IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro -
AICT)
(Especial)
Eis um espetáculo apresentado com a garra
de uma improvisação. Jogo teatral puro. E exercício. Uma homenagem ao teatro e
aos atores. Que bela idéia criar algo assim! Penso que Sandrine Roche teve uma
inspiração que certamente vai emocionar a todos os que amam teatro.
Olhem só: quatro moças convencendo a todos
que são meninas, com a liberdade e a maldade das crianças. Rousseau, o
Jean-Jacques, quando disse que "o homem é bom, mas a sociedade o corrompe",
mostrou que não era um bom observador de
crianças; pois, desde o mais virgem berço, se deixadas a sós com seus brinquedos e companhia,
as crianças - o futuro da humanidade! - mordem-se umas às outras! Que sociedade
as corrompeu? Pois é justamente isso que Sandrine quer mostrar, na verdadeira aula
de teatro para adultos que construiu. Essa autora-filósofa parece querer provar
que na verdade somos casos perdidos, vivendo grandes ilusões. Ao que parece, o
que nos salva é o humor. Mas vamos ao que aconteceu no Teatro do Leblon - Sala
Fernanda Montenegro - naquele dia de estréia para a classe teatral, do texto
"Foi Você Quem Pediu Para Eu Contar a Minha História".
Em um cenário que se abre para inúmeras
possibilidades, quatro atrizes: Bianca
Castanho, Fernanda Vasconcellos, Karla Tenório e Talita Castro, vão se transformando
em inúmeras personagens, conforme a luz, a solicitação do texto e a música o exigem. E,
neste mundo aberto à imaginação, vemos uma menina morta (Bianca Castanho),
contar sua morte trágica; uma menina rica (Fernanda Vasconcellos) falar de seu
mundo, com a forma desfocada que têm os ricos de falar sobre o seu mundo; uma
menina questionadora (Talita Castro), pensando sobre sexualidade e, finalmente,
uma menina perdida (Karla Tenório) em busca de acolhimento e afeição.
A um primeiro olhar, aparentemente, é
disso que trata a peça: cada menina tem a sua história para contar. Ledo
engano: O que vemos aí são várias propostas, que se encaixam em outras tantas,
como um jogo de armar concluído com esta frase: "A próxima eu conto"!
e as luzes se apagam. Insólito, não? Na verdade, é uma bela maneira de escrever
a biografia enxuta destas três meninas. Elas se criticam? Sim. E se agridem...
Elas apresentam (quase) tudo o que o ser humano tem de negativo.
Neste quesito temos Karla Tenório, a
menina carente que aceita o jogo. Mata-se, naquele mundo das três meninas, fere-se, pois o mundo delas é cruel.
Temos que destacar aqui a compreensão desta atriz, a respeito
do papel que irá segurar até o fim: a que sofre bulling e não sabe se proteger.
Foram explorados, neste texto, todos os aspectos negativos do ser humano, e a
crueldade é tal que acabamos por sorrir. As atrizes se jogam, literalmente, em
seus papeis, ajudadas pelo cenário que lhes proporciona contorcionismos de
dança e emoção. É de fazer inveja aos expectadores. Parece tudo tão
bom!
Mas a personagem de Bianca Castanho agüenta o
destino de ser considerada a gorda, a feia. E se vinga contando histórias
horríveis. Bianca, com sua doçura, empresta morbidez à sua criança. A "riquinha",
Fernanda Vasconcellos, tem momentos hilários ao trazer para o palco o que está
acontecendo, hoje, em nossa sociedade. E, segundo o diretor Guilherme Piva, o
texto foi respeitado. Imagina-se que sim, pois é surpreendente a equivalência das
atitudes antissociais que se manifestam nos países globalizados. A menina de Fernanda
declara que "tem horror a pobre" e que pode tudo, "porque é
rica". E, finalmente temos Talita Castro trazendo para a discussão a
sexualidade entre meninas. "Por que não?", pergunta a personagem de
Talita.
Em seus trapézios, em suas danças, em seu jogo
corporal, as quatro atrizes provocam uma cena de tensão, sexo e humor. Os
figurinos, muito apropriados, sublinham, com escândalo, a sexualidade infantil. Nada foi esquecido na montagem brasileira deste
texto da desconhecida Sandrine Roche, do "Thêátre Du Cercle" (Rennes).
Ele vem embalado com a adaptação de
Thereza Falcão, e é surpreendente como o diretor Guilherme Piva conduz, com
extrema leveza, assunto tão cruel. Não são "estas" crianças no palco,
que estão se "despindo" de sua humanidade. O assunto é sério, mas o
humor prevalece, ele deve falar mais alto. E Guilherme Piva sabe disso: os
recados mais importantes do texto ficam na emoção e no pensamento. Afinal, não se
trata de um espetáculo descartável.
Na técnica, além dos já citados: cenário
de Paula Santa Rosa e Rafael Pieri; figurino, Carol Lobato; desenho de luz,
Renato Machado; música, Marcelo Alonso Neves; Assessoria de Imprensa, Daniella
Cavalcanti.
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