEATRO

IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Bruno Ferrari, Larissa Maciel e Bruce Gomlevski   (foto da produção)

   Então a nossa personagem bíblica, a mais promíscua de todas as mulheres, Eva, a mãe de todos nós, se transformará, no futuro, na mais casta das amantes? É o simbolista Villiers de l'Isle Adam (1838-1889), em sua premonição, quem o afirma, em "A Eva Futura" (adaptação do texto, Denise Bandeira, também diretora do espetáculo). O autor  imagina um genial Thomas Edison criando o andróide mulher perfeita, que pode ser desligada quando o homem não a quer por perto. Porém, a mais provável personagem desse atrevido simbolista francês é a mulher pedradora, representada por Evelyn Habal (Ana Velloso), cuja imagem perversa aparece no cinematógrafo por ele criado. Evelyn transforma-se,  e de bela vira em uma horrenda  fera. Velloso representa, em imagem no écran, "a mágica criadora de ilusões", a mulher que transtorna os homens, a que conhece "o truque". Coincidentemente, em 2010, entrei em insuspeitada sintonia com o autor, ao escrever "Horrenda", personagem cuja semelhança com  Habal é impressionante: a  arte é feita dessas coincidências.

                  "HORRENDA"

    Na casa ao lado moravam mulheres horrendas. Aproximavam-se dela com os olhos estreitos de inveja. Apesar de ela ser casada com um velho repugnante, apesar de ela possuir varizes, pele flácida, rosto cheio de rugas. Inveja.  
     Devia ser porque ainda fazia acontecer a metamorfose viva. Ainda respirava. Ouvia uma batida na parede. Era como se estivessem pregando pregos (a vizinhança era muito ruidosa. Invejosa). Não havia razão. Ela era só, muito só. Casada com um velho repugnante.
     Não se arrumava nunca, não saia nunca de casa. Sentia-se (era) uma infeliz.
     Mas um dia... começou a se arrumar. Futilidades. Tantas coisas terríveis acontecendo, e ela se arrumando.
     Seios caídos, pele flácida, dor nas pernas. Tonturas. Uma velha. Isso acontecia  porque estava no final da vida. Não teve chance. Não conseguiu morrer jovem. Não quis. Morre-se, e depois não acontece mais nada. Assim, espectadora, pode surgir alguma novidade. Ainda. Condenada a continuar, o tributo à vida.
     Arrumava-se, e voltava a ser bonita. Estava cansada. Não queria essa Metamorfose. Tinha que enfrentar o amor se ficasse linda. Queria espantar tanta felicidade. Começou a cantar uma música triste. Não adiantou. Sabia que a vida se transformava, para as pessoas belas. E ela queria viver a sua decadência. Linda.
     Mas na mesma casa viviam mulheres horrendas. Como ela, nos seus melhores dias. Horríveis. Pagavam o seu tributo ao horror. Cumpriam a sua missão. Horríveis. E ela sempre jovem! Conhecia "o truque". Ela sabia. Tinha que estar à altura: de calcinha e sutiã, tinha que pagar seu tributo a um corpo maravilhoso. Magia.
     Ela era horrenda. Alma feia, como a sua vida sem glamour. Não podia mais se enganar, não podia mais enganar ninguém. Ela gostava muito de enganar. Má. Gostava de ser má. 
(Conto de IDA VICENZIA).      

     A concepção de Thomas Edison sobre a mulher má é reproduzida em película (uma perfeita imitação, em vídeo - direção geral de Denise Bandeira - da precariedade das primeiras projeções), e é algo horripilante. Meu Deus, como é  bom poder brincar com assuntos dessa natureza! "A Eva Futura" é um espetáculo excêntrico que ri de tudo e de todos: uma bendita demonstração de inteligência. Talvez não tenha tido a repercussão merecida, no Rio de Janeiro, justamente por suas qualidades. Sabemos que Villers dedica sua obra aos "zombadores" anos cheios de armadilhas dos oitocentos. Há quem acredite que elas ainda estejam presentes, essas armadilhas, em nossos tempos do  "politicamente correto". Eva não quer mais ser um "brinde" para  Adão - ou está se redirecionando para isso? Eis a questão.
     Lord Ewald (Bruno Ferrari) "quer" o amor completo, o encontro do corpo e da alma com a paixão. Seu amigo, o genial Thomas Edison, cria, à revelia do Lord, uma fantasia andróide que irá substituir a amada, a bela, porém descerebrada, Alicia Clary (os três papéis - também o do robô/protótipo, anteriormente concebido - são interpretados por Larissa Maciel). Hadaly, a mulher-máquina, é humaníssima, e mais envolvente do que a bela Alicia. Essa, ao despedir-se de cena, deixa um bilhete ao seu amado, bilhete esse truncado, como a sua vida. Fica-nos a impressão de que Alicia deixou atrás de si o rastro de mais uma de suas tolices.
     Nesse jogo de desvendar armadilhas há citações de Hegel;  ópera de Wagner; passagens da cultura européia - que Alicia despreza - e muito riso. Responsável pela irreverência do espetáculo temos o ator Bruce Gomlevsky, como Thomas Edison. A abertura da peça com o seu monólogo, por sinal brilhante, situa o que virá depois e nos prepara para o "pacote de maldades" que parece ser o apanágio da inteligência. Eis outra questão.
     Entretanto, o texto é um paradoxo! - como diria Lord Ewald - pois ao mesmo tempo em que se diverte com a falta de sensibilidade do cientista,  mostra que a inteligência também pode ser escrava. Este é o caso de Thomas Edison com o seu amigo e benfeitor, Lord Ewald (essas peças que remetem à pompa e circunstância inglesas são deliciosas). No caso, a consciência "civilizada" de Lord Ewald acaba aceitando o arremedo de mulher que o cientista lhe oferece. Porém o grito de Thomas Edison é humano, ou o de um animal ferido, como queiram, quando  nos adverte para os perigos da amizade. Porém não nos precipitemos, deixemos as emoções de "A Eva Futura" para quem quiser ler o livro do simbolista Villiers d'Isle d'Adam, pois a peça, agora, para assisti-la, talvez só em São Paulo, onde terá, com certeza, o seu valor reconhecido.
     "A Eva Futura" é, em sua concepção, um espetáculo belo e criativo, no qual o cenário de Helio Eichbauer tem uma participação determinante, com seu clima de caverna científica oitocentista (o recinto onde Thomas Edison trabalha, e também a iluminação de Paulo Cesar Medeiros, com suas brincadeiras com luz, sombra e estouros científicos da energia elétrica, homenageiam o cientista. Os figurinos de Rita Murtinho são perfeitos para a época. Preparação corporal de Patrícia Carvalho-Oliveira. A trilha sonora é criação da diretora Denise Bandeira com Andre Surkamp, Glauce Guima e Ricardo Rente. Na admirável foto-montagem de Cafi e na supervisão geral das cenas, feita por Dib Lufti, o mestre da fotografia em movimento, a cena se completa. Enfim, é muito bom ver bom teatro.
(Há, naturalmente, alguns senões, mas não gostaria de indicá-los).