(Foto divulgação)
CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Em cartaz no Teatro do Jockey até dia 16
de dezembro, “A Tempestade”, de William Shakespeare, tradução de Geraldo
Carneiro; direção Miguel Vellinho e Miwa Yanagizawa; dramaturgia e adaptação de
Izadora Schettert, em trabalho conjunto com os diretores. Marcos Nicolaiewsky é
o artífice dos objetos em cena. O projeto é do PeQuod.
Trata-se de um Shakespeare “de animação”,
por isso estabelecemos nesta crítica, como primeiro passo, as atividades
pré-cênicas citadas acima, e que tanto influenciam a cena. O resultado,
inusitado para um Shakespeare, é um espetáculo ilustrado pelos movimentos
brevíssimos de uma performance oriental. Embora tal afirmação possa parecer
estranha, tudo no espetáculo, desde as ondas do mar, as árvores na mata, as
embarcações na tempestade, os jogos - são trabalhos tão delicados (executados
em papel) que, unidas a sons e luzes, e ao desempenho dos atores,
provocam sensações que nos remetem a uma realidade além da nossa,
influenciada que é pelo teatro ocidental, a uma realidade poética e agressiva
tão... oriental! É o “teatro”, muito além da palavra. Parece estranho, em se
tratando de Shakespeare, que a palavra não se transforme no domínio da ação.
Nesta fantasia de sons, luzes e sombras há o esboço de um teatro oriental que,
segundo as palavras de Yun-Cheol, presidente da AICT – “não fornece uma versão
da realidade, mas uma espécie de jogo, em que o “estilo” é mais importante do
que a “narrativa”.
Não estamos querendo dizer, com isso, que
a narrativa de Shakespeare não seja estrutural, porém, neste caso, ela não é
dominante, está integrada a outros fatores que a compõe, independentes dela.
Daí o mistério de sua proposta. Ariel, por exemplo, aquele ser da floresta
(bela interpretação de Mariana Fausto), não tem compromisso com a palavra, mas
com os gestos. É um espírito encantado. Ele depende muito mais da concepção de
quem o apresenta. Há vários Ariel..., porém o de Vellinho e Miwa,
desenvolvido por Mauricio Durão - através de sua trilha sonora - e por
Renato Machado, através da luz, provoca um bem sucedido encantamento, em sua
transposição para a cena. Esse é um fator de “estilo”.
Há, na cena em geral, um envolvimento
mágico - e a constatação de como é simples realizar coisas belas. Essa montagem
talvez tenha sido a mais delicada e verdadeira, das versões a que já me foi
dado assistir. Próspero, por exemplo, o destronado duque de Milão (interpretado
com carisma por André Gracindo) tem aparições e desaparecimentos súbitos –
proporcionados pela luz e pelo ângulo em que o ator se projeta - na cena.
Esses recursos são testemunhos de sua integração e da vivência misteriosa
que ele estabelece na ilha em que está condenado a viver (e o faz por um longo
tempo). Há uma hierarquia (amorosa), criada por ele, onde não impera a ameaça
do tirano. Como a magia comanda a sobrevivência na ilha, e o poder da magia,
que Prospero domina, está acima da vida e da morte, ele precisa somente
dominá-la, para ser respeitado.
Ariel se torna uma espécie de
secretário de Prospero, e aceita a perda provisória de sua liberdade. Ele, que
é o espírito livre da floresta, aceita colaborar com o Bem, no momento
devido. A hierarquia, estabelecida por Próspero, na ilha, após o naufrágio, é
obedecida por todos, inclusive pela doce e decidida Miranda, sua filha
(interpretada com verdade por Raquel Botafogo), e também por Caliban (um
excelente Paulo Giannini), o gênio do Mal, que serve a contragosto a seu
senhor, até se aproximar de outro ser, que considera mais poderoso do que
Prospero. Grotesco, primitivo e bajulador, Paulo Giannini se sai muito bem do
desafio.
Como sói acontecer, nas peças de
Shakespeare, os “representantes do povo”, tão queridos ao autor, também
aparecem em “A Tempestade” nas figuras do “jester” Trúnculo (Liliane Xavier em
hilária e competente interpretação), e o drunken “Butler” Estefano (Gustavo
Barros, também entregue positivamente ao papel). A ilha é um mundo, no qual todos
os sentimentos se manifestam. Há inveja, intriga, amor (a cena do enamoramento
de Miranda com o filho do rei de Nápoles, Fernando (Miguel Araujo) é sutil e
cheia de encantamento. Há momentos de grande beleza, nesta montagem. Mas, e
principalmente, devemos destacar a sua singeleza, seja nos figurinos (destaque
para o de Ariel) de Daniele Geammal; na ação, ou no cenário (Carlos Alberto
Nunes). A equipe técnica é responsável pela magia em cena, tendo na iluminação
de Machado o seu ponto forte. Há, na cena, o predomínio dos tons pastéis, o que
dá a ela a aparência de fatos acontecidos em “um longo tempo atrás”,
estabelecido pelas sombras de Cisko Dis, e o cenário de Carlos Alberto Nunes.
Enfim, a história de “A Tempestade” é bem
conhecida: um irmão usurpa o trono ao herdeiro e o abandona em um barco, para
morrer em pleno oceano, na companhia de sua filha Miranda. Mas o pai, Prospero,
conhecedor das magias da natureza e da força dos seres da floresta, se comunica
com eles. O representante nefasto dessas forças é Caliban. Em resumo,
Shakespeare fala em traição e, também em perdão e amor. Este aparece quando o
rei de Nápoles, que também naufraga na ilha (ação de Prospero?), possibilita a
Miranda conhecer um jovem, Fernando, o filho do rei. Eles se apaixonam e
tudo acaba bem. No final da peça, Ariel é devolvida a seu reino na
floresta, e Caliban tem nova oportunidade na vida. E o traidor irmão do duque,
Antonio (Gustavo Barros), recebe o perdão de Prospero. Pedro Florim e Tales
Coutinho fazem pequenas intervenções como os lordes e o velho amigo e defensor
de Prospero no reino.
Para encerrar, a bela frase do duque de
Milão: “a vida é feita do material de que são feitos os nossos sonhos”
(desculpem a tradução de memória), frase chave na peça: a mais reconhecida. Pois ela quase é perdida, ao menos no dia em que assisti, tal a surpresa de Prospero, ao
perceber que alguns de seus súditos (os da plateia), não a conseguiam captar. A
delicadeza nos impede de mencionar a falha (do público), mas o certo, "meu
doce Shakespeare", é que às vezes jogamos ao desconhecido os nossos sonhos mais
amados, e os vemos cair no vazio. O duque de Milão perdeu o arroubo, e quase a
elegância, ao pronunciar a bela frase. E essa foi a única grande perda, no dia em que assisti "A Tempestade". Mas a
arte é assim mesmo, cheia de altos e baixos. Um consolo: foi único senão do ator André Gracindo, em
um trabalho de personagem tão bem desenvolvido. Conclusão: há um longo caminho
a percorrer até o dia em que o "sonho" seja reconhecido, e encontrado, por
pessoas que nele acreditam. É para estas pessoas que indico “A
Tempestade”, do PeQuod, um espetáculo de beleza singela.
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