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Deborah Evelyn (Verônica), Julia Lemmertz (Annette), Orã Figueiredo (Michel) e Paulo Betti (Alain), em "O Deus da Carnificina", de Yasmina Rezza (foto Gulga Melgar) |
CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Ao som de "pour un peu d'opulance", tem
início O DEUS DA CARNIFICINA, de Yasmina Reza, a peça mais procurada do 19º
Porto Alegre em Cena, junto com o Berliner Ensemble, em sua primeira visita ao
Brasil para apresentar a peça de Bertold Brecht, "Mãe Coragem". Os
dois espetáculos, nem é preciso dizer, foram sucesso. Acompanhamos o
deslocamento dos atores brasileiros que trabalham na peça de Yasmina Reza, do
Rio de Janeiro até Porto Alegre, não só como crítica convidada, mas também como
Organizadora do livro de poemas (e teatro), do pai de Julia Lemmertz, o ator
Linneu Dias. Julia é uma das atrizes do LE DIEU DU CARNAGE (do original francês).
A outra atriz do elenco é Deborah Evelyn. O Deus da carnificina é o homem, o ser humano.
Mas agora comecemos
pela verdadeira Via Crucis que é sair do Rio de Janeiro em um vôo da Gol, a
Companhia de Aviação que mais atrasa, no Brasil. Para nós, dessa vez, foram
três horas de atraso até conseguirmos chegar a Porto Alegre! Pela algaravia dos
fãs, pedindo para serem fotografados ao lado das duas atrizes, suspeitamos que
o atraso de vôo era caso pensado da Companhia, para dar uma alegria extra aos
passageiros, que tiraram fotos, à vontade, das atrizes! Depois, ficamos sabendo que os atrasos são uma constante na Gol, o
que nos fez preferir a Azul, em nosso retorno ao Rio, e ao aeroporto Santos
Dumont, em detrimento do Tom Jobim, cujas condições são inviáveis.
Mas passemos ao espetáculo. Não sem antes
comemorar a beleza do neoclássico Theatro São Pedro, de Porto Alegre, uma jóia
da arquitetura do final do século XIX, com capacidade para 700 pessoas (ficou
lotado e com cadeiras extras, no espetáculo carioca). A primorosa arquitetura
é muito bem protegida pela diretora Eva Sopher, responsável pela restauração do teatro. No saguão podia-se
encontrar a mesa com os livros do ator Linneu Dias, URBIA I e II, no qual
encontramos críticas de cinema e o monólogo "Minh'Alma, Alma Minha",
uma biografia poética do Linneu. A "banca", como o elenco da peça e os
admiradores a chamavam, atraiu público e foi uma excelente demonstração do
apego à cultura, feita pelos gaúchos.
No início de peça, embalados por um hip hop francês (a trilha sonora é de Marcelo Alonso Neves, com música cantada por Maurício Baduh), os dois
personagens-anfitriões, Verônica (Deborah Evelyn) e Michel (Orã Figueiredo),
arrumam a sala de sua casa para receber o casal com quem terão uma delicada
conversa sobre o comportamento de seus "guris" adolescentes. Durante
os preparativos para receber as visitas, o diretor Emílio de Mello lança os
primeiros dados, através do gestual estabelecido para os atores (trabalho
compartilhado por Valéria Campos e sua Técnica de Alexander), dando as dicas para
o público avaliar o caráter e o relacionamento do casal. Enquanto Verônica, a
esposa delicada, prepara o ambiente doméstico de maneira cuidadosa, o não menos
dedicado marido Michel vai revelando, pela sua movimentação, o homem rústico
que é (note-se a maneira pela qual ele molha os dedos para virar as páginas dos
livros de arte da esposa, são detalhes que constroem os personagens).
