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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

"UM INIMIGO DO POVO"

Os irmãos Stockmann, Tomas, o médico (Marcello Escorel), e Peter, o prefeito (Charles Myara), em  "Um inimigo do Povo", de Herik Ibsen.
(foto Marcelo Carnaval)         

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)


Todo ato é político. Mais político ainda se torna quando é realizado em um Tribunal de Justiça, como é o caso do presente trabalho de direção teatral de Silvia Monte, à frente do Centro Cultural do Poder Judiciario (CCPJ) do Rio de Janeiro. O CCPJ-Rio, como é conhecido, foi criado para investigar o tema do “poder”. Nada mais justo, em se tratando de teatro na Justiça. Porém, este “Um Inimigo do Povo”, do norueguês Henrik  Ibsen, em cartaz no CCPJ, vai além do poder (embora fale a respeito de homens ligados ao poder), e seu principal foco é a corrupção, sua aliada. 
     Entretanto, é preciso analisar o problema, procurando, se for possível, não estabelecer paralelos. Se o fizermos, deixaremos de refletir sobre o assunto, e falharemos ao analisar um problema universal, referente à alma humana. A questão de Ibsen foi justamente colocar um problema, humano, com as suas distorções e limitações, e tentar resolvê-lo do ponto de vista jurídico. A corrupção, no caso, consegue absorver todos os princípios. No programa da peça, diz a diretora Silvia Monte: “Vivemos hoje no Brasil [...] momento em que todos os cidadãos esclarecidos do país tentam acompanhar e compreender o que de fato acontece” – ela refere-se a esse obscuro jogo político de muitas faces, a que fomos apresentados recentemente.   
      Não é o mesmo problema apresentado por Henrik Ibsen. No caso de Ibsen, há o desdém pela verdade, e o interesse particular impera. O caso assemelha-se antes aos grandes julgamentos da História, como foram o de Joanna D’Arc, ou o de Mary Stuart, cujo veredicto já era conhecido, antes mesmo de o julgamento começar. Assim foi com o Dr. Stockmann, proibido de falar, de se fazer entender. Impossível assistir a “Um inimigo do povo” sem tomar partido. Assunto bastante delicado, como podemos constatar. O mais interessante, no trabalho de Silvia Monte, desde os tempos de teatro na Escola de Magistratura, é que ela aponta os erros jurídicos, e deixa para a plateia chegar às próprias conclusões. Sempre foi assim, ao menos nos espetáculos a que me foi dado assistir, como “O Processo”, de Kafka, ou “Os Físicos”, de Dürrenmatt. 
     Ora, sabemos que “Um inimigo do Povo” trata do acobertamento de fatos que podem prejudicar a comunidade, e esse acobertamento é feito, justamente, pelos homens que detém o poder: no caso, o prefeito da cidade, o jornalista e o gráfico, que é também o presidente da Associação dos Moradores do lugar. Portanto, é a burguesia que se coloca contra a iniciativa de um médico honesto, o também burguês Dr. Stockmann (interpretado por Marcello Escorel), preocupado com a saúde da população. Ibsen partiu de um caso exemplar – o envenenamento da água de um povoado, e as consequências maléficas que tal fato pode trazer. A questão acaba envolvendo interesses econômicos de grande vulto. O resultado das investigações do médico é ignorado pelo prefeito e pelos moradores do local, pois os faria arcar com enormes despesas. O problema  detectado pelo médico envolve o encanamento do parque aquático, principal fonte de renda da cidade: eles abrigam água poluída. O médico alerta para o perigo, e se transforma no inimigo numero um da cidade. Está criado o problema.
     O impasse transforma homens cordiais em agressivos defensores do erro. Tal atitude os vai conduzir à fraude e à corrupção. Está aberta a questão: de um lado, o poder; do outro, o ponto de vista humanitário do Dr. Stockmann, o médico, e no meio, o povo do local. Os três homens, de cordiais amigos do médico, e respeitadores de sua comunidade, se transformam em defensores de um ponto de vista  que os levará, fatalmente, ao erro.
     A cena se passa em uma antiga sala do CCPJ, na qual os presos aguardavam seu julgamento. Hoje é a sala multiuso, de 54 lugares, que se transforma em um acolhedor teatro de câmara. No presente espetáculo, a sala multiuso é adaptada em meia arena, onde palco e plateia convivem muito próximas. Assim, podemos observar bem de perto como o médico, um cidadão hospitaleiro e de agradável convivência (Marcello Escorel atuando com simpatia e verdade), recebe os amigos em sua casa. Neste primeiro movimento a situação começa a ser desenhada. A atriz Nedira Campos vive a Sra. Stockmann, doce solidária companheira do médico. É nesta primeira cena que entramos em contato com os personagens de Ibsen. Todos bem desenhados, elenco e diretora  enfatizam o realismo da cena.
     Assim, temos o irmão e cunhado do médico, o Prefeito da cidade, Peter Stockmann, interpretado com arrebatamento por Charles Myara. Enfim, os personagens de Ibsen estão bem representados, e a ênfase é necessária. Lauro Góes surpreende como o sentencioso Morten Kill, e Paulo Japyassu apresenta um desempenho sutil, interpretando o Sr. Aslaksen, o representante do povo (leia-se da burguesia do local), defensor da “moderação”. Ele é o impressor (o gráfico) do jornal A Voz do Povo, editado por Hovstad (interpretado pelo sempre correto Gustavo Ottoni). Há ainda o casal de jovens, a filha do médico, uma senhorita pré-sufragista, Petra Stockmann, à qual a atriz Brenda Jaci dá vida. E o Capitão Horster, uma figura honesta, interpretado por Eduardo Diaz.
     Em um segundo movimento, somos introduzidos a um novo espaço cênico, com a simples troca de posição do mobiliário. Agora o ruído das máquinas  nos faz compreender que estamos em uma redação de jornal. Observamos que é muito agradável ver este tipo de teatro realista acontecendo, de maneira singela, sem a impostação cerimonial, tradição nas montagens de Ibsen. Assim, elenco e espaço cênico apresentam uma saudável disposição para contar essa história, que deixa a nu o comportamento egoísta de alguns personagens. Estabelece-se, entre os atores, um momento teatral que confere verdade ao espetáculo e o torna de fácil entendimento. O público participa atentamente, identificando-se, às vezes, ou repelindo, outras, os acontecimentos do palco. No final, o médico será julgado e condenado como “um inimigo do povo”. A frase final do Dr. Tomas Stockmann, “o inimigo número um” da cidade, é pronunciada com envolvimento por Marcello Escorel, causando impacto: “O homem mais poderoso que há no mundo é o que está mais só”. Esse poder, a que Stockmann se refere, não o leva a jogar com a fragilidade humana, mas à transformá-la. O final fica em aberto. E o público se emociona.    
     O interessante, neste trabalho de Silvia Monte, desde seu início, é a sua determinação de desvendar os perigos do poder. Há sempre um caso a ser julgado, uma opinião a ser defendida. Trata-se do surgimento de algo digno de atenção.
     Na ficha técnica temos cenário e figurinos, bem cuidados, de Ronald Teixeira. Iluminação: José Henrique. Trilha sonora de Silvia Monte, para movimentos de Edvard Grieg em “Peer Gynt”. O espaço é limitado, e a entrada é franca. A finalidade é interessar o público por peças de valor dramático, desenvolvendo o interesse pelo teatro. Trata-se de uma boa iniciativa do CCPJ-Rio. Até 19 de dezembro.                           


