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sábado, 26 de setembro de 2015

"TEM UM PSICANALISTA NA NOSSA CAMA"

    Cena de "Tem um psicanalista na nossa cama", texto de João Bethencourt, direção Glaucia Rodrigues,  com Lucci Ferreira (Eduardo), Cristiano Gualda (Psicanalista) e Solange Badim (Dolores, em um figurino nada "excêntrico").                       (Foto de Guga Melgar)


                             IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     É interessante parar um pouco com essa correria de narrativas modernas e pós-modernas, do atual teatro carioca, e darmos atenção ao texto de João Bethencourt. Nesse  "Tem um psicanalista na nossa cama", em cartaz no Teatro Vannucci, a tal comédia "bethencourtiana" (que obedece aos mais puros mecanismos do teatro de situação), o autor consegue, em meio a soluções absurdas, colocar um pouco de verdade na ação... e, pasme!, fazer o público pensar. Aliás, recurso encontrado em várias de suas comédias, basta lembrar de "Bonifácio Bilhões", texto em que ele encaixa momentos políticos brasileiros que estão sempre rondando o nosso dia-a-dia, como a frase do FHC "esqueçam tudo o que escrevi no passado", dito pelo burguês professor de economia política, interpretado por José de Abreu... Em "Tem um psi..." o autor faz uma brincadeira com a psicanálise.  
     Bethencourt continua, descaradamente, a ser o verborrágico de sempre, obrigando a seus atores a se sobrecarregarem de texto, com pulmões - e memória - dedicados a medir a sua capacidade, na medida em que as frases são descarregadas sobre o público. Às vezes tal "voragem argumentativa" (pleonasmo para significar excesso), refreia até uma possível comicidade da cena. Entretanto...
     Em alguns casos, como o do psicanalista, interpretado de maneira convincente por Cristiano Gualda, o autor  chega a nos mostrar a sua antiga verve, ao fazer o psicanalista ficar escutando as maluquices das outras pessoas, e demonstrar que tal fato pode ajudá-las. Sim, Bethencourt acaba nos convencendo disso. O seu "psi" sustenta que a paciente, ao ser confrontada com o marido, encontra-se "em fase de  não retorno" ao seu antigo estado de submissão (patética), ao casamento tradicional, graças à psicanálise!  
    O "plot", que envolve (obsessivamente) brigas por ciúmes, e outros expedientes que costumam ocorrer entre marido e mulher, agradará, ainda, à burguesia que assiste às suas peças? Talvez sim, porque João não se contenta só em ser crítico e deixar a nu alguns defeitos da burguesia, ele se compraz em desafiá-la.
     Dirigida por Glaucia Rodrigues, e interpretada pela excelente Solange Badin, como a esposa Dolores, a maluca "ex-submissa" que confronta o marido Eduardo (interpretado pelo não menos "desempenhado" Lucci Ferreira),  que se considera "dono e senhor" da situação, até que a situação se inverte. Isso também pode acontecer.
     Bem, descontados alguns exageros dignos deste João, um dramaturgo formado em Yale, que aprendeu da escola americana , entre outras coisas, a correria do time cômico da terra do Tio Sam,  (Bethencourt já foi um dos mais encenados dramaturgos pelo mundo a fora), pode-se acompanhar uma historia que, no fundo, graças à conclusão do psicanalista e ao amor que une o casal, pode ser considerada uma "comédia de costumes" atual, apesar de alguns exageros típicos de Bethencourt!
     Mas Edmundo Lippi, na produção,  e Glaucia Rodrigues, na direção, acreditam na eficácia do texto de Bethencourt. Salvo alguns excessos dignos desse autor, fica o  recado (alentador) sobre a psicanálise: Gualda, com a sua personalidade de ator, transmite com  ironia o único texto convincente da peça: o da crença do psicanalista em sua função.
     Inadaptável à critica é a  situação, absurda, que se constrói, durante o encontro dos dois ex-colegas de escola, e o confronto que se estabelece a seguir, quando o marido, Eduardo, invade o local (sagrado) do psicanalista: o seu escritorio. Diga-se, de passagem, que a "cama" que, por sua vez, o psi acaba invadindo, é a consciência do casal. E o autor aproveita para advertir - em um texto que é puro  non sense - sobre a verdadeira influência que a psicanálise pode oferecer a um casamento em crise.           
     O cenário de José Dias acompanha, de maneira convencional, as necessidades da cena. E os figurinos, algumas vezes exagerados, como manda a personalidade da "ex-madame", são de Colmar Diniz. Para o figurinista, Gualda e Ferreira herdam um toque simples, convencional. Wagner Campos compõe a música, e faz a direção musical do espetáculo. A iluminação, de Rogerio Wiltgen, não apresenta maiores novidades, adequando-se à encenação.
     Trata-se de um espetáculo "equilibrado", que não traz nenhum dos "problemas psicológicos" que movimentam o nosso tempo. Também não era essa a proposta. Mas, estranhamente, a autocrítica (principalmente a de Dolores, a esposa ciumenta), traz o tormento da "consciência de si", tão caro às "idiossincrasias" que habitam o relacionamento entre marido e mulher, em nossos dias. Entretanto, como espetáculo, "Tem um psicanalista na nossa cama" é uma diversão sem maiores consequências. Vale pelos atores, e a direção segura.    

