João Velho, Ana Abbott e Renato Livera em "Para os que estão em casa", dramaturgia e direção Leonardo Netto (foto de Julia Ronái). |
IDA VICENZIA
(da Associação
Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Leonardo Netto, que tantas surpresas boas
já nos deu, como ator, agora vem nos surpreender como diretor, principalmente, e autor. Sua
dramaturgia é livremente inspirada em um filme chamado Denise Calls Up, dirigido por Hal Salwen, um cineasta independente capturado
pela maluquice cibernética de nossa vida pós-internet. Pela primeira vez, em
teatro, o assunto foi abordado como merece, ou seja, como a mudança drástica de
nossa percepção da vida. A impressão que fica é de que as pessoas estão descartando
seus semelhantes, com medo de se envolver e perder a sua individualidade.
A sensação do público é de estar
assistindo ao nascimento da fobia social. O egoísmo sobrepuja a sociabilidade,
ao ponto de invejarmos o amor e a solicitude demonstrados, em vídeo, por uma
família de chipanzés (magnífica idéia do diretor, daí o destaque para a sua
criatividade). Leonardo Netto possui a capacidade de dar
dinamismo a um assunto que poderia ser repetitivo, pois conversas ao telefone
costumam ser borings. As cenas
dependem muito dessas conversas telefônicas, o que as salva é a ação
ininterrupta dada pelo diretor, um timming desesperado que faz a cabeça do
publico responder a mil. O mundo dos "fonomaniacos", sua fobia pelo
contato imediato nos revela a dimensão de nossa desumanização.
O termômetro da importância de uma
iniciativa artística mede-se, quase sempre, pela reação do público. À saída do
espetáculo percebemos comentários e raciocínios a respeito do tema. Tudo muito
preocupante. E atual. Uma dominação através da máquina? Do idioma que a faz
circular? O que são cookies, a não ser bolinhos? O que são chackers, a não ser
bolachinhas? Non sense. Quem não conhece esta "linguagem" é considerado
"por fora". E nos transformaremos em olhos, não mais em seres humanos.
Em olhos desejantes. Nesta jaula desumana, como destacar a atuação dos atores?
Pela inflexão das vozes? Pela expressão corporal? Comecemos então pela
surpreendente movimentação em torno de si mesmo do ator Renato Livera,
interpretando Jorge. Temos a impressão de que ele já foi bailarino, antes de
ser ator (um ótimo ator), pois seu domínio de corpo é total. As interpretações
são tocantes, pela garra com que os atores, todos jovens, defendem os seus
personagens. Sim, estamos em um mundo
que se transforma. Estamos falando na geração atual, uma geração independente?
Talvez não tão independente assim.
Todos passam um recado de independência, e
de auto suficiência. Como a design de
ambientes, interpretada por Ana Abbot (Vera); ou a tradutora "impertinente"
Lídia (Adassa Martins), que já não suporta a babaquice de seu patrão e o manda
passear. Estas atitudes revelam, contraditoriamente, um futuro bem melhor, ao
menos no que se refere à independência. Pura fantasia. E as mulheres vão mais
longe ainda. Há a grávida apaixonada (Beatriz Bertu, interpretando Alice), que revela a sua paixão através do telefone. Ela deseja viver a experiência de
ser mãe "sem a interferência de estranhos". E o pai da criança, que
só as conhece - mãe e filha - depois do nascimento da menina? Ao menos as
conhece. Este casal é o único que quebra
as regras. Assistam a peça também para saber com foi feita a concepção da criança. Espírito
Santo? Telepatia?
É, até isso, Leonardo Netto, o nosso
H.G.Wells da eletrônica, imaginou. Beatriz
Bertu segura, com extrema ternura e determinação, a sua vontade de ser mãe
independente (parece que determinação, além da liberdade, é a mola que move as
mulheres do século XXI). Há ainda a fóbica assumida, Guida, interpretada por
Isabel Lobo. Essa personagem é capaz de todas as mentiras, para não enfrentar situações concretas.
E os homens, como ficam eles neste mundo
novo? São três homens e três mulheres, seis personagens ocupando este universo.
A homossexualidade não é colocada em questão, apesar de ser um grande motor do
século XXI. Na peça de Leonardo homens gostam de mulheres, e mulheres gostam de
homens. As amizades, se as há, não passam de amizades - nada de frases
freudianas a respeito da impossibilidade da amizade entre seres humanos.
Relevando esta questão, parece que só há um ser humano normal nesta historia
toda, ou o que hoje consideramos normal, ou seja, o homem que tem emoções além
das que a internet e os iPods da vida podem lhe oferecer. Este homem é
representado com arrebatamento por João Velho (parece que este ator já criou um
estilo meio Actor's Studio de ser).
...E
há também o ator que fica com a melhor frase nesta história toda: Rodrigo
Turazzi (Fred), que se horroriza com a agressividade da internet e internautas,
e imagina o que seria capaz de fazer uma pessoa solitária, com uma arma na mão.
O seu pensamento deixa a nu o terror que habita nossos corações, com a
lembrança de carnificinas praticadas por remotos solitários, cuja única
companhia é a internet... e seus jogos agressivos. Mas não é só de frases de
alerta que vive Fred. Ele conserva seu amor pela música, e dedilha o violão. Talvez
nem tudo esteja perdido.
Amarguras à parte, há uma espécie de
cumplicidade nesta comunicação incessante entre jovens: alguns deles só se conhecem
por telefone, o que torna seu mundo surreal...
Se é verdade que o teatro pode modificar o
mundo, este é um bom início para tal proeza: Leonardo Netto acertou em cheio ao
tentar abrir os olhos do público para essa possibilidade.
Na ficha técnica desta produção
independente temos a melhor equipe: Texto, Concepão e Direção:
Leonardo Netto; Participação em vídeo Andrea Dantas e Santiago Trémouroux;
Cenário: simples, comporta várias experiências, refletindo a particularidade de
cada jovem em seu habitat, é do mestre José Dias; Iluminação: outro mestre,
Aurélio De Simoni; Figurinos de Marcelo Olinto; Os Vídeos são de Leonardo Netto
e Renato Livera; Trilha Sonora (que reflete essa mania do idioma inglês entre
os jovens), Leonardo Netto.
VALE ASSISTIR A ESTE ESPETÁCULO.