domingo, 25 de novembro de 2012

"JACINTA"

Cena de "Jacinta". Texto de Newton Moreno e Aderbal Freire-Filho.
Na foto, Augusto Madeira, Isio Ghelman e Andrea Beltrão
(Divulgação)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Dizem que "essa gente" que, logo que nasce, já vai fazendo um palco em casa e chamando os vizinhos, e as pessoas que encontra na rua, para ver seus espetáculos, são os chamados "atores natos". Bem, no programa dessa inacreditável “Jacinta”, em cartaz no Teatro Poeira, há uma explicação seiscentista sobre esse tipo de gente: são os Cambaleo. É deles que vamos (procurar) falar. Os Cambaleo formam uma companhia que canta, dança e sapateia, em troca de cinco coalhos de queijo, e verduras pra digestão. 
     Essa volta ao teatro puro, a esse narrar sem fim que é “Jacinta”, conta com a presença de cinco "atores natos": a própria Jacinta, interpretada com brilhantismo por Andrea Beltrão, e os quatro companheiros que formam a companhia: eles são Augusto Madeira, Gillray Coutinho, José Mauro Brant, Isio Ghelman e Rodrigo França.
     Ficamos sabendo, pela citação do livro de Rojas Villandrando, de 1604, El Viaje Entretenido (que só poderia ter chegado a nós por intermédio desse Cambaleo-Mór, o diretor Aderbal Freire-Filho), que havia oito tipos de companhias de teatro popular, na época, sendo um deles o “cambaleo". Essa “Jacinta” é um dos "tipos", mas o que faz dela algo tão especial? Vejamos: será  por que conta, à sua maneira arrevesada, o despertar do teatro, no Brasil? Ou será por que se refere, através de toques sutis, ao que acontece no Brasil, nos dias de hoje? Sim, é tudo isso. Mas, e principalmente, porque é uma verdadeira lição de teatro, de interpretação. Comecemos com Jacinta, a camponesa apaixonada por teatro que vai para a capital sonhando em ser atriz. Jacinta vive a sua realidade, e a interpretação de quem a compõe (Beltrão), não faz suspeitar a má atriz que o texto promete. Agora, imaginemos essa mesma camponesa quando se vê em cima de um palco. Aí tudo se transforma. É quando lhe permitem interpretar. É neste momento que há uma transformação radical, e a criaturinha decidida que saiu do campo se transforma em uma nervosa over-acting atriz, "a pior atriz do mundo". Os elementos são de comédia, mas a interpretação de Andrea Beltrão passa por todas as linguagens, e o desamparo de Jacinta é tocante. 
     Mas que linguagens são essas que a peça contém? Há momentos em que ela se transforma em um folhetim. É quando mãe e filha se encontram, embora nada fique revelado. Há sempre essa sutil indefinição que ronda o texto, onde a comédia se une a um cruel tom de farsa, unido a um "se aventurar" desbravador, quase épico. É quando a heroína parte em direção às mais longínquas regiões do país, em busca de seu destino, e vive todas as aventuras, e enfrenta as armadilhas mais terríveis. Esse borbulhar febril de linguagens é a riqueza da peça. Situada em um período histórico que se estabelece como sendo o século XVII, ela oferece, mesmo assim, um descompromissado encontro com o tempo, e estabelece a sua própria cronologia: encontramos um jesuíta (que não é Anchieta), trabalhando com os índios, e o fantasma de Shakespeare (um excelente Isio Ghelman), contracenando com Jacinta e dando-lhe conselhos preciosos que modificarão a sua vida.  Gil Vicente e Antonio José, o Judeu, estão no mesmo pacote, enquanto uma Rainha portuguesa, que pode ter sido inspirada em Maria I, e um Rei que o povo quer assassinar, juntam-se às desditas de Jacinta. A atriz mambembe ficou conhecida, no mundo dos atores!, pela façanha de ter sido a responsável pela morte da Rainha! e por muitas outras aventuras e desventuras. Pobre Jacinta! Ela comete todos estes enganos em nome da sua arte!
      A personagem  fala em montar os “Autos”, embora não tenha muita certeza do que seja isso, e escolhe trechos dos mais lúgubres e pessimistas da literatura Ibérica. A verdade é que, interpretada com absoluta maestria por  Andrea Beltrão, essa Jacinta representa a melhor tradição dos artistas populares da região ibérica. E um grande desafio.  
     Há cenas tão belas, em sua entrega teatral, que dá vontade de rir e de chorar, a quem as assiste.   A camponesa conta: “Na minha aldeia volta e meia / Eu cantava eu dançava eu declamava / na minha aldeia volta e meia / Eu subia num tablado e lá ficava” (letra de Freire-Filho). Eis como fala a a atriz que habita a camponesa. E há esse encontro definitivo com a arte, quando Jacinta encontra o “diretor sublime” que a ensina como  apresentar-se em um palco. O fantasma de Shakespeare mostra-lhe os mistérios do palco, e Jacinta nunca mais será a mesma. A sua fala final nos leva às lágrimas.     
     Difícil essa situação de falar sobre uma obra de arte! Diz o crítico de teatro, interpretado por Isio Ghelman:  “A atriz que interpreta... / Interpreta? /... que transformou nossa noite num naufrágio,/ teve seus três minutos de carreira teatral,/ porque no que depender de mim,/ sua carreira acabou”. (letra de Freire-Filho e Newton Moreno). Existe algo mais autoritário?
     Porém as letras deste “poema musicado sobre o ator”, nas palavras de Newton Moreno, contam a  aventura louca do "mambembar". Nada menos do que a perfeição acompanha esses companheiros do mambembar, nessa aventura de Jacinta. Eles cobrem com euforia e talento sua difícil (e divertida) missão: José Mauro Brant interpreta a grávida torpe, e tantos outros personagens, com tal paixão, que o público adere, com boas risadas. Augusto Madeira desfila seu talento, nos mais variados papéis e  Rodrigo França acompanha-lhe o ímpeto irresistível, seja como o criado da rainha, ou o provador das comidas envenenadas que seriam destinadas ao rei. Isio Ghelman interpreta a Rainha, com absoluto despudor. Nunca o assisti tão solto em um papel. E Gillray Coutinho, o premiado ator de Aderbal,  interpreta Gil Vicente e principalmente o coveiro/ator "cambaleo" perdido nos fundões do Brasil.
     Há os músicos, “Os Jacintas” que acompanham a função do que se convencionou chamar de uma comédia-rock. Essa “trupe” do balcão é formada por Mauricio Coringa (guitarra, violão e bandolim); Tássio Ramos (baixo); Ricardo Rito (teclados); Helio Ratis (bateria), executando as músicas de Branco Mello (direção musical). E, por falar em Mello, há uma parceria com Emerson Villani que não pode ser esquecida. Branco se entusiasma (o que é válido, em se tratando de “Jacinta”), e dedica: “Ai meu deus lá vem Jacinta. / Essa menina pinta e borda./ Que mania de cantar que mania!!! [...]  e festeja: “O Teatro e a Música!!!/ A Música e o Teatro!!! / Que felicidade!!!”
     Uma equipe técnica brilhante desenha o sucesso! João Saldanha na coreografia, em parceria com Marcelo Braga. No cenário: de Fernando Mello da Costa! com suas superposições de objetos de cena que vão sendo utilizados durante o espetáculo. As soluções de Fernando sempre são absolutamente criativas e se adaptam à cena como se tivessem nascido com elas (e nasceram...). Os figurinos, muito bons, são de Antonio Medeiros. Na luz, Maneco Quinderé! Precisa dizer mais, para quem quer um espetáculo afinado? E prosódia! Sim, os atores falam um português... de Portugal! Vão fazer temporada por lá, certamente, pois a sua história é a continuação de outra, e “A Barraca” portuguesa não me deixa mentir. Pois a prosódia é de Iris Gomes da Costa. “Jacinta” consegue mexer com  o nosso tempo, com as sutis, e rápidas, citações de nossas mazelas. Aconselha-se essa "Jacinta" do teatro Poeira!         

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

"LAR LONGE LAR"

Atores de "Lar Longe Lar" - Rafael Ferrão (Efraim); José de Ipanema (José); Nina Reis (Berta).
No primeiro plano: Diego Araujo (Simão); Thiago Freire (Manuel); Raquel Tamaio (Helena)
(Foto Divulgação)  


CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)

Em temporada até dia 16 de dezembro, no Solar de Botafogo, “Lar Longe Lar”,  uma comédia dramática a respeito da imigração de uma família judia vinda da Polônia, nos anos 30, que escolhe o Rio de Janeiro para escapar do furacão nazista que se aproxima. Escrita pela dramaturga Miriam Halfim, é um relato verídico de acontecimentos que antecederam a II Guerra Mundial, com um ramo de sua família, cuja tia, Berta Loran, muito menina ainda, era uma das refugiadas. “Lar Longe Lar” é dirigida, com precisão e  sensibilidade, por Gilberto Gawronski, que trabalha cinco atores vindos de experiências e escolas as mais e variadas: a atriz que faz Helena, a mãe (Raquel Tamaio), é formada pela EAD, de São Paulo e trabalhou como atriz e orientadora no grupo de Cacá Carvalho e Roberto Bacci (da Fondatione Pontedera de Teatro), em São Paulo. Rafael Frazão é oriundo da CAL/RJ, e interpreta o primo Efraim, que reside em Buenos Aires,  e o patriarca Arão, morador de Varsóvia. Frazão consegue um bom rendimento na dupla interpretação. Como a peça é um vai-e-vem entre Brasil e Polônia, há boas ocasiões para ele demonstrar seu talento. Nina Reis, que interpreta Berta (a própria Berta Loran),  é uma atriz que possui grande carisma e consegue transmitir, sem dramas, esse viver no “fio da navalha” que é relatado na peça.
     Os primeiros contatos de Berta em sua nova pátria, o Brasil, já apontam para uma carreira de sucesso da própria Berta Loran, no teatro. Ainda que estes contatos tenham se iniciado no teatro amador, ainda que muito menina, seu futuro está traçado. José de Ipanema interpreta o pai de Berta, José, um apaixonado pelo teatro, que inicia a filha na carreira. Há ainda o irmão menor, Manuel, interpretado com entusiasmo por Thiago Freire, e o filho Simão, o mais juisch de todos, tem Diego Araujo a dar-lhe vida. Neste “meio de campo” entre a tragédia e a ação cômica, os cinco atores conseguem equilibrar o que poderia ser um angustiante relato. 
     A autora Miriam Halfim, com o vai-e-vem que deu à sua narrativa, consegue prender o público e fazê-lo torcer para que tudo dê certo. Há, entre os membros da família, pessoas que acreditam na tragédia iminente, e outras que relutam em aceitar o pesadelo que envolveria a Europa. A ação constante faz-nos entrar naquele período de triste lembrança, porém não há o habitual clima negativo envolvendo o relato. Ilustrando a ação, estão os bem desenhados do perfil da “mãe judia”, do marido amoroso, e das rusgas por amor, que se aprofundam e podem ser trágicas, naquele povo que se tornou unido pela esperança e desamparo. Aliás, a esperança é o tema dominante, na historia que ouvimos contar. Complementando o texto de Halfim, o cenário e figurinos de Ney Madeira, Dani Vital e Pati Faedo acentuam o toque de realidade do texto. As inscrições em hebraico - marcas de um povo – acentuadas pelas “passagens” do cenário, com seus  planos diferenciados para localizar o país, e o tempo em que se passa a ação, tornaram-se excelentes recursos para reforçar a dinâmica do texto. A luz de Paulo César Medeiros complementa os ambientes, e a trilha sonora de Warley Goulart dá vida à época dos acontecimentos. As músicas são trechos de interpretações de Carlos Gardel (quando José visita seu primo e tenta se estabelecer em Buenos Aires), ou em visita  ao Rio de Janeiro, destacada a região por trechos de músicas na voz de Francisco Alves, Vicente Celestino, ou Carmem Miranda, entre outros. E, para nossa surpresa, encerrando o espetáculo, a interpretação da famosa canção brasileira, “Asa Branca” em hebraico!
     Podemos considerar o texto de Miriam Halfim como uma volta “ao contrário” do que aconteceu com Anne Frank e seus familiares, na Holanda. Os que ficaram na Polônia, no texto de Halfim, foram o patriarca Arão e o filho mais velho de Helena e João, Simão (interpretado por Diego Araujo) e sua esposa e filho (eles só são citados, na historia), que não tiveram a mesma chance. Os cinco atores formam hoje (salvo engano) o grupo “Poeira de Teatro”. Eles trazem, para o espetáculo, além do adequado phisique du rôle, a correta compreensão do núcleo familiar tão específico como é o da “família judia”. Às vezes ficamos com a sensação de que estamos vendo, em teatro, o que Woody Allen nos deu, no cinema, ou seja, essa maneira muito específica de se relacionar, que os judeus possuem. Embora transmitidos com naturalidade, os sentimentos exacerbados desse povo causam estranheza e divertem os “goys”. 
     Interessante entrar nesse mundo de verdades estabelecidas e amores solidários. É uma lição de solidariedade familiar, embora, no presente, este sentimento esteja  deturpado, em relação a alguns grupos humanos. Mesmo assim, vale a pena assistir a este espetáculo, para lembrar que os bons sentimentos do passado estão aí, no teatro, e podem voltar ao mundo real, a qualquer momento: a guerra foi, e sempre será, o flagelo da humanidade. “Lar Longe Lar” é uma história difícil de contar, na qual se misturam aspectos sociológicos e políticos que não podem ser esquecidos. Aconselha-se veementemente dar uma conferida neste espetáculo.            

sábado, 17 de novembro de 2012

" A TEMPESTADE"

               "A Tempestade", de Shakespeare, pela companhia PeQuod. Atriz Mariana Fausto (Ariel)
                                                             (Foto divulgação)



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     Em cartaz no Teatro do Jockey até dia 16 de dezembro, “A Tempestade”, de William Shakespeare, tradução de Geraldo Carneiro; direção Miguel Vellinho e Miwa Yanagizawa; dramaturgia e adaptação de Izadora Schettert, em trabalho conjunto com os diretores. Marcos Nicolaiewsky é o artífice dos objetos em cena. O projeto é do PeQuod.
     Trata-se de um Shakespeare “de animação”, por isso estabelecemos nesta crítica, como primeiro passo, as atividades pré-cênicas citadas acima, e que tanto influenciam a cena. O resultado, inusitado para um Shakespeare, é um espetáculo ilustrado pelos movimentos brevíssimos de uma performance oriental. Embora tal afirmação possa parecer estranha, tudo no espetáculo, desde as ondas do mar, as árvores na mata, as embarcações na tempestade, os jogos - são trabalhos tão delicados (executados em papel) que,  unidas a sons e luzes, e ao desempenho dos atores, provocam sensações que nos remetem a uma realidade  além da nossa, influenciada que é pelo teatro ocidental, a uma realidade poética e agressiva tão... oriental! É o “teatro”, muito além da palavra. Parece estranho, em se tratando de Shakespeare, que a palavra não se transforme no domínio da ação. Nesta fantasia de sons, luzes e sombras há o esboço de um teatro oriental que, segundo as palavras de Yun-Cheol, presidente da AICT – “não fornece uma versão da realidade, mas uma espécie de jogo, em que o “estilo” é mais importante do que a “narrativa”.  
     Não estamos querendo dizer, com isso, que a narrativa de Shakespeare não seja estrutural, porém, neste caso, ela não é dominante, está integrada a outros fatores que a compõe, independentes dela. Daí o mistério de sua proposta. Ariel, por exemplo, aquele ser da floresta (bela interpretação de Mariana Fausto), não tem compromisso com a palavra, mas com os gestos. É um espírito encantado. Ele depende muito mais da concepção de quem o apresenta. Há vários Ariel..., porém o de Vellinho e Miwa,  desenvolvido por Mauricio Durão - através de sua trilha sonora - e por Renato Machado, através da luz, provoca um bem sucedido encantamento, em sua transposição para a cena. Esse é um fator de “estilo”. 
     Há, na cena em geral, um envolvimento mágico - e a constatação de como é simples realizar coisas belas. Essa montagem talvez tenha sido a mais delicada e verdadeira, das versões a que já me foi dado assistir. Próspero, por exemplo, o destronado duque de Milão (interpretado com carisma por André Gracindo) tem aparições e desaparecimentos súbitos – proporcionados pela luz e pelo ângulo em que o ator se projeta - na cena.  Esses recursos são testemunhos de sua integração e da vivência misteriosa que ele estabelece na ilha em que está condenado a viver (e o faz por um longo tempo). Há uma hierarquia (amorosa), criada por ele, onde não impera a ameaça do tirano. Como a magia comanda a sobrevivência na ilha, e o poder da magia, que Prospero domina, está acima da vida e da morte, ele precisa somente dominá-la, para ser respeitado. 
      Ariel se torna uma espécie de secretário de Prospero, e aceita a perda provisória de sua liberdade. Ele, que é o espírito livre da floresta, aceita  colaborar com o Bem, no momento devido. A hierarquia, estabelecida por Próspero, na ilha, após o naufrágio, é obedecida por todos, inclusive pela doce e decidida Miranda, sua filha (interpretada com verdade por Raquel Botafogo), e também por Caliban (um excelente Paulo Giannini), o gênio do Mal, que serve a contragosto a seu senhor, até se aproximar de outro ser, que considera mais poderoso do que Prospero. Grotesco, primitivo e bajulador, Paulo Giannini se sai muito bem do desafio.   
      Como sói acontecer, nas peças de Shakespeare, os “representantes do povo”, tão queridos ao autor, também aparecem em “A Tempestade” nas figuras do “jester” Trúnculo (Liliane Xavier em hilária e competente interpretação), e o drunken “Butler” Estefano (Gustavo Barros, também entregue positivamente ao papel). A ilha é um mundo, no qual todos os sentimentos se manifestam. Há inveja, intriga, amor (a cena do enamoramento de Miranda com o filho do rei de Nápoles, Fernando (Miguel Araujo) é sutil e cheia de encantamento. Há momentos de grande beleza, nesta montagem. Mas, e principalmente, devemos destacar a sua singeleza, seja nos figurinos (destaque para o de Ariel) de Daniele Geammal; na ação, ou no cenário (Carlos Alberto Nunes). A equipe técnica é responsável pela magia em cena, tendo na iluminação de Machado o seu ponto forte. Há, na cena, o predomínio dos tons pastéis, o que dá a ela a aparência de fatos acontecidos em “um longo tempo atrás”, estabelecido pelas sombras de Cisko Dis, e o cenário de Carlos Alberto Nunes.  
     Enfim, a história de “A Tempestade” é bem conhecida: um irmão usurpa o trono ao herdeiro e o abandona em um barco, para morrer em pleno oceano, na companhia de sua filha Miranda. Mas o pai, Prospero, conhecedor das magias da natureza e da força dos seres da floresta, se comunica com eles. O representante nefasto dessas forças é Caliban. Em resumo, Shakespeare fala em traição e, também em perdão e amor. Este aparece quando o rei de Nápoles, que também naufraga na ilha (ação de Prospero?), possibilita a Miranda conhecer um jovem, Fernando, o filho do rei.  Eles se apaixonam e tudo acaba bem.  No final da peça, Ariel é devolvida a seu reino na floresta, e Caliban tem nova oportunidade na vida. E o traidor irmão do duque, Antonio (Gustavo Barros), recebe o perdão de Prospero. Pedro Florim e Tales Coutinho fazem pequenas intervenções como os lordes e o velho amigo e defensor de Prospero no reino.       
     Para encerrar, a bela frase do duque de Milão: “a vida é feita do material de que são feitos os nossos sonhos” (desculpem a tradução de memória), frase chave na peça: a mais reconhecida. Pois ela quase é perdida, ao menos no dia em que assisti, tal a surpresa de Prospero, ao perceber que alguns de seus súditos (os da plateia), não a conseguiam captar. A delicadeza nos impede de mencionar a falha (do público), mas o certo, "meu doce Shakespeare", é que às vezes jogamos ao desconhecido os nossos sonhos mais amados, e os vemos cair no vazio. O duque de Milão perdeu o arroubo, e quase a elegância, ao pronunciar a bela frase. E essa foi a única grande perda, no dia em que assisti "A Tempestade". Mas a arte é assim mesmo, cheia de altos e baixos. Um consolo: foi único senão do ator André Gracindo, em um  trabalho de personagem tão bem desenvolvido. Conclusão: há um longo caminho a percorrer até o dia em que o "sonho" seja reconhecido, e  encontrado, por pessoas que nele acreditam. É para estas pessoas que  indico “A Tempestade”, do PeQuod, um espetáculo de beleza singela.      






segunda-feira, 5 de novembro de 2012

"TRILOGIA CARIOCA"




Antunes Filho, criador de "Trilogia Carioca" - CPT - Sesc São Paulo
(foto Divulgação)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

O Grupo Macunaíma, do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), Sesc São Paulo, apresentou-se no 
Rio de Janeiro com a Trilogia Carioca: composta por 'Policarpo Quaresma', 'Foi Carmen' e 
'Lamartine Babo'. Antunes Filho não esteve conosco, mas foi representado por cerca de 30 atores 
do grupo, e alguns membros da equipe técnica.  Tudo aconteceu entre os dias 7 e 30 de 
outubro de 2011. Estamos rememorando essa visita. Tentaremos recuperar o que aconteceu.
     O espetáculo que abriu a Trilogia, 'Policarpo Quaresma', é uma reconhecida homenagem ao 
talento do escritor Afonso Henriques de  Lima Barreto (com este nome parece um nobre 
português, mas era um pobre filho de escrava com português, vivendo as consequências 
de tal nascimento, sem a sorte de Machado de Assis). Os três espetáculos mostraram ser 
inesperadas leituras de nossa situação como Nação, pois é de política que vamos tratar.
  Principalmente em 'Policarpo Quaresma', no qual Antunes Filho enfatiza a leitura crítica 
dos acontecimentos desde a, digamos assim, "expulsão" de D. Pedro II por seu amigo 
pessoal, Deodoro da Fonseca. Depois o Marechal ainda tentou aprontar algumas, como o 
golpe de Estado que dissolveu o Congresso, mas não foi bem sucedido e teve que renunciar. 
Isso Antunes não conta, mas deixa no ar a sandice humana e a sua representação, com todos 
aqueles marechais, generais e civis, que se estabeleceram com a assim chamada 'Res Pública', 
que de 'pública' não tinha nada, era só negociata mesmo. 
     Desculpem o arrebatamento, mas é o que se depreende dos escritos de Lima Barreto. Mas 
vamos com calma, o diretor/poeta assim ensina, e vai mostrando, através do "visível" 
(cenas inesquecíveis dos embates de Policarpo com a realidade), e do invisível, este por 
conta da poética do diretor e da nossa imaginação, os acontecimentos da época. 
Indescritíveis, mas verdadeiros.  Antunes parece apreciar o mistério, e este se estabelece 
com o romantismo/simbolismo de Lima Barreto, apresentando a doce Ismênia, a virgem que 
morre de amor, em uma cena romântica que Antunes reproduz, conduzindo o público ao pré-modernismo (e à solidão) de Policarpo Quaresma. 
     Explico: Lima Barreto viveu essa passagem da literatura, e, como Alphonsus de Guimarães, escolheu  "Quando Ismênia enlouqueceu...", e o simbolismo de sua respiração contida abriu 
espaço para a mais aterradora solidão. Destaque para a interpretação de Natalie Pascoal. É um 
tempo em que se morria de amor. A rápida, mas eloquente, sequência da mascarada após o 
romântico enterro de Ismênia, o personagem de Antunes, mostra ao público algo desafiador. 
Deboche? Loucura? É a única quebra na fluidez do espetáculo, não sabemos se ocasionada por 
alguma passagem ainda por trabalhar. Enfim...
     Não ser fácil pensar o processo de criação de Antunes Filho. Desde o primeiro gesto, em 
'Policarpo Quaresma', quando personagens histriônicos estendem um trilho branco sobre o 
palco e começam, através de gestos, a contar a história, percebemos sempre um fio, ou um gesto, 
que arremata os acontecimentos, reconduzindo-nos ao romance. Trata-se de uma sofisticada 
tessitura.
     Também na cena em que o funcionário Policarpo, o "major", confronta-se  com o 
"marechal"  Floriano Peixoto, constatamos a coragem de Lima Barreto ao se reportar, no 
início do século XX (o livro saiu em 1915), a acontecimentos tão próximos a ele. Sim, era ficção 
mas, como sabemos, o autor narrou, de maneira explícita, coisas da jovem República. O encontro 
entre os dois personagens escancara o caráter perverso do marechal (interpretado por Marcos 
de Andrade) e a integridade de Quaresma (Lee Taylor). Essa cena, traduzida por Antunes Filho, é 
uma das grandes narrativas teatrais de nossa época.
     Já no início do espetáculo assistimos, deliciados, ao embate do herói (Taylor), com as raízes 
tupi de nossa gente e, na sequência, constatamos que a excentricidade habita os justos - e tememos 
por eles - pois são os justos que acabam, sempre, pagando a conta. Da encenação nos ficou 
ainda a memória de Olga, a afilhada de Policarpo, possuidora de consciência política 
(Priscila Gontijo); de Adelaide, a irmã devotada de Quaresma (Angélica Colombo); e de Anastácio, 
o ex-escravo (Geraldo Mário). Há o violeiro Ricardo Coração dos Outros (André de Araújo) 
e, principalmente, Policarpo Quaresma, interpretado por Lee Taylor, ator surpreendente que 
completa o texto com o olhar. Elenco inspirado. Aliás, percebe-se que os atores também 
inspiram Antunes Filho, estabelecendo um caminho de mão dupla. E não podemos esquecer 
o já famoso sapateado de Taylor, quando Policarpo tenta eliminar as saúvas do seu sítio Sossego. 
Há mais, muito mais, além das saúvas, rondando este trágico e ingênuo patriota.
     Impossível deixar de observar a força do elenco, o que comprova o vigor do Grupo 
Macunaíma e do CPT. Há atrizes deslumbrantes, pela beleza e talento, e atores 
expressivos que colaboram com uma entrega entusiasmada para o resultado final. Quem 
não viu o espetáculo e ainda não leu 'O Triste Fim de Policarpo Quaresma', por favor, o faça. 
Fica-nos a turbulenta passagem do século XIX para o século XX, e a Trilogia continua, 
com 'Foi Carmen', concebido por Antunes Filho como um poema e uma denúncia a respeito 
do olhar estrangeiro sobre nós. A visão crítica do diretor continua. Critica, poesia e mistério são 
os seus elementos.
     O que representou Carmen Miranda, realmente? O 'mistério' se estabelece com a estranha 
presença de uma Carmen sem rosto (Emilie Sugai), e a forte proposta de seus movimentos. 
O malandro carioca a tudo observa, com seus olhos atônitos (Lee Taylor). Há 
também a instalação/cenário de J.C.Serroni, no qual turbantes, sandálias, bananas, pulseiras, 
colares, caixas e infinitos adereços levantam questões e estabelecem a  estética do espetáculo. 
'Foi Carmen' vive também da trilha sonora de Raul Teixeira. A única certeza que nos fica 
é a atualização da artista, envolvendo os passos da menininha (Mariah Teixeira), e da 
desinibida passista, interpretada por Patrícia Carvalho. Mas a interrogação permanece.
     A seguir, 'Lamartine Babo', texto, corpo e voz de Antunes Filho e sua capacidade de despertar 
em seus atores os mais variados talentos. Dessa vez a direção é de Emerson Danesi, e a 
direção musical de Fernanda Maia. Os figurinos (do início do século XX) e adereços são de 
Rosângela Ribeiro. Há precisão no tratamento dos detalhes.
    O espetáculo se desenvolve em cena única, em um galpão de ensaio, com os atores formando 
um conjunto musical, cantando as músicas de Babo e tocando instrumentos. Ele nos traz 
algumas surpresas, a principal delas é perceber que Lamartine Babo, tão pouco conhecido 
dos brasileiros (sabemos apenas de suas marchinhas de carnaval), nos remete à linguagem 
universal de Cole Porter. Sim, algumas de suas marchinhas podem ser comparadas, pelo 
seu charme, às composições do americano. Querem ver?
"A vitória vai ser tua, tua, tua, moreninha prosa/ Lá no céu a própria lua, lua, lua, não é mais 
formosa... (etc)/ o inglês diz yes, my baby/ o alemão diz ya, coração,/ o argentino, ao te ver tão 
bonita, toca um tango e só diz "milonguita"/ e o chinês diz que diz, mas não diz..." (e por aí vai). 
Eles foram contemporâneos e a singeleza de Lamartine lembra "You're to Top/ you're the 
Colosseum/ you're the top/ you're the Louvre Museum/". Claro, as referências de Porter são as 
de um mundo mais sofisticado, e suas músicas são mais elaboradas, mas o espírito de 
algumas composições é o mesmo, brincalhão e apaixonado.
    Perdão. A crítica se assemelha ao misterioso Silveirinha (novamente o ótimo Marcos de 
Andrade), o personagem apaixonado por Lamartine Babo. É difícil resisti-lo. Neste verdadeiro 
"ensaio em cena" que é o espetáculo em homenagem ao compositor carioca, surpreende a 
afinação do elenco (e, às vezes, a desafinação proposital). 
    Resumindo: 'Lamartine Babo' é peça ágil, elegante, e também uma brincadeira misteriosa: 
quem é, verdadeiramente, Silveirinha? Uma reencarnação de Lamartine Babo? E sua afilhada 
de voz magnífica? Podemos acrescentar que os atores seguem o refinamento do início do 
culo XX, mimetizando expressões levemente aportuguesadas, e a delicada maneira de falar 
de nossos irmãos d'além mar. 

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"É CULPA DA VIDA QUE SONHEI E DOS SONHOS QUE VIVI"

Elenco da peça "É culpa da vida que Sonhei e dos sonhos que VIVI", de Iuri Kruschewsky
(foto Black Ninja)





CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Quando a peça começa, pensamos que se trata de uma espécie de "Pelo Amor de Deus, Não Fala assim Comigo!", de Maria Carmem Barbosa. O assunto é o mesmo, um escritor que define a ação da peça conforme a vai escrevendo. A peça dentro da peça?  Há outras que já experimentaram esse caminho. É um percurso difícil e há de ser bem definido. O de "É culpa da vida que Sonhei ou dos sonhos que Vivi" parece ser a comunicação com a  plateia. Por que? Porque, além de ser essa a intenção inicial do autor, a participação com a plateia irá dar alguma identidade ao espetáculo: moderno? pós-moderno? psicológico? Veremos.
     Até que a ideia é simpática, porém ainda não amadureceu, não é esse o momento de entregá-la à plateia, à crítica.  O andamento ainda é o de uma ação inacabada. Muito ensaio, muitos cortes virão. Muita calma, ainda, para considerá-la pronta. Essa "É culpa da vida que Sonhei ou dos sonhos que Vivi", escrita e dirigida por Iuri Kruschewsky (com esse nome eu pensaria duas vezes antes de apresentar algo que se quer revolucionário!), está no Glaucio Gil, com sabor de incerteza. No início, surpreende-nos aquele ator que quer nos levar para Buenos Aires (daí a participação com a plateia), depois percebemos que ele quer nos colocar no espetáculo, nos fazer participar da história dele - no melhor estilo dos anos 70, teatro participativo - contudo, uma participação  equivocada. Porque malandra? Porque habitante do inconsciente do autor? Não. Até aí tudo bem, nada contra o inconsciente.  
    Ficamos sabendo, também, que tudo o que acontece em cena é dedilhado na imaginação do "outro". Algo começa a se delinear, mas por que não aprofundar o desejo? Não deixá-lo na superfície. Há ambiguidades, sim. Mas por que será que elas, ao invés de dinamizarem a ação, a enfraquecem? Dou a resposta: porque elas não fixam os acontecimentos. Como não há timming teatral, não há envolvimento, não há profundidade. Está em jogo algum sentimento? Não parece.    
     Perdão, mas o fato é que assistimos indiferentes a algo que se inscreve, na cabeça do autor, e se propõe a viver, na cabeça dos atores. Ficamos em dúvida se aquilo não é apenas a preparação para algo, alguma coisa que vai acontecer, depois. Se ao menos houvesse uma razão oculta para viver, em dois planos, uma situação tão corriqueira! Sugiro, para "esquentar a história", que a incansável mulher de vermelho seja a irmã dele, do autor, a que lhe aparece em sonhos! Seria mais rodriguiano...ao menos.
      Esperamos uma nova incursão de Iuri na dramaturgia. É prematuro, ainda, qualquer julgamento, só fizemos algumas observações. Atores: Bruno Quaresma, Kelly Iranzo, Manoel Madeira, Marianna Pastori. Iluminação: João Gioia; Figurino: Ticiana Passos; Cenário (um bom espaço cênico), de Carlos Augusto Campos. Coreografia: Luiza Azeredo; Sonoplastia: Pedro Poema; Produção: Gustavo Rodrigo Herdt.