domingo, 20 de setembro de 2015

"O NARRADOR"

Acima: "Icaro", de Henri Matisse. Abaixo: Bizonho e Diogo Liberano em "O Narrador", inspirado em Leskov e Walter Benjamin. Dramaturgia e encenação: Diogo Liberano.
(Foto Matisse: Enciclopedia;  Foto Diogo e Bizonho: Ana Clara Carvalho)   

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     Bem, já que estamos no terreno da narrativa, e que não pertenço ao "povo da Bíblia", mas compartilho de sua melancolia (leia-se Walter Benjamin) - eu -  membro rebelado que sou da não menos melancólica "aristocracia rural brasileira", a qual não se permite outro tipo de cultura a não ser a bovina (tomara que nenhum deles leia isso!) - "cultura" essa que não compartilho - no momento procuro entender Diogo Liberano, diretor e dramaturgo carioca.
     Faz-se a dúvida sobre a natureza de sua melancolia. Em um depoimento-vida, ou "narrativa", que presenciamos no encontro com Diogo - uma mélange de reflexões caseiras (porém não menos solucionadas), unidas a reminiscências e presenças, ficção e poesia, (procuro esquecer a internet e e.mails citados), qual é, afinal, a verdadeira natureza deste artista? Ele se apresenta,  todos os fins de semana, até o dia 27 de setembro, na Casa da Gávea. Na verdade, o que nos mostra Diogo são lembranças - pessoais, inspiradas nas reflexões de Walter Benjamin em "O Narrador -  considerações sobre a obra de Nikolai Leskov" - porém, dessas reflexões Diogo só nos revela os ensinamentos da narrativa livre, ao seu bel prazer, presença única do "narrador-criador", o que ele pretende ser, estranhamente, para uma platéia (reduzida, porém atenta),  na Casa da Gávea.
     Bons motivos teve o Sr. Benjamin, a quem muito admiro, para pensar em seus contratempos. Desconheço - ou desconhecia - os contratempos do nosso Diogo Liberano, porém posso assegurar-vos que ele ama um desafio. Não posso negar-me (essa que vos escreve foi merecedora de castigos, segundo sua família, por amar a arte, e isso não tem nada a ver com a minha mania de falar sobre ela, a arte), não posso negar-me a esse narrador moderno, embora a tentação do meu silêncio seja grande. Aliás, já deveria ter aprendido a esperar, de Diogo Liberano, aquele artista que nunca nos prometeu "a rose garden", coisas as mais terríveis, como "Sinfonia Sonho", por exemplo.
     Mas constatamos, com surpresa, que a autopiedosa ironia de Liberano se assemelha ao humor judeu! Sim, não há nada mais poderoso do que se submeter a um desafio dessa ordem, incorrendo no perigo de encontrar, passo a passo, a própria insanidade, e incutindo nela o humor irônico. Constatamos a sua fascinação por abismos   quando relata a sua intimidade com a morte. As passagens a que se propõe, contando-as em números - os mesmos, angustiados, passos de Benjamin - dão continuidade à narrativa e são recursos de autocompreensão.    
      Enfim, desse encontro com Liberano o mais importante é o contato com a sua desesperança. O fascínio pelos abismos e o encontro irresistível com a morte são episódios que todo o sensitivo carrega na alma. Após a narrativa de Liberano, certamente houve o encontro com seus semelhantes. Retiro-me, acabrunhada. Impossível presença, a morte me acompanha. Seria o seu, um relato leskoviano? Segundo Benjamin, Leskov é o narrador que sustenta os traços grandes e simples de uma verdadeira narrativa. As da morte? Voamos como Ícaro para os espaços sempre sonhados ... e a dúvida se estabelece. Ponto para Liberano.

