Renan Monteiro (Bituca), Edson Oliveira (Sargento) e Kizi Vaz (Tiana), em "Bandeira de Retalhos" (foto de Ricardo Gama) |
CRÍTICA DE TEATRO
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Em cartaz no Teatro Maria Clara
Machado, "Bandeira de Retalhos", texto de Sérgio Ricardo, encenada
pelo grupo Nós do Morro. A direção é do fundador do grupo, Guti Fraga, com
Fátima Domingues. Direção musical, Sérgio Ricardo. O espetáculo é uma homenagem
a Fred Pinheiro, um dos fundadores do Nós do Morro, e aos 25 anos de atividade
do grupo. Comemora-se também os 80 anos de Sérgio Ricardo, o conhecido músico,
morador do Vidigal há pelo menos 30 anos. "Bandeira de Retalhos" é
vida real e é História, com H maiúsculo. O episódio de remoção dos barracos, na
década de 70, foi uma tentativa do
governo dos militares de desestabilizar a comunidade e entregar uma parte do
morro (a com vista por mar), para a iniciativa privada. História pura, a da resistência
e da paixão do povo do Vidigal. A organização da comunidade, a Associação de
Moradores se fortalecendo, teve início ali, naquele instante.
Impossível entrar na História sem se
emocionar. Resumindo: ao mesmo em tempo que o autor conta o episódio vivido por
ele, o da remoção do seu barraco (na ocasião o artista era morador do
"Lado do IPTU", como eles chamavam os da "Estrada do Tambá"),
mas acabara de mudar-se para um barraco, para viver o contexto do roteiro de "Zelão". O artista ficou mobilizado
pela arbitrariedade do governo da época (o dos milicos), e não saiu mais de lá,
lutando por justiça junto com os moradores. Na peça, o seu personagem é Tuim,
interpretado pelo próprio filho, o músico e ator João Gurgel. Tuim entrega para
o engenheiro (Danilo Batista) a chave do apartamento que acaba de receber para
se mudar para Antares, Zona Oeste do Rio. Nenhum dos moradores do Vidigal
queria se mudar para lá, mas foi o músico Tuim quem verbalizou esse desejo da
comunidade, de permanecer, de ficar: "aqui está a chave do ap, pode ficar
com ela, dá pro prefeito, pro governador, pro presidente da República, daqui eu
não saio não". E assim foi deflagrado o movimento. Todos de lá aderiram.
Ou quase todos...
O que mais encanta em "Bandeira de
Retalhos", além do tema, é a sua concepção de opereta: ilustrando cada
movimento da história, uma música: "Passarim Currupião", que encontra
a corruptela para a palavra corrupção: "currupia daqui, currupia de lá/ É
tanta "currupição"/ Que não quer se acabar". (Não pode ser mais
atual, agora que a luta contra a corrupção se acentua). Ou a letra de "Abraço
a Retirante", poesia pura: Pra que paredes, porta e tramelas/Jardim em
flor e o fogo que acalenta/Perdeu o sentido o mundo na janela/do triste olhar
que só o fim contempla". Aceita-se a tristeza porque faz parte dessa
história, mas se deseja a alegria. Há esperança na vibrante "Quando menos
se espera": "Oh, liberdade,
presa às grades da paixão/sem ti não faz sentido/ser um folião". São
tantas as músicas! Algumas nossas conhecidas, como "Enquanto a tristeza
não vem", que parece preparar o final, com seu belo refrão: "nasce
uma rosa na favela". Tão nossas conhecidas, parece o início da esperança,
mas o autor e os diretores estão preocupados em contar a história dessa luta infinda,
que nos faz submergir, vergados ao peso do arbítrio dos poderosos! No final é
quase impossível recobrar o fôlego para aplaudir, após o impacto da última
cena. Fica a pergunta: por que as histórias da favela não podem ter um final
triunfante?
Mas sempre aparece um vingador, ao se
dobrar a esquina. No desenrolar dos acontecimentos, vários deles foram citados,
e o principal é o Dr. Sobral Pinto, tal como lembra o autor em seu texto, o
advogado que deu aos favelados o caminho para o "interdito
proibitório" que, como o nome jurídico tão pomposamente o declara, proíbe
a remoção! Eles conseguem fazer o público dar boas risadas com os meandros da
Lei, mas o resultado dos cuidados do advogado amigo é compensatório. Pra
resumir, até o Papa dá seu veredicto em prol dos direitos dos povos (tal acerto não aparece na peça), e a felicidade acontece, modificando a região, para sempre. Mas, no final de
"Bandeira de Retalhos", infelizmente, a testosterona vence. Explico.
Esse é um hormônio que, se não é bem dosado, consegue desencadear o fundo
escuro das pessoas: digo, o dos homens. Quando o espetáculo vai pro fundo do
poço fica difícil, depois, aplaudi-lo com entusiasmo. E ficamos procurando,
nessa historia, qual é a representação da alma humana? Contraditoriamente, o
grande personagem parece ser o belo traficante Bituca (Renan Monteiro), que
tudo entrega a seu rival Neno (Marcelo Mello), o marido da não menos bela Tiana (Kizi
Vaz), a quem Bituca ama. Como sempre, quem deflagra a tragédia é a mulher.
"Nós do público", embarcamos na poesia e na
esperança, para no fim sermos levados de roldão a uma realidade que nos
atordoa. Por ser construída pelos próprios moradores da favela, ela nos leva ao
fundo do poço! Já não temos tempo de nos refazer, como público, e não
conseguimos seguir o ritmo que nos promete a canção: "Quem vai pro
fundo/Tem que agitar o braço/Tem que apertar o passo/Tem que remar contra a
maré". Assim, não temos tempo de recobrar o fôlego para a apoteose final,
e os aplausos são tristes: estamos pensando na última cena que acabamos de
assistir. O público não consegue mudar do pranto ao riso, e fico o travo
amargo, no final.
Pensando bem, talvez a tragédia lhe caia
bem. Por que não? Excelentes atores, eles extraem da vivência a sua própria
arte. Neste domínio estão inseridos Cida Costa (uma atriz forte), no papel de
Angélica, a esposa temerosa (figura típica do Nordeste), e seu marido
dominador, Isidoro (Flavio Mariano), algoz da mulher e da filha Ângela (a ótima
Jackie Brown). Muitas "figuras exemplares" surgem, nesse universo que
povoa a peça de Sérgio Ricardo. Talentos como Marilia Coelho, uma excelente
comediante - a Julia - em suas interferências hilariantes; Kizi Vaz, a bela e
talentosa atriz; Francisca Damião, a Costureira; Maga Cavalcanti, a grávida; ou
Duque (Alexandre Cipriano); Délio dos Santos (Alexis Abraham) e tantos outros.
Sargento (Edson Oliveira) cumprindo com acerto o seu difícil papel de pau
mandado. Luiz Henrique Delfino (Pernambuco). Tantos! Mais uma vez Tuim (João
Gurgel), reivindicando, na ação e nas músicas. Aliás, os músicos dão seu recado
e são atores. É impossível cita-los a todos, e ao elenco (entre atores e
músicos, são 21 nomes), mas sem eles o espetáculo não teria essa preciosa
coesão. Perdem-me os não citados.
Não deixem de assistir a essa joia
preciosa, tipo exportação. Ah" Antes que me esqueça, a cenografia é uma detalhada
reprodução da favela nos anos 70. Diz\em que a fonte de água que abastece o
elenco é referência, até hoje, naquele local. E a bandeira de retalhos, que
volta e meia aparece, vai relacionando os acontecimentos marcantes da favela.
Ela é costurada, em cenas rápidas, pelas atrizes da peça.
FICHA TÉCNICA
Autor e Direção Musical: Sérgio
Ricardo
Diretores: Guti Fraga e Fátima
Rodrigues
Direção de Movimento: Johane
Hildefonso
Direção de Arte: Rui Cortez
Iluminação: Márcia Francisco
Figurinos: Pedro Sayad e Tita
Nunes
Supervisão Dramaturgica: Luiz
Paulo Correa e Castro
Direção Vocal e Assistência de
Direção: Tiago Barbosa
Preparação Vocal: Leila Mendes,
Isabel Schumann e Roberta Bahia
Preparação Rítmica: Wellington
Soares
Ida, impossível não sentir água na boca, aquela vontade irresistível de assistir a tudo que você comenta. Seu olhar diz muito sobre o que se pode esperar. Meu Deus, queria dar conta de poder ver todas essas peças...
ResponderExcluirObrigada por nos brindar sempre com sua sensibilidade.