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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

"CÍCERO - A ANARQUIA DE UM CORPO SANTO"





CRÍTICA DE TEATRO
IDA  VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)
EM CENA:


                                                                                                                             
                                                                                                                              (Foto Fernando Valle)

“CICERO – A ANARQUIA DE UM CORPO SANTO”  
Texto e Interpretação de Samir Murad.
Direção: Daniel Dias da Silva.

A ficha técnica está fortemente ligada aos acontecimentos. A trilha sonora de André Poyart, salvo engano, é cantada pelo ator Samir Murad. O desenho de Luz é de Russinho e os Figurinos (ambos muito acertados) criação: Karlla de Luca.

     NUNCA saberemos se teatro é exagero ou contenção. Ou melhor, podemos dizer, como Mario de Andrade dizia a respeito de poesia: “ teatro é tudo o que dizemos que é teatro”. Esta última afirmativa procede, e se faz presente no espetáculo sobre o Padre Cícero, o “padrinho” dos cearenses, ora em cartaz na Casa 136 da Rua Ipiranga, em Laranjeiras – Rio de Janeiro. Quem tiver curiosidade de ver como foram as aventuras de Cícero no campo religioso é só estar presente na Casa até o dia 15 de dezembro de 2019. Não se sabe ainda para onde se mudará o personagem, ou se ainda fará seu porto nesta casa, o que sim temos certeza é que suas andanças são típicas de regiões onde o misticismo e o fanatismo fazem a sua morada. Vale lembrar.

     O que mais nos surpreende neste espetáculo é tomar conhecimento do personagem e perceber que ele nunca foi considerado um santo pela Igreja Católica, (apesar de suas façanhas no mundo dos milagres), ou talvez mesmo pelos excessos de sua maneira de praticar a religião. E é por estes excessos - no espetáculo seu intérprete canta, dança e sapateia - e ainda chama em seu auxílio Antonin Artaud e sua loucura, o que faz o público ficar sobressaltado, tendo que escolher entre loucura ou religião. Ou talvez as duas coisas juntas! Como público ficamos indecisos entre assumir estes dois polos.

     Ou terá a religião intimidade com a loucura. Preparando-se para colocar em cena Padre Cícero Romão Batista, a primeira providência de Samir Murad foi ler a biografia do “Santo de Juazeiro do Norte” e, para surpresa sua diagnosticou a tendência dos estudiosos do Santo não o considerar como tal. Para surpresa também do público, a respeito da Igreja Católica. Podemos dizer que o ator (e seu diretor, o cearense Daniel Dias da Silva, um entusiasta do texto), dividiram o espetáculo em quatro movimentos, sendo o primeiro marcando as andanças do Padim e seus encontros com nordestinos notórios, como Antonio Conselheiro e Lampião que, como ele, mudaram a imagem da região. (Dizem, autor e intérprete, que os três nordestinos foram contemporâneos, e que estes encontros são reais).             

     Para Samir Murad, a sua narrativa “possui vários registros culturais”, levantado questionamentos que lhe parecem próximos, “como a quase sempre nefasta intercessão da política com a religião na cultura de um povo, assim como da necessidade de se fabricar e destruir mitos e verdades, que sempre estão de acordo com os interesses das minorias dominantes”. Para passar este recado ao público Samir utilizou linguagens como a de Antonin Artaud, o Butoh japonês ou o Livro Tibetano dos Mortos - e não ficamos sabendo se tal preocupação do autor trouxe algum esclarecimento sobre a vida de Padre Cicero, pois o que testemunhamos em cena é um espetáculo de difícil leitura. O diretor Daniel Dias da Silva, por sua vez, procura explicar tanto estranhamento: “buscamos, mais do que reproduzir (...) os relatos turvos e dar respostas aos enigmas que ainda orbitam a sua história, buscamos revelar suas distintas facetas (...) o homem por trás do mito, com suas dúvidas, falhas e fraquezas”.

        A imagem que o espetáculo passa ao público não se assemelha ao que se tornou conhecido como a História do Nordeste. Em todo caso o encontro do Padre Cícero com vários personagens e mitos, inclusive Antonio Conselheiro e Lampião, parece marcar o espetáculo, intensificando-se no decorrer do mesmo. A imagem do sertão e de Juazeiro, vistos dessa maneira, nos leva a caminhos nunca antes imaginados. Vale a pena conferir.






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