O
interessante, nesta direção de Emílio de Mello, é o que ele vai construindo,
ajudado pelo excelente texto de Yasmina Rezza, os planos de uma narrativa
cruel: o do público, que classifica as ações dos casais como "excentricidades",
e o outro plano, o da verdadeira natureza do espetáculo, a complexidade do
humano e a sua desagregação enquanto ser civilizado. Há uma tristeza profunda pairando sobre "a comédia". O
subtítulo, "uma comédia irresponsável" é dado, imagino, para atenuar
os acontecimentos.
E os "acontecimentos" se sucedem,
estabelecendo o jogo de cena. O público se mobiliza, assistindo ao embate dos personagens
e a dedicação dos atores: temos Paulo Betti, como Alain, o advogado sem
escrúpulos; Deborah Evelyn é Verônica, a pesquisadora de mundos exóticos
(estabelecendo o eterno complexo de culpa do mundo civilizado); Annette (Julia
Lemmertz), é a implacável defensora dos deslizes de seu filho agressor, e crítica
feroz do mundo que a cerca; Michel (Orã Figueiredo), o macho que conhece muito
bem os seus limites, e teme ultrapassá-los.
Mas
não se pode esquematizar os personagens, neste embate tão contemporâneo. A peça
é uma sucessão de fatos que acrescentam dados ao perfil ocidental: e é aí que está a maestria da autora iraniana nascida em Paris.
Yasmina Reza trafega por assuntos os mais variados, e a todos
aborda com profundidade. A autora atinge o ponto preciso dessa profundidade quando
presenteia Alain com a melhor frase da peça (o furor do personagem é interrompido,
constantemente, pelos seus parceiros), quando Alain se refere à mesquinhez dos
problemas caseiros que estão tratando, se comparados à situação caótica do
mundo, na qual crianças muito menores do que seus filhos, matam,
indiscriminadamente outros seres humanos: um mundo onde as armas estão ao
alcance de suas mãos, "onde deveriam estar os pães de uma padaria",
acrescento eu).
Assisti diversas vezes a essa peça - e a
cada apresentação - a frase de Paulo Betti (e a sua irônica interpretação, que
lhe valeu uma indicação ao Prêmio Shell), está cada vez mais diluída. Essa
frase, que lança um flash instantâneo sobre a carnificina atual. Até a palavra
"carnificina" presente na frase, o ponto chave da peça, fica diluída pelo ruído
ambiente, o que é uma pena. Ela colocaria a platéia, sequiosa por divertimento,
diante de nossa miséria incontestável. Dessa última vez que assisti LE DIEU DU CARNAGE,
a experiência foi interessante. Paulo Betti entrou na frase em um tom
discursivo, dominante, o que impressionou o público. Para quem pensava que
estava assistindo a uma comédia, foi uma tomada de consciência. Pena que foi um
instante efêmero. Mas talvez seja assim mesmo a reação do ser humano a uma
tomada de consciência, efêmera, ele prefere cortá-la logo, cortar os assuntos inconvenientes.
E não há "assunto inconveniente"
maior do que ver os cuidados excessivos do mundo ocidental com os seus
pimpolhos (que, no caso, desfiguram uns aos outros em combates de rua), quando
eles próprios (os adultos ocidentais) matam centenas de milhares de crianças, do
mundo oriental, como se fossem poeira na areia. Além de considerar essa peça
vital, diria essencial, folgo ao saber que ela está fazendo agora (já próximo
às trezentas apresentações - estreou em 2010), o circuito do CEU, os Centros
Educacionais Unificados de São Paulo, onde há alunos de todas as idades interessados em cultura, em teatro.
Além dos já mencionados técnicos que
compuseram o espetáculo, temos Flávio Graff com o seu cenário marcante: a mesa
dominando a cena, como peças de armar de brinquedo infantil; e a iluminação
feérica, dimensionada por pequenos núcleos, de Renato Machado; os acertados
figurinos de Marilia Carneiro. Parabéns para a encenação dessa peça. É muito
bom ver bom teatro!