 Dramaturgia e Performance, Digo Liberano; Composição Musical, Angel, de Rodrigo                                 Marçal; Colab. Artística, Th Inominável; Registro Audiovisual, Philippe Baptiste; Foto,                                 Ana Clara Carvalho; Produção, Clarissa Menezes e Thiago Pimentel; Realização, Th                                   Inominável.

sábado, 19 de setembro de 2015

"AS MENINAS"

Foto do elenco de "As Meninas", peça de teatro adaptada do romance de Lygia Fagundes Telles; adaptação, Maria Adelaide Amaral, direção Yara de Novaes. (Foto Priscila Prade)  
 IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

    Sim, faz sentido montar AS MENINAS, agora. Os jovens devem prestigiá-las, é bom que eles vejam o que realmente aconteceu com os  estudantes, na década de 70. Não foi nada romântico, muito menos heroico, foi desalentador, e é de dar dor no estômago ver essa historia contada agora. O Theatro Poeira, em seu pequeno espaço, recebe um público jovem, em sua maioria da classe teatral. Enfim, estamos falando para a nossa própria gente, quando deveríamos alcançar um público muito maior. Esta peça deve ser apresentada em praça pública, meninas!
    No texto de Lygia Fagundes Telles, com adaptação para a cena teatral de Maria Adelaide Amaral, fala-se na Operação Bandeirantes, a "OBAN" de triste memória, financiada pelos empresários brasileiros (e pelo capital internacional), em cujas masmorras se torturavam jovens que acreditavam em um Brasil independente. Imaginem que naquela época não se podia pesquisar, os cientistas brasileiros tinham que se abrigar em outros países, para poderem exercer as suas funções: o Brasil da época exportava cérebros para o estrangeiro! E a carreira de cientista social era proibida, perseguida, em seu próprio país! Uma das heroínas da Lygia, justamente a que faz Ciências Sociais, é a que tem consciência do que está acontecendo: ela representa aquela fração da juventude que acabou pegando em armas, e que em sua maioria foi assassinada. Os tempos não estavam para brincadeiras.
     O OBAN, financiada pelo capital -  brasileiro e internacional - era um porão sórdido, bem no coração de São Paulo. Sim, havia outros centros de horror no coração de São Paulo: como o soturno "DOPS", o "Departamento de Ordem Política e Social", no qual os militares trucidavam a juventude brasileira que acreditava na independência de seu país. A  ditadura militar, de tão triste lembrança, torturava jovens. É bom que os jovens de hoje, os que se querem idealistas, assistam "As Meninas". É a derrocada final de uma geração. O espetáculo, tão necessário neste momento, é encenado somente às terças e quartas feiras! É muito pouco espaço: o tempo que ele relata foi um tempo que não deve ser repetido. Nunca mais.
     Dizem alguns que as "ideologias" estão divididas, hoje em dia. Como assim?! Que os rebeldes extremistas de esquerda são concentrados nos "blogs". Se isso é verdade, é nas redes sociais que a juventude deve se manifestar. Mas há um engano: a internet abriga todas as "ideologias", para o bem ou para o mal, mas talvez ela (a internet) consiga nos salvar dos tempos sombrios (que sonham em voltar).
     Ser "ideológico" no bom sentido é não querer ver os nossos jovens passarem pelo que passou a geração que hoje está de cabelos grisalhos. Neste sentido, somos todos "ideológicos", como queria Cazuza: "eu quero uma ideologia pra viver". É bom não esquecer.
     O texto de Maria Adelaide Amaral é denso, entrecortado por momentos de humor, para dar "respiração" ao drama terrível. A irmã do pensionato (Sandra Pera em um ótimo momento), e a "mãezinha rica" -personagem de Clarisse Abujamra. A atriz devia se soltar mais na cena da dança! pois, afinal, a "mãezinha" é uma mulher "muito louca", apesar de - ou por causa - ser uma paulistana "quatrocentona" -, sua personagem, não esqueçamos, representa a repressão enraizada nas famílias "de bem". Sandra e Clarisse dão sua contribuição (poderiam dar mais), provando que "os tempos não mudam".
