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segunda-feira, 18 de maio de 2015

O ACOMPANHAMENTO


Tuco (Wilmar Amaral) e Sebastian (Roberto Frota) em "O Acompanhamento", texto do argentino Carlos Gorostiza, dirigido por Daniel Archangelo. (Foto Luiz Luz).



IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     Dois atores carismáticos e talentosos (Wilmar Amaral e Roberto Frota), um teatro simpático e acolhedor (Eva Herz), uma boa direção de Daniel Archangelo, e a emoção que nos traz o texto do argentino  Carlos Gorostiza. "O Acompanhamento" nos remete a um tempo em que o teatro era um lugar para falar de amizade, de amor, de loucura, com simplicidade e entrega. Talvez os diálogos retornem com demasiada freqüência, mas é assim que as coisas profundas afloram. É a reiteração dos sentimentos. É teatro. Eis que estamos de volta a "duas tábuas e uma paixão".
     O texto apresenta tal humanidade, que somos transportados para  aqueles tempos onde a amizade florescia, acompanhada por músicas boemias. O metalúrgico Tuco (Wilmar Amaral) quer se aposentar e realizar o seu sonho de ser cantor. Para tanto, isola-se em um galpão, aguardando a chegada do "acompanhamento" que irá segui-lo, em sua estréia. Tuco quer, naquele esconderijo, fugir da animosidade da família que não aceita a sua decisão. Tuco traz consigo a criança que nunca o abandonou. Seu amigo Sebastian, afetuoso e durão (Roberto Frota), quer trazer de volta para a vida o operário, acha-se no dever de arrancar-lhe "o sonho".  
     "O Acompanhamento" é uma peça sobre o sonho do homem, e sua realização: seja na arte, seja na vida. Talento, essa é a principal construção do espetáculo de Gorostiza, um texto dedicado à liberdade de viver; uma grande oportunidade para os atores mostrarem o seu talento. Entramos, neste texto, em contato com algo simples, porém essencial: o homem e sua liberdade para seguir a sua vida. Coisa antiga, mas em boa relembrada.  
     O contexto em que foi criada (repressão militar na Argentina, e suas metáforas), é coisa do passado, agora estamos diante de um espetáculo que celebra a vida. E a cenografia de Carlos Augusto Campos fala sobre isso, proporcionando um espaço cuja leveza dá suporte à fantasia do homem. Alguns pneus servindo de bancos, uma porta com cadeado para proteger Tuco do mundo lá fora, alguns objetos de cena. É a casa de um homem acuado. Já no início do espetáculo, quando vemos aquele senhor solitário, de pijamas, reproduzindo, com um entusiasmo pueril, as canções de nosso seresteiro Silvio Caldas, percebemos a importância do jogo cenográfico para sustentar a cena. Há praticáveis que criam a ilusão de algo maior invadindo a cena, um palco dentro do palco, iluminando o irreal (não é a toa que "Chão de Estrelas" é uma das músicas preferidas de Tuco). O teatro Eva Herz possui um aporte invejável de spots, de efeitos surpreendentes, porém pouco utilizados. A iluminação do diretor Daniel Archangelo possui um desenho  discreto. Tal opção o salvou da irresistível tentação de encher o palco de luzinhas... indicando estrelas, na cena em que Tuco canta o grande sucesso de Silvio Caldas.
     O "palco iluminado" e a dramática ênfase dada pelo "cantor" nos levam a uma personalidade em crise, estabelecendo contraste com a calma determinação do amigo, e essa diferença é cruel. Existe, no texto, um embate entre loucura e sanidade, algo estimulante e dolorido, que a direção de Daniel Archangelo enfatiza, destacando o essencial do texto: a tortura da vocação artística e, em contraste, a calma (conformada) do homem sem ambição. Entretanto, há momentos em que nos parece ver fantasmas em cena.
     O amigo, interpretado por Roberto Frota, mantém os pés no chão, não sonha, e quer trazer Tuco à realidade de seu cotidiano. E de tal maneira ele se empenha, que acaba tirando a fantasia do cantor, fazendo-a entrar na mais profunda depressão. O belo deste espetáculo são as trocas de sentimento e a compreensão dos dois amigos. O final da peça nos apresenta o renascimento do homem: a solidariedade. Uma cena linda, onde se estabelece a compreensão do amigo, e seu reconhecimento da fragilidade de Tuco. Amaral e Frota realizam a cena com simpatia e sensibilidade.
          Os momentos acima citados colaboram para o caráter amargo-otimista do espetáculo. "O Acompanhamento", do argentino Carlos Gorostiza vale por isso, e muito mais. E não é sem razão terem os dramaturgos do Plata, "los porteños", a reputação de ser um dos maiores criadores de teatro da nossa America. O fato é que o grotesco e o sublime andam de mãos dadas, nesta peça. 
     Com tradução e adaptação de Wilmar Amaral e Daniel Archangelo, algumas modificações foram concebidas no texto, para facilitar a compreensão do público e tornar o espetáculo mais próximo a ele: como a preferência das canções de Silvio Caldas ao tango de Carlos Gardel (a preferência por este cantor é encontrada no original de Gorostiza). Os figurinos de Ricardo Rocha representam o cotidiano da vida dos dois amigos, neste espetáculo que se quer contemporâneo.
     E, como sempre, há o mistério da reação do público. No caso de "O Acompanhamento", pessoas na platéia procuram identificação com os personagens. Um jogo aristotélico? Não é bem isso o que o tema propõe. Há, permeando o encontro dos dois amigos, algo muito mais inquietante do que um sonho a ser esquecido.  
"O ACOMPANHANTE" É UMA BOA OPORTUNIDADE DE ASSISTIR TEATRO. O ATOR E O JOGO. SEM  ARTIFICIOS.              

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