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terça-feira, 13 de agosto de 2013

"ÚLTIMOS REMORSOS ANTES DO ESQUECIMENTO"

Equipe de produção da "Sede das Cias"(foto divulgação)

Saulo Rodrigues e Letícia Isnard, em "Últimos remorsos antes do esquecimento" (foto Dalton Valério)

José Karini (ou será Remo Trajano?) e Cristina Flores (foto Dalton Valério)



CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Eis que "Últimos remorsos antes do esquecimento", de Jean - Luc Lagarce, volta à cena, dessa vez na casa da escadaria Selarón, na Lapa, onde funciona a "Sede das Cias". É nesta sede que se reúnem três grupos: Os dezequilibrados; Pangeia Cia. Deteatro, e Cia. dos Atores, sob o patrocínio da Petrobrás. A "Sede" foi inaugurada em programa duplo com Lagarce e a"A Serpente", de Nelson Rodrigues, também dirigida por Ivan Sugahara. Este diretor possui uma maneira arrojada de encenar textos densos para apreciação e enriquecimento de um público jovem, sequioso de novidades culturais. Talvez esse público nem sempre entenda o recado do diretor, mas sabe valorizar a sua intenção. Uma prova disso é a participação maciça de jovens, nas peças dirigidas por Sugahara
.....Quem ganha com isso? O público e, com certeza, no caso, o autor francês, Lagarce, com seus textos enigmáticos, carregados de intermitências e paixão. Ainda: os três grupos "titulares" acolhem convidados, como é o caso da Cia Centrífuga, com "Baleia" (nada a ver com Guimarães Rosa), dramaturgia e direção da própria Centrífuga, a apresentar-se durante a semana. Salvo engano, a "Cia dos Atores", de Henrique Diaz, continua ampliando seu espaço. É bem vinda a sua permanência.
     A "Sede das Cias" funciona em um sobrado antigo, em um correr de casas semelhantes, de azulejos coloridos que marcam o "trajeto das artes", entre a Lapa e Santa Teresa. O caminho para a "Sede" pode ser encontrado de diversas maneiras, principalmente para quem vem da Cinelândia em direção à Sala Cecília Meireles. Reestruturada, a "Sede das Cias" possui uma sala de espetáculo com todos os requisitos do teatro moderno: uma acústica perfeita, paredes negras de isolamento acústico que podem absorver qualquer tipo de cena, e spots tinindo de modernos.
     Quem comanda o espetáculo nesta estréia é Ivan Sugahara, um diretor que é também um inquieto pesquisador de linguagens teatrais. Dessa vez vamos assistir a sua versão do poético Jean-Luc-Lagarce, um criador de novas linguagens. Lagarce fala ao nosso inconsciente e é um grande formador de imagens cênicas. Dessa vez, suas imagens nas mãos de Sugahara trazem à tona um mundo de desencontros, onde o inconsciente aflora. Porém, Lagarce também faz uma concessão ao "consciente" despudorado, trazendo as conveniências (e inconveniências) dos problemas materiais.
    Cinco personagens dessa história - dos quais um é o habitante da casa, e o mais representativo do mundo de Lagarce, o dos interiores da alma. Assuntos de dinheiro afloram, retraindo ainda mais o estranho personagem recluso. Avesso a acontecimentos mundanos, suspeita-se que o personagem seja o representante da psique do autor. Porém, mais difícil do que ler Lagarce é situar quem é quem na relação dos atores. Para quem não tem intimidade com o trabalho deles, o programa, precário, não facilita a sua leitura.
     Podemos inferir, com muito boa vontade, que Helen é o personagem de Cristina Flores, pois há uma interação entre as duas. Tudo indica que a "passionatta" irreverente faz parte de um triângulo amoroso, do qual o estranho personagem solitário é (ou era) um dos vértices. O relacionamento humano (ou a falta de) é um dos temas favoritos de Lagarce. As peças do autor francês costumam priorizar a desolação e o absurdo da vida. Porém, estes sentimentos parecem não estar presentes nesse "Últimos remorsos..."
     Feitas as devidas observações, passemos aos atores envolvidos. Saulo Rodrigues e Letícia Isnard, por suas atuações exteriorizadas são uma surpresa absoluta: eles formam um casal fora dos padrões lagarcianos! Ou talvez sejam a exceção que acompanha a regra, com seu comportamento brincalhão e previsível (ele), e ela com a sua falta de compreensão dos acontecimentos: a loura de vermelho em um quadro típico de alienação.
.....Estas características do humano são uma exceção, em Lagarde, ou talvez sejam a maneira encontrada por ele para externar seu desassossego em relação ao gênero, nunca esquecendo que ele é um crítico implacável do comportamento de nossa espécie. Suspeitamos que aos demais personagens, com exceção do de José Karini (talvez o "alter ego" de Lagarce), mostram uma inadequação para a delicadeza e a vida. No caso da personagem de Ângela Câmara ou Nara Pardini, e sua indiferença pelos acontecimentos beira à irresponsabilidade "tchecoviana" de "O jardim das cerejeiras". Exagero? Aí começam as questões. Enquanto Paul (qual será o nome do personagem de Karini...?) busca refúgio na casa à venda, e é o mais emblemático do estilo do autor, há um clima indefinido / consciente / inconsciente entre os demais, excetuando-se o olhar crítico da menina de dezessete anos que, com sua lucidez, dá