     "As Meninas" está em cartaz desde 2009. A diretora Yara  de Novaes justifica: "Denunciar abusos morais e políticos que imperaram no Brasil obscuro do início dos anos 70, ainda faz-se necessário nesse 2015 de extremos indecentes e aviltantes". Aqueles "anos 70" eram habitados por pessoas que continuam as mesmas (não importa o tempo), e devem ser recordados, sim, para os horrores não se repetirem. A juventude "que se quer engajada, hoje" - deve assistir "As Meninas" e testemunhar uma desilusão. É Lygia Fagundes Telles quem fala: "Enquanto escrevia esse romance, recebi um terrível panfleto de um homem torturado pela ditadura descrevendo - até a morte, talvez - todo o horror pelos quais ele passou (...) O panfleto aproveitei-o inteiro e, através de Lia (a estudante de Ciências Sociais), criei essa circunstancia que me pareceu ideal".  
     Com um cenário funcional de André Cortez, a ação transcorre em sintonia com o drama. Os figurinos, simples, sóbrios, de  André e Fabio Namatame, colaboram para a cena tensa e "descomplicada", ao mesmo tempo, jogando com acerto os momentos do drama, seus altos e baixos, possibilitando a sua "respiração".
     Deixemos Lygia Fagundes Telles falar novamente: "Escrevi emocionada esse romance "As Meninas", publicado em 1973, durante a ditadura militar. Minha intenção era testemunhar essa dura fase política do nosso país". São três meninas, colegas de pensionato. Lia, estudante de Ciências Sociais, é a que mais se envolve com a política estudantil e com a repressão. Ana Clara representa aquela facção de juventude que se deixou envolver pelo desespero e as pelas drogas (eles foram muitos). E a burguesa Lorena, a que sente "culpa e pena" pelo que está acontecendo (diz o texto que esses sentimentos são os de quem se considera superior, será?), porém só se preocupa com o amor que tem por um homem mais velho.
     A personagem mais sensata parece ser Lia, a jovem cientista social. São três as atrizes: Clarissa Rockenbach (pelo nome podemos identificar  Ana Clara); Luciana Brites e Silvia Lourenço. Há um ator convidado, ele preenche a necessidade do papel do homem jovem, nas circunstâncias dadas, na historia de Lygia Fagundes Telles. Todos estes homens são representados pelo ator convidado, Daniel Alvim, que cumpre com acerto a sua função.
     Há músicas, e comentários musicais, tudo iluminado por Juliana Santos. A direção do espetáculo é de Yara de Novaes. Damos novamente  a palavra a Yara: "Lygia Fagundes Telles versa de A a Z sobre o que há de mais humano em nós, com provocações filosóficas e estéticas sem comparação". Yara de Novaes conseguiu superar o mal estar de uma época, e dar vida a algo inenarrável, sendo ajudada, e ajudando, a  Lygia e Maria Adelaide, a "denunciar os abusos morais e políticos que imperaram no Brasil obscuro do início dos anos 70". O espetáculo ajuda a dessacralizar, para os jovens, a aura romântica que envolve (para eles, os jovens) aquela época de horrores. Como se diz entre "companheiros", é preciso ter "estômago forte" e coração valente para assistir "As Meninas". Recomenda-se!                 
Produção Fernando Padilha. Divulgação Lu Nabuco.
OBS: Fiz questão de não entrar em detalhes sobre "quem é quem" no elenco, pois o programa não esclarecia. Minha luta com a classe, hoje em dia, é com acertos no "espaço cênico" (que pode definir um espetáculo),  daí a sugestão da praça pública como espaço para "As Meninas"; e com os programas incompletos, que não indicam "ator e personagem", como se os críticos tivessem obrigação de conhecer todos os atores!

                

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

"ANDANÇA - BETH CARVALHO - O MUSICAL"

            Imagens de "Andança - Beth Carvalho - O Musical", texto Rômulo, direção Ernesto Piccolo.
                                           
           Homenagem aos 50 anos de carreira de Beth Carvalho
                                                             (Fotos Fernanda Sabença).


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
      Deliciosa homenagem a Beth Carvalho, "Andança - Beth Carvalho - O Musical". O "povo do samba" está de parabéns. Regido por dois grandes maestros: Ernesto Piccolo, direção, e Rildo Hora (outro homenageado), na batuta musical.  E onde se dá essa homenagem? No Teatro Maison de France, o Império dos franceses aqui no Rio de Janeiro. Nada mais apropriado, os franceses adoram o samba brasileiro. Noite encantada. Vamos dar a palavra a Rildo Hora, que sonorizou a voz de Beth: "Rei em seus domínios, terreiros e escolas, o samba é um gênero de difícil microfonação. Há que se buscar muita clareza para que sua paisagem sonora seja gravada com nitidez". E isso Rildo Hora o fez, com os discos de Beth Carvalho. Segundo ele, desde o seu primeiro, "1800 Colinas" - "que alicerçou nossas carreiras". Na noite do dia 9 de setembro de 2015, uma quarta feira, com a presença de Beth Carvalho, ouve a estréia do espetáculo, para convidados. Na platéia: Beth Carvalho e seus fãs. Teatro lotado. No palco, Beth de "corpo e alma", na interpretação de Jamilly Mariano (Beth criança) - Stephanie Serrat (Beth jovem) e Eduarda Fadini (Beth madura).   
     Há, nesta passagem de idades e descobertas, uma representação bem brasileira; a figura de Beth, nestas três etapas de sua vida, nos apresenta algo que no Brasil do samba é recorrente: a  menina vai clareando, sem barreiras. Isso não é racismo ao contrario, é a negação de todos os racismos. Direção de movimento e coreografia, Sueli Guerra. Querem mais? O texto: para quem não conhecia a vida de Beth Carvalho, é de Rômulo Rodrigues (um dos componentes das 'Oficinas de Criação', de Ernesto Piccolo). O autor não poderia ser mais preciso, imaginamos que nada foi esquecido, a começar pelos grandes compositores do samba brasileiro, desde a cantora menina, atravessa sua vida, e não se esquece da perturbação política da época. O texto relembra os espetáculos do Teatro Opinião, as manifestações de rua pró Eleições Diretas, o apoio a Cuba de Fidel, dado por Beth e sua família. 
     E os momentos das grandes revelações? Maria Betânia estreando no show Opinião, cantando "Carcará", de João do Vale (na voz da excelente Rebeca Jamir). É impressionante o impacto que essa cantora/atriz consegue, revivendo a Betânia daquela memorável estreia. Outro impacto é Andre Muato cantando "Travessia", de Milton Nascimento. Mas não ficamos aí. Clementina de Jesus, fator decisivo no estilo Beth Carvalho de cantar, na voz e interpretação de Wal Azzolini (que, é claro, não consegue a rouquidão inigualável daquela pérola negra, mas não desmerece a sua lembrança). E, de surpresa em surpresa vemos passar, diante de nossos olhos (e ouvidos), a "Historia do Samba Brasileiro", da época de Beth Carvalho. Desfilam para nós Nelson do Cavaquinho, o grande poeta (interpretado com "humor e ironia", por André Muato). A descoberta de Cartola (Leo França, que também canta Silvio Caldas).  
      Mesmo para quem não se alimenta de samba, "Andança - Beth Carvalho - O Musical", é um desfile inesquecível. Pensem em alguém da época das descobertas de Beth? Eis uma menina de sorte. Pensem em Beth Carvalho desde o início, quando o pai (interpretado por Mauricio Baduh), a mãe (Lenita Lopez), e a irmã (Barbara Mendes), todos, na vida da cantora, davam-lhe apoio irrestrito. E pensem nos amigos que fez, durante a vida. Não cremos que muita gente saiba, mas a cantora impulsionou carreiras de muitos músicos geniais: "gente do samba", esse ritmo corria em suas veias.
     Bons momentos também nos trazem Leonam Moraes como o seu grande "editor musical" Rildo Hora, ou a brincadeira com Chacrinha (Mauricio Baduh); e com a representante dos fãs da cantora, a incansável "Isaura", (interpretada com senso de comédia por Ana Bartinnes, que também é produtora do espetáculo). Impossível citar todos os cantores/atores. Lembramos dos bons desempenhos de Lú Vieira (dando à Emilinha Borba uma voz que ela nunca sonhou ter); ou Marlene (também gloriosamente interpretada por Barbara Mendes); Martinho da Vila, com o seu "telecoteco dengoso", interpretado por Paulo Ney; ou Carmelia Alves (Renata Tavares); Nora Ney (Rebeca Jamir);  Aracy de Almeida (Tathiana Loyola); Zeca Pagodinho (Douglas Vergueiro); Jamelão (Flavio Mariano);  Arlindo Cruz (Andre Muato), e tantos outros...
       O palco do Maison de France sustenta aquele céu de músicos, lá em cima. Regidos pelo próprio Rildo Hora, que também faz a direção musical do espetáculo. Magnífica imagem, os músicos reunidos sob a batuta do grande mestre. Jamil Joanes (baixo); Helbe Machado (bateria); Marcio Eduardo Melo (piano); Rafael Prates  (violão 7 cordas); Alessandro Cardoso, (cavaquinho);  Ninil, (sopros); Waltis Zacarias - Mestre Chuvisco e China Show, (percussão).
     Mas deixa estar, que todos os atores também são músicos e cantores! E os sambas enredo e as marchinhas de carnaval são invocadas... e também as dinâmicas dos festivais. Tudo cai no colo da Beth. Mas o horror também acontece, justamente pelas mãos da Estação Primeira, a querida Mangueira de Beth Carvalho! Há sempre uma "pequena autoridade" no caminho. Proibição da diva se apresentar no desfile, vejam só! ocasionando o primeiro break down que quase nos leva a cantora. Dez meses de hospital, coluna afetada. Desculpas vieram, pelo presidente da Escola, porém o mal já estava feito. Essas coisas terríveis acontecem. Mas o final do espetáculo é "pra cima", apoteótico, como deve ser com essa homenageada.    

     Cenografia de Clivia Cohen. Figurinos, Dani Vidal e Ney Madeira; visagismo, Vava Torres; design de luz, Djalma Amaral; diretor vocal e arranjos vocais, Pedro Lima; diretor assistente Marcio Vieira; design de som, Tom Rocha, Rodrigo Mello, e Jackson Marques; fisioterapeutas Marcio Aleixo e Camile Pinheiro; assessoria de Imprensa JSPontes Comunicação (João Pontes e Stella Stephany). NÃO PERCAM ESSA HOMENAGEM AO SAMBA!                            

domingo, 6 de setembro de 2015

"LUDWIG/2 - EU DESEJO PERMANECER UM ENIGMA"

Atores Andreas Mayer e Manoel Madeira, e a cena das projeções. Peça "Ludwig/2 - Eu Desejo Permanecer Um Enigma", autor e diretor Gustavo Bicalho. (Foto Nadine Lões) 



IDA VICENZIA
(da Associação  Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     "LUDWIG/2 - Eu desejo permanecer um enigma", com dramaturgia, texto e direção de Gustavo Bicalho, eis uma bela surpresa, um trabalho cuidadoso, comemorando os 20 anos da Artesanal Cia. de Teatro. Entretanto, o espetáculo, que se propõe a ser  contemporâneo, esbarra no romantismo selvagem, alemão, da época de Richard Wagner, e essa força se impõe, sendo, talvez, refreada pelo diretor, que a transforma em uma narrativa livre. Mesmo assim, a tão esperada "contemporaneidade" fica só na concepção do espetáculo, pois sua historia é mais forte. A cena da loucura, por  exemplo, encerra qualquer tentativa de inovação de linguagem. Ela encarcera o ator, e é definitiva. Mesmo assim, é válida a forma pela qual Manoel Madeira lhe dá vida. A destacar também as imagens de vídeo mostrando a homossexualidade como se revelava, entre os homens, no final do puritano século XIX ... e as luzes "estroboscópicas" se derramando sobre o protagonista, desorientando o já desorientado Ludwig.
     A história se passa em um castelo na Baviera, e nos bosques em seu entorno, e traz consigo uma sedução implícita, que nos leva, a passos largos, em direção a algo que, certamente, Ludwig teria desejado viver: o nosso presente. Enfim, a maneira fracionada de nos contar essa historia de desajuste emocional se impõe ao diretor, e aos atores, como a urgência do relato  "romântico-simbolista" da Alemanha do final do século XIX. Vivia-se mal, no pequeno reino da Baviera.
     Deixou-nos "Diários", o jovem rei. "Ser ou não ser" excêntrico? Ludwig não teve escolha. Nasceu artista - e foi considerado louco. Eis uma questão intranquila. Essa historia é nossa conhecida desde os tempos de Visconti e seu Helmut Berger, a reencarnação do rei da Baviera. Mas o surpreendente ator Manoel Madeira (que também traduziu "Ludwig/2", com Lilli-Hannah Hoepner, e produz o espetáculo, com Gustavo Bicalho e Henrique Gonçalves), possui talento e "le physique du rôle" não menos invejável do que Berger, e revelou-se à altura do espetáculo. Não só isso. Há uma confusão de nacionalidades e, às vezes, ficamos estarrecidos com o ator alemão em cena. Há, na realidade, um ator alemão em cena, e trata-se de Andreas Mayer, o "escudeiro" Richard Horning, um dos amantes do jovem rei. Ator convidado que, na desafiante "língua de Göethe" entrega-se à universalidade das cenas (com projeções em português), e a um diálogo com certa liberdade de tempo e espaço, com o seu amado Ludwig.
     Mas o diretor não se contenta com as intervenções no "convencionalismo teatral". A cena movimenta as mais remotas fantasias do ser humano, desde a paixão pela música, teatro (fez encenar em seu teatro particular até peças de Shakespeare), arquitetura, beleza, sexo, razão, emoção! Sim, Ludwig era um homossexual infeliz e sofrido, naquele reino católico em que sua obrigação era dar herdeiros à coroa! O ator segura, com brilhantismo, as passagens do Rei: sua inadequação para a vida.  
     E a entrega dos atores nos transporta a tempos não tão remotos assim. Ludwig II era um artista. O que acontece quando um artista vê frustrados os seus sonhos? Pode surgir um "construtor" de sonhos, como Ludwig com os seus castelos e o patrocínio de carreiras artísticas, como a de Richard Wagner; ou pode surgir um "destruidor" de mundos, como aconteceu com o artista frustrado Adolf Hitler. Sim, Hitler (o monstro fabricado pelo poder), não foi o "único" culpado de todos os horrores acontecidos na IIª Guerra Mundial, e todos nós sabemos disso: a "terra dos poetas, grandes músicos e pensadores" teve os seus capitalistas diabólicos que nos levaram a Hitler. Só para lembrar: von Tyssen (aço); Krupp (armamento); Siemens (gás para as câmaras dos campos de concentração); Hugo Boss (uniformes do exercito nazista); e outros, muitos outros - a serviço de ... um artista frustrado! (são perigosos, os artistas frustrados...).
     Ludwig só fez mal a si mesmo... e também (mas por pouco tempo), à sua doce princesa Sophia. Interpretada pela talentosa (e bela) Suzana Castelo, as sintomáticas aparições da mulher rejeitada vão acendendo... e apagando ... as luzes por onde ela passa: o simples passar de sua frágil (e dançarina) presença  transforma a capacidade da luz. Este é um interessante recurso para contar a  historia de Sophia, e seu afastamento do Rei. Belos momentos. Aliás, "Ludwig/2" traz consigo a virtude de nos dar um bom teatro, trazendo ao espetáculo sensibilidade, paixão, horror.   
     E há uma questão, não abordada no texto de "Ludwig/2", mas que não deixa de ser intrigante: Ludwig, o "construidor" (de castelos), admirava o "Rei Sol", e, a maneira pela qual Luis XIV construía a Arte. O francês também amava a música, o teatro, os castelos... Em conseqüência, o Rei da Baviera, em homenagem ao "Rei Sol", mandou erguer uma quase uma réplica de Versailles, o "Schloss Herrenchiemsee" e, curiosidade suprema, se auto-proclamou o "Rei Lua"! Que personagens interessantes, estes seres fabricados pelo poder!
     O desenho de luz do espetáculo, de Gustavo Bicalho, com suas variações surpreendentes, é de Rodrigo Belay, e a direção de movimento, muito inspirada, é de Paulo Mazzoni. Figurinos e Adereços (adequados e belos) de Fernanda Sabino e Henrique Gonçalves. Cenário: Linda Sollacher e Karlla de Luca. Direção Musical (e de Vídeo) de Daniel Belquer e Caeso.
     A direção, além de segura e transgressora, é feita por um trabalho de grupo muito bem sucedido, incluindo Henrique Gonçalves e Daniel Belquer no conjunto, com Gustavo Bicalho  na regência. A Artesanal Cia. de Teatro (pelo que entendi - não a conhecia), costuma se dedicar ao teatro infantil e de bonecos, mas sua residência artística na Alemanha resultou no atual espetáculo, livre e contemporâneo, a respeito de uma historia irreverente e trágica. É a sua primeira incursão no gênero tragedia, e o que aconteceu, na direção da peça, deu grande autonomia aos atores. Fica-se com a impressão de um trabalho feito a seis mãos: um  Sexteto bem afinado.
     Enfim, foi uma agradável surpresa conhecer a Artesanal Cia. de Teatro. A DESTACAR O GRANDE DESEMPENHO DE MANOEL MADEIRA COMO LUDWIG II - REI DA BAVIERA. Vale à pena assistir a este espetáculo tão bem cuidado e sem pretensão, porém de uma sofisticação sem limites. EM CARTAZ NO "MEZANINO" DO SESC-COPA até dia 27 DE SETEMBRO. NÃO PERCAM