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sábado, 15 de setembro de 2012

"O DEUS DA CARNIFICINA"

Deborah Evelyn (Verônica), Julia Lemmertz (Annette), Orã Figueiredo (Michel) e Paulo Betti (Alain), em "O Deus da Carnificina", de Yasmina Rezza (foto Gulga Melgar)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial) 

     Ao som de "pour un peu d'opulance", tem início O DEUS DA CARNIFICINA, de Yasmina Reza, a peça mais procurada do 19º Porto Alegre em Cena, junto com o Berliner Ensemble, em sua primeira visita ao Brasil para apresentar a peça de Bertold Brecht, "Mãe Coragem". Os dois espetáculos, nem é preciso dizer, foram sucesso. Acompanhamos o deslocamento dos atores brasileiros que trabalham na peça de Yasmina Reza, do Rio de Janeiro até Porto Alegre, não só como crítica convidada, mas também como Organizadora do livro de poemas (e teatro), do pai de Julia Lemmertz, o ator Linneu Dias. Julia é uma das atrizes do LE DIEU DU CARNAGE (do original francês). A outra atriz do elenco é Deborah Evelyn. O Deus da carnificina é o homem, o ser humano.
     Mas agora comecemos pela verdadeira Via Crucis que é sair do Rio de Janeiro em um vôo da Gol, a Companhia de Aviação que mais atrasa, no Brasil. Para nós, dessa vez, foram três horas de atraso até conseguirmos chegar a Porto Alegre! Pela algaravia dos fãs, pedindo para serem fotografados ao lado das duas atrizes, suspeitamos que o atraso de vôo era caso pensado da Companhia, para dar uma alegria extra aos passageiros, que tiraram fotos, à vontade, das atrizes! Depois, ficamos sabendo que os atrasos são uma constante na Gol, o que nos fez preferir a Azul, em nosso retorno ao Rio, e ao aeroporto Santos Dumont, em detrimento do Tom Jobim, cujas condições são inviáveis.
     Mas passemos ao espetáculo. Não sem antes comemorar a beleza do neoclássico Theatro São Pedro, de Porto Alegre, uma jóia da arquitetura do final do século XIX, com capacidade para 700 pessoas (ficou lotado e com cadeiras extras, no espetáculo carioca). A primorosa  arquitetura  é muito bem protegida pela diretora Eva Sopher, responsável pela  restauração do teatro. No saguão podia-se encontrar a mesa com os livros do ator Linneu Dias, URBIA I e II, no qual encontramos críticas de cinema e o monólogo "Minh'Alma, Alma Minha", uma biografia poética do Linneu. A "banca", como o elenco da peça e os admiradores a chamavam, atraiu público e foi uma excelente demonstração do apego à cultura, feita pelos  gaúchos.   
     No início de peça, embalados por um hip hop francês (a trilha sonora é de Marcelo Alonso Neves, com música cantada por Maurício Baduh), os dois personagens-anfitriões, Verônica (Deborah Evelyn) e Michel (Orã Figueiredo), arrumam a sala de sua casa para receber o casal com quem terão uma delicada conversa sobre o comportamento de seus "guris" adolescentes. Durante os preparativos para receber as visitas, o diretor Emílio de Mello lança os primeiros dados, através do gestual estabelecido para os atores (trabalho compartilhado por Valéria Campos e sua Técnica de Alexander), dando as dicas para o público avaliar o caráter e o relacionamento do casal. Enquanto Verônica, a esposa delicada, prepara o ambiente doméstico de maneira cuidadosa, o não menos dedicado marido Michel vai revelando, pela sua movimentação, o homem rústico que é (note-se a maneira pela qual ele molha os dedos para virar as páginas dos livros de arte da esposa, são detalhes que constroem os personagens).
     O interessante, nesta direção de Emílio de Mello, é o que ele vai construindo, ajudado pelo excelente texto de Yasmina Rezza, os planos de uma narrativa cruel: o do público, que classifica as ações dos casais como "excentricidades", e o outro plano, o da verdadeira natureza do espetáculo, a complexidade do humano e a sua desagregação enquanto ser civilizado. Há uma tristeza profunda pairando sobre "a comédia". O subtítulo, "uma comédia irresponsável" é dado, imagino, para atenuar os acontecimentos.       
     E os "acontecimentos" se sucedem, estabelecendo o jogo de cena. O público se mobiliza, assistindo ao embate dos personagens e a dedicação dos atores: temos Paulo Betti, como Alain, o advogado sem escrúpulos; Deborah Evelyn é Verônica, a pesquisadora de mundos exóticos (estabelecendo o eterno complexo de culpa do mundo civilizado); Annette (Julia Lemmertz), é a implacável defensora dos deslizes de seu filho agressor, e crítica feroz do mundo que a cerca; Michel (Orã Figueiredo), o macho que conhece muito bem os seus limites, e teme ultrapassá-los.
     Mas não se pode esquematizar os personagens, neste embate tão contemporâneo. A peça é uma sucessão de fatos que acrescentam dados ao perfil ocidental: e é aí  que está a maestria da autora iraniana nascida em Paris. Yasmina Reza trafega por assuntos os mais variados, e a todos aborda com profundidade. A autora atinge o ponto preciso dessa profundidade quando presenteia Alain com a melhor frase da peça (o furor do personagem é interrompido, constantemente, pelos seus parceiros), quando Alain se refere à mesquinhez dos problemas caseiros que estão tratando, se comparados à situação caótica do mundo, na qual crianças muito menores do que seus filhos, matam, indiscriminadamente outros seres humanos: um mundo onde as armas estão ao alcance de suas mãos, "onde deveriam estar os pães de uma padaria", acrescento eu).
     Assisti diversas vezes a essa peça - e a cada apresentação - a frase de Paulo Betti (e a sua irônica interpretação, que lhe valeu uma indicação ao Prêmio Shell), está cada vez mais diluída. Essa frase, que lança um flash instantâneo sobre a carnificina atual. Até a palavra "carnificina" presente na frase, o ponto chave da peça, fica diluída pelo ruído ambiente, o que é uma pena. Ela colocaria a platéia, sequiosa por divertimento, diante de nossa miséria incontestável. Dessa última vez que assisti LE DIEU DU CARNAGE, a experiência foi interessante. Paulo Betti entrou na frase em um tom discursivo, dominante, o que impressionou o público. Para quem pensava que estava assistindo a uma comédia, foi uma tomada de consciência. Pena que foi um instante efêmero. Mas talvez seja assim mesmo a reação do ser humano a uma tomada de consciência, efêmera, ele prefere cortá-la logo, cortar os assuntos inconvenientes.
     E não há "assunto inconveniente" maior do que ver os cuidados excessivos do mundo ocidental com os seus pimpolhos (que, no caso, desfiguram uns aos outros em combates de rua), quando eles próprios (os adultos ocidentais) matam centenas de milhares de crianças, do mundo oriental, como se fossem poeira na areia. Além de considerar essa peça vital, diria essencial, folgo ao saber que ela está fazendo agora (já próximo às trezentas apresentações - estreou em 2010), o circuito do CEU, os Centros Educacionais Unificados de São Paulo, onde há alunos de todas as idades interessados em cultura, em teatro.
     Além dos já mencionados técnicos que compuseram o espetáculo, temos Flávio Graff com o seu cenário marcante: a mesa dominando a cena, como peças de armar de brinquedo infantil; e a iluminação feérica, dimensionada por pequenos núcleos, de Renato Machado; os acertados figurinos de Marilia Carneiro. Parabéns para a encenação dessa peça. É muito bom ver bom teatro!    
  

2 comentários:

  1. Ida querida (que rima ótima!), vi essa peça no Maison de France e fiquei apaixonada por tudo - pela inteligência do texto, das interpretações, da direção. Aplaudi de pé com vontade. Vendo-a agora com o seu olhar, no entanto, ela ainda ficou mais interessante e rica. Você é demais!

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  2. que blog medíocre! criticas onde somente globais são favorecidos (o chamado puxa saco).
    e essa sylvia, só ela comenta só ela responde, kkk... vc paga ela?

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