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domingo, 8 de julho de 2012

"BANDEIRA DE RETALHOS"

Renan Monteiro (Bituca), Edson Oliveira (Sargento) e Kizi Vaz (Tiana), em "Bandeira de Retalhos"
(foto de Ricardo Gama)



CRÍTICA DE TEATRO
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado, "Bandeira de Retalhos", texto de Sérgio Ricardo, encenada pelo grupo Nós do Morro. A direção é do fundador do grupo, Guti Fraga, com Fátima Domingues. Direção musical, Sérgio Ricardo. O espetáculo é uma homenagem a Fred Pinheiro, um dos fundadores do Nós do Morro, e aos 25 anos de atividade do grupo. Comemora-se também os 80 anos de Sérgio Ricardo, o conhecido músico, morador do Vidigal há pelo menos 30 anos. "Bandeira de Retalhos" é vida real e é História, com H maiúsculo. O episódio de remoção dos barracos, na década de 70,  foi uma tentativa do governo dos militares de desestabilizar a comunidade e entregar uma parte do morro (a com vista por mar), para a iniciativa privada. História pura, a da resistência e da paixão do povo do Vidigal. A organização da comunidade, a Associação de Moradores se fortalecendo, teve início ali, naquele instante.
    Impossível entrar na História sem se emocionar. Resumindo: ao mesmo em tempo que o autor conta o episódio vivido por ele, o da remoção do seu barraco (na ocasião o artista era morador do "Lado do IPTU", como eles chamavam os da "Estrada do Tambá"), mas acabara de mudar-se para um barraco, para viver o contexto do roteiro de  "Zelão". O artista ficou mobilizado pela arbitrariedade do governo da época (o dos milicos), e não saiu mais de lá, lutando por justiça junto com os moradores. Na peça, o seu personagem é Tuim, interpretado pelo próprio filho, o músico e ator João Gurgel. Tuim entrega para o engenheiro (Danilo Batista) a chave do apartamento que acaba de receber para se mudar para Antares, Zona Oeste do Rio. Nenhum dos moradores do Vidigal queria se mudar para lá, mas foi o músico Tuim quem verbalizou esse desejo da comunidade, de permanecer, de ficar: "aqui está a chave do ap, pode ficar com ela, dá pro prefeito, pro governador, pro presidente da República, daqui eu não saio não". E assim foi deflagrado o movimento. Todos de lá aderiram. Ou quase todos...
     O que mais encanta em "Bandeira de Retalhos", além do tema, é a sua concepção de opereta: ilustrando cada movimento da história, uma música: "Passarim Currupião", que encontra a corruptela para a palavra corrupção: "currupia daqui, currupia de lá/ É tanta "currupição"/ Que não quer se acabar". (Não pode ser mais atual, agora que a luta contra a corrupção se acentua). Ou a letra de "Abraço a Retirante", poesia pura: Pra que paredes, porta e tramelas/Jardim em flor e o fogo que acalenta/Perdeu o sentido o mundo na janela/do triste olhar que só o fim contempla". Aceita-se a tristeza porque faz parte dessa história, mas se deseja a alegria. Há esperança na vibrante "Quando menos se  espera": "Oh, liberdade, presa às grades da paixão/sem ti não faz sentido/ser um folião". São tantas as músicas! Algumas nossas conhecidas, como "Enquanto a tristeza não vem", que parece preparar o final, com seu belo refrão: "nasce uma rosa na favela". Tão nossas conhecidas, parece o início da esperança, mas o autor e os diretores estão preocupados em contar a história dessa luta infinda, que nos faz submergir, vergados ao peso do arbítrio dos poderosos! No final é quase impossível recobrar o fôlego para aplaudir, após o impacto da última cena. Fica a pergunta: por que as histórias da favela não podem ter um final triunfante?
     Mas sempre aparece um vingador, ao se dobrar a esquina. No desenrolar dos acontecimentos, vários deles foram citados, e o principal é o Dr. Sobral Pinto, tal como lembra o autor em seu texto, o advogado que deu aos favelados o caminho para o "interdito proibitório" que, como o nome jurídico tão pomposamente o declara, proíbe a remoção! Eles conseguem fazer o público dar boas risadas com os meandros da Lei, mas o resultado dos cuidados do advogado amigo é compensatório. Pra resumir, até o Papa dá seu veredicto em prol dos direitos dos povos (tal acerto não aparece na peça), e a felicidade acontece, modificando a região, para sempre. Mas, no final de "Bandeira de Retalhos", infelizmente, a testosterona vence. Explico. Esse é um hormônio que, se não é bem dosado, consegue desencadear o fundo escuro das pessoas: digo, o dos homens. Quando o espetáculo vai pro fundo do poço fica difícil, depois, aplaudi-lo com entusiasmo. E ficamos procurando, nessa historia, qual é a representação da alma humana? Contraditoriamente, o grande personagem parece ser o belo traficante Bituca (Renan Monteiro), que tudo entrega a seu rival Neno (Marcelo Mello), o marido da não menos bela Tiana (Kizi Vaz), a quem Bituca ama. Como sempre, quem deflagra a tragédia é a mulher.
     "Nós do público", embarcamos na poesia e na esperança, para no fim sermos levados de roldão a uma realidade que nos atordoa. Por ser construída pelos próprios moradores da favela, ela nos leva ao fundo do poço! Já não temos tempo de nos refazer, como público, e não conseguimos seguir o ritmo que nos promete a canção: "Quem vai pro fundo/Tem que agitar o braço/Tem que apertar o passo/Tem que remar contra a maré". Assim, não temos tempo de recobrar o fôlego para a apoteose final, e os aplausos são tristes: estamos pensando na última cena que acabamos de assistir. O público não consegue mudar do pranto ao riso, e fico o travo amargo, no final.
      Pensando bem, talvez a tragédia lhe caia bem. Por que não? Excelentes atores, eles extraem da vivência a sua própria arte. Neste domínio estão inseridos Cida Costa (uma atriz forte), no papel de Angélica, a esposa temerosa (figura típica do Nordeste), e seu marido dominador, Isidoro (Flavio Mariano), algoz da mulher e da filha Ângela (a ótima Jackie Brown). Muitas "figuras exemplares" surgem, nesse universo que povoa a peça de Sérgio Ricardo. Talentos como Marilia Coelho, uma excelente comediante - a Julia - em suas interferências hilariantes; Kizi Vaz, a bela e talentosa atriz; Francisca Damião, a Costureira; Maga Cavalcanti, a grávida; ou Duque (Alexandre Cipriano); Délio dos Santos (Alexis Abraham) e tantos outros. Sargento (Edson Oliveira) cumprindo com acerto o seu difícil papel de pau mandado. Luiz Henrique Delfino (Pernambuco). Tantos! Mais uma vez Tuim (João Gurgel), reivindicando, na ação e nas músicas. Aliás, os músicos dão seu recado e são atores. É impossível cita-los a todos, e ao elenco (entre atores e músicos, são 21 nomes), mas sem eles o espetáculo não teria essa preciosa coesão. Perdem-me os não citados.
     Não deixem de assistir a essa joia preciosa, tipo exportação. Ah" Antes que me esqueça, a cenografia é uma detalhada reprodução da favela nos anos 70. Diz\em que a fonte de água que abastece o elenco é referência, até hoje, naquele local. E a bandeira de retalhos, que volta e meia aparece, vai relacionando os acontecimentos marcantes da favela. Ela é costurada, em cenas rápidas, pelas atrizes da peça.        
    
FICHA TÉCNICA
Autor e Direção Musical: Sérgio Ricardo
Diretores: Guti Fraga e Fátima Rodrigues
Direção de Movimento: Johane Hildefonso
Direção de Arte: Rui Cortez
Iluminação: Márcia Francisco
Figurinos: Pedro Sayad e Tita Nunes
Supervisão Dramaturgica: Luiz Paulo Correa e Castro
Direção Vocal e Assistência de Direção: Tiago Barbosa
Preparação Vocal: Leila Mendes, Isabel Schumann e Roberta Bahia
Preparação Rítmica: Wellington Soares

Um comentário:

  1. Ida, impossível não sentir água na boca, aquela vontade irresistível de assistir a tudo que você comenta. Seu olhar diz muito sobre o que se pode esperar. Meu Deus, queria dar conta de poder ver todas essas peças...
    Obrigada por nos brindar sempre com sua sensibilidade.

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