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sexta-feira, 9 de agosto de 2013

"O CONTROLADOR DO TRÁFEGO AÉREO"

O "controlador" em ação. (Foto Divulgação).
Silvano Monteiro na peça de Moacir Chaves, em foto de Guga Melgar.  

Elenco de "O Controlador do Tráfego Aéreo", concepção e direção Moacir Chaves. (Foto Guga Melgar).



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Eis que o Teatro Serrador apresenta um espetáculo no mínimo curioso . Trata-se de um texto (elaborado por Moacir Chaves em cima de um depoimento de Silvano Monteiro, ex-controlador de vôo), alimentado por documentos que comprovam o acontecido, e no qual é abordado o fanatismo dos militares em postos de comando, ao dar ordens a seus subalternos. Estes "comandantes", sem se deter na situação específica do humano, têm o poder de desestabilizar a vida de outro ser. Foi o que aconteceu com o primeiro sargento da Aeronáutica, e é o que está acontecendo, no presente, com tantos casos relatados nas Forças Armadas, passíveis de indenização pela forma desumana com que são tratados. É alto o índice de problemas psicológicos, nas três armas, justamente pelas transferências sem razão ou movidas muitas vezes para testar "o valor patriótico do militar". Quem sai perdendo são os filhos, a família; além dos cofres públicos. Foi isso o que Silvano Monteiro tentou evitar.
     Essa falsa noção de "dever cumprido" ocasionou a tragédia de Silvano Monteiro. Tal tragédia não teve conseqüências irreparáveis graças ao espírito batalhador e resistente do "controlador de vôo". Suicídio, loucura, rompimento familiar traumático, e tantos males acontecem, em nome de uma abstração chamada "ordens a cumprir". Nas Forças Armadas os casos se repetem, e devem ser avaliados com responsabilidade, e não com fanatismo. Passemos ao caso de Silvano Monteiro, "controlador de tráfego aéreo da Aeronáutica" - primeiro sargento.
      O procedimento das "pequenas autoridades", acima dos sargentos, é tão absurdo que leva à indignação. Não podemos falar sobre os atores e a peça sem antes localizar o desastre que pode acontecer com um servidor consciencioso e competente que, justamente por sê-lo, fica exposto ao bel prazer das transferências injustificadas. O caso de Monteiro se transformou em um castigo impiedoso, que chegou a colocá-lo em uma situação de abandono e desolação.
     Senão vejamos: um operador de tráfego aéreo, ao ser transferido de sua área de origem deve prestar alguns meses de estágio operacional para readaptação de área. Não havendo tal readaptação, é aconselhável o retorno a base de origem, sob pena de colocar em risco o bom funcionamento do tráfego aéreo. No caso de Silvano, por não terem atendido às suas justas reivindicações de retorno às bases, o caso tomou proporções que o profissional não conseguiu administrar, entrando em profunda depressão. Seus superiores, certamente, tomaram como fraqueza, a sua manifestação, e resolveram a questão respondendo-lhe que ele "era um militar", frase em que fica subentendido que militar não pode se dar ao luxo de ficar em depressão aguda! Mas as depressões acontecem - e como! - em tal profissão onde as transferências são feitas, na maioria das vezes, sem a menor necessidade ou condição.
     Portanto, onde deveria ter ido outro militar para substituí-lo, aconteceu o ato irrefletido da "punição sem causa", pois obrigaram Silvano a permanecer na função, apesar da falta de condições para tanto. O adequado, normal e racional seria mandar outro profissional para a área, pois não era ocasião para uma mudança tão brusca na vida de Monteiro, havendo um filho recém nascido, e uma esposa, ambos necessitando cuidados. A adaptação às novas funções - começou a trabalhar imediatamente, nem o tempo de algumas semanas para adaptação não lhe foi dado. O afastamento da família; a preocupação; o levaram ao seu limite: e sucumbiu, e foi internado. Assim. Fizeram-no trabalhar, sem atender-lhe as solicitações - cabíveis pelas normas legais- de retorno à base de origem, colocando em risco os vôos por ele controlados!
     O que lhe disseram seus superiores? "És um militar, tens que cumprir ordens!" E aí começou o inferno para Silvano Monteiro. Em depressão, sua competência foi a zero. O que fez a Aeronáutica? O internou em uma clínica psiquiátrica. E foi consentido que lhe administrassem antidepressivos - o que o levou a um estado de catatonia. O segundo sargento, que merecia nada mais do que um tratamento humano para o seu caso, ou seja, o retorno à base operacional junto de sua esposa e filho, teve como resposta a internação psiquiátrica; a alienação. Pediu demissão, depois de 22 anos de serviço, sem indenização ou o direito a uma pensão pelo seu tempo de trabalho!
Pergunta-se: é essa, ainda hoje, a nossa Aeronáutica? Deixar seus subordinados tão desesperados até a situação limite?
     Monteiro fez a escola técnica de Guaratinguetá, formado pela Escola da Aeronáutica, fez curso em São José dos Campos, no Instituto de Controladores do Espaço Aéreo (ICEA), e foi instrutor dos controladores do Galeão. Contando, ninguém acredita. Silvano Monteiro conheceu o mundo dos moradores de rua, mas não se tornou um deles, pois, talentoso, e com amor próprio desenvolvido, buscou auxílio entre seus iguais (Silvano demonstra ser um artista nato), e conseguiu se reerguer. O que não acontece com a maioria dos que caem, definitivamente, na rua. Infelizmente.
     O que fez o diretor Moacir Chaves com essa história de horror e superação? Construiu, com seu elenco, uma narrativa circular, na qual há textos célebres entremeados com a situação ambulatorial e hospitalar de Monteiro: o impasse com o seu divórcio, e a absurda pensão alimentícia exigida pelos advogados, para o seu filho Breno. Ele deveria pagar a pensão com o seu trabalho de ator! Está nos autos! A esposa, assustada com o que acabaram por lhe apresentar como marido, foi para junto dos pais, sempre com o seu jovem filho Breno.
     Silvano, durante o período de internação, frequentou aulas de música, artes cênicas (seus rudimentos...), e conseguiu desenvolver o talento que não sabia possuir. Esses momentos de terapia ocupacional, imagino, ajudaram-lhe a não enlouquecer. Mas, ser considerado pela justiça como um ator profissional capaz de sustentar uma família é desumano. O ser humano não tem limites para a sua mesquinharia: o juiz lhe exigiu pensão alimentícia para o menino. Ora, todos nós sabemos o coroamento de maldades que isso representa. Monteiro decaiu, ficou na rua, nada podia fazer por si e para os que amava.
     Diretor e atores do espetáculo (Monteiro incluído, ator, finalmente) citam textos lúcidos, de seres humanos de alma rica, eles Thomas Morus e sua Utopia; Dostoievski e alguns trechos de seus livros. O "paciente psiquiátrico" entrando em contato com mundos absolutamente diversos (Silvano Monteiro já participou de outras montagens de Moacir Chaves e é hoje um membro do grupo), habitando outro universo. Há também, na peça, as crônicas de jornalistas observando o mundo da rua como se fossem "voyeurs". A vida dos excluídos, como se fosse uma escolha extravagante. Querer as estrelas e a chuva como telhado. Outros cronistas, mais humanos, rebatem (talvez de um jornal mais preocupado com o social) o cronista da Zero Hora (jornal gaúcho), tendo como contraponto a resposta indignada do (talvez) cronista, do Correio do Povo (RS), talvez Juremir Machado da Silva e sua visão oposta ao da Zero Hora mundana. (Muito bom quadro, interpretado por Fernando Lopes Lima e Rafael Mannheimer).
     Saldo positivo: uma denúncia e uma reflexão. Um alerta para a loucura humana que está fora dos manicômios e leva os mais fracos a nele ingressarem. São almas cruéis, as que têm nas mãos os destinos alheios. A peça fala de limites e fronteiras, e esses são os limites que a alma humana suporta, entre a fronteira da loucura e da sanidade. O "controlador de vôo" em momento algum aceitou que fosse considerado louco. Em boa hora está ator, entre os atores. Mas a Aeronáutica devia indenizá-lo por tanto sofrimento. Quantos ganham milhões de indenização, por terem passado uma semana na prisão, na época da ditadura dos militares?
    Os atores Fernando Lopes Lima; Danielle Martins de Faria; Leandro Daniel Colombo; Denise Pimenta; Leonardo Hickell; Kassandra Speltri; Elisa Pinheiro; Luisa Pitta, Rafael Mainheimer, e Silvano Monteiro contam essa história. No final, Silvano diz um trecho do Rei Lear, que ensaiou no curso que o Alfândega 88 proporciona a seus atores. Disse o monólogo dos tolos, mas ele não é um tolo: Monteiro, nesta história toda, é - e foi - um homem honrado. Longa vida a pessoas desse quilate. A vida real está de mãos dadas com o teatro experimental, na Alfandega 88. Trata-se de um espetáculo que desvenda as injustiças. Vale à pena conferir.
     Na ficha técnica, concepção e cenografia Moacir Chaves; Figurinos (chiques), Inês Salgado; Programação visual Maurício Grecco; acompanhamento musical, Silvano Monteiro; Luz, Aurélio de Simoni. O caso do controlador de tráfego aéreo está sendo retratado no Teatro Serrador, sem o mais leve indício de proselitismo. Muito pelo contrário, o saber artístico do diretor Chaves coloriu com palavras poéticas e satíricas essa denúncia que mostra o lado bom e o insensato da natureza humana.
ATENÇÃO! Deixamos aqui o nosso apoio à continuidade do trabalho de Moacir Chaves à frente do Teatro Serrador com a Cia. Alfândega 88, que tantos frutos positivos têm dado ao teatro carioca e brasileiro.


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