Elenco de "Infância, Tiros e Plumas", de Jô Bilac, direção Inez Viana - (Foto Elisa Mendes) |
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro -
AICT)
(Especial)
Rio de Janeiro - Brasil:
Começa o espetáculo e nos vemos abduzidos em direção
a um mundo desenfreado e surreal. Estamos em pleno "Infância, Tiros e
Plumas", no SESC Ginástico e, a principio, pensamos que se trata de mais
uma historia de horror acontecendo a bordo de um avião (teatral). Mas depois nos
lembramos que o texto é de Jô Bilac, portanto, algo mais palatável deve vir por aí,
apesar dos clichês que inauguram o texto. Antes de os atores embarcarem no
avião, há todo um contexto que nos leva a aeroportos internacionais, começando
pela voz de Iris Lettieri - ou alguém com voz semelhante à dela - nos fazendo entender
que estamos embarcando para "Mí-a-Mí". A sinalização, orientando a
partida do avião, nos dá a certeza de que vamos enfrentar uma viajem, talvez
sem volta, como é moda ultimamente em se tratando de viagens de avião. Atenção!
O sentimento claustrofóbico é total, e o ruído dos motores, infernal. E, para
infernizar ainda mais nossos sentidos, a bordo do avião começa uma sucessão de
lugares comuns que nos levam - ou levariam - ao desfecho
de
mais uma comédia despretensiosa.
Mas, de repente, vamos percebendo a força
da metáfora elaborada pelo dramaturgo em questão, e a misteriosa novidade que ele
nos traz, transformando em dramaturgia uma síntese bem sucedida de teatro
moderno e pós-moderno. Muita gente fez teatro antes dele, até que chegamos a
esta síntese bilacquiana ... E aos poucos vamos percebendo que, ao contrário do
que pressentíamos, não se trata de mais uma comédia "devotada e fiel"
à civilização norte-americana, mas uma aguda e irônica reflexão sobre essa
sociedade mórbida, e também sobre a nossa civilização, e sobre a atual - e bagunçada
- civilização ocidental. E, assim, os personagens perdem todos os parâmetros e se
comportam como seres despojados de espiritualidade ... e isso o
autor
joga em cena de maneira contundente, mostrando que a motivação dos seres
humanos atuais é, justamente, "a falta de motivação"! e tudo fica
escondido por detrás de um frenesi histérico. O acolhimento dado ao público,
pelos lanterninhas indicando o caminho, só vem aguçar o sentimento da perda de uma
sociedade elegante, chic e contida.
A historia que vamos assistir é o oposto
do acolhimento recebido pelo público. Vamos compartilhar alguns (maus) momentos
com uma humanidade onde impera a desrazão. Não fosse o ótimo desempenho dos
atores da Companhia OmondÉ (olhem só o nome...), poderíamos ficar arrependidos
de estar participando desta viagem. Mas há
um momento em que tudo se encaixa, e o procedimento
alucinado dos personagens é somente uma lente de aumento projetada pelo autor. E
percebemos que aquele avião desgovernado é uma metáfora do mundo em que vivemos.
Não entramos em detalhes de qual seja este momento, quem quiser certificar-se
que olhe ao seu redor, ou vá ao Teatro Ginástico conferir.
Desde o bebê menino (tem 4 anos?) espanhol
que vai a Mí-a-Mí (é assim que os espanhóis pronunciam o nome deste local, e em
Mí-a-Mí há muitos espanhóis). O bebê infernal é interpretado por Jefferson
Schroeder (Juanito), em uma composição perfeita. Cansaremos os olhos de quem
nos lê com este adjetivo: infernal - pois tudo o que se passa a bordo é
infernal - começando pela louca mulher casada, Marím, que quer se ver livre do
marido (e vice-versa) - interpretada com a força da comédia que habita Debora Lamm, excelente
atriz. Temos a "pestinha" viciada em vídeo game (Suzaninha), interpretada por Carolina Pismel,
irreconhecível em uma menina de oito anos. Pismel se destaca até no fundo dos
infernos!
Outra atriz, nesta passagem "ionescana" que é a peça, onde a
tripulação parece estar hipnotizada, é Juliane Bodini, a aeromoça Sângela. O Comandante ("Argos"), o que leva a embarcação, interpretado por Iano Salomão (dizem que ele também interpreta o Segurança de Suzaninha?) é um
lunático inapropriado para tal função (até parece vida real); e o "moço de
bordo", Pitil (Zé Wendell), ou seu nome será Junior Dantas, o "Cheval? - é um espécime dificilmente encontrável em um
avião. Em todo caso, refiro-me ao ator de calças vermelhas: sua desinibida performance serve para ampliar, preconceituosamente, a
possível homossexualidade dos "moços de bordo"? (*) (ah,ah!)
Vamos lá: quando foi
mesmo que o espetáculo ultrapassou o terreno do clichê? Terá sido depois da
aparição da arma de fogo e a possibilidade da tragédia? O autor, antes de matar
todo mundo, sabe colocar, passo a passo, a tragédia que se anuncia. Nestes assuntos
Jô Bilac é perfeito: paira em seu texto o domínio da "stravaganza!". Mas
o importante não são os acontecimentos - previsíveis - que se aproximam, mas a
maneira pela qual a desrazão toma conta de todos dentro do avião: passageiros e
tripulação. Negamo-nos a enfatizar o propósito do autor - o avião representando
o mundo? - porque a comparação é óbvia. Detenhamo-nos em detalhes: a história
da maçã envenenada, desencadeada pelo personagem Henrique (interpretado por um ótimo Leonardo Brício), que
pode ser colocada - a maçã - mais do que o aparecimento da arma de fogo - como o nascimento
da tragédia. A bordo temos todas as
representações do mundo cão, desde o contrabandista de armas - e traficante de
drogas? - Cheval, o segurança da Suzaninha? (Junior Dantas), até a armadora de escândalos, Marím (personagem
de Debora Lamm), e Junior (Luis Antonio Fortes), o inocente desencadeador da tragédia.
Na
ficha técnica temos a direção segura e um tanto ensandecida (como pede o texto),
de Inez Viana; cenário (glorioso) de Mina Quental; Iluminação da dupla Renato
Machado e Ana Luzia de Simoni. Figurinos; Direção Musical; Direção de Movimento,
respectivamente, Flavio Souza, Marcelo
Alonso Neves e Dani Amorim, sustentando este
tresloucado vôo. Fotos: Elisa Mendes e Cabéra; Produção: Rafael Faustini e
Jéssica Santiago; Assessoria de Imprensa: Ney Motta.
QUEM ESTIVER PENSANDO EM ESCREVER
UMA DRAMATURGIA (PARA JOVENS) SOBRE O QUE ESTÁ ACONTECENDO HOJE COM O NOSSO MUNDO E O NOSSO PAÍS,
DESISTA: ESTÁ TUDO LÁ. NÓS JÁ SABEMOS QUE O MUNDO ENLOUQUECEU, MAS NUNCA É
DEMAIS DAR UMA OLHADA (TEATRAL) NESTA LOUCURA.
(*) (Não foi possível evitar a troca de personagens, o
homem de calças vermelhas, o "moço que atende a bordo" para mim é
Pitil, o nome tem tudo a ver; e o Comandante deveria se chamar "Argos", por motivos helênicos... Quando fizerem programas com a foto dos atores ao lado do nome de seus
personagens vai ficar mais fácil identificá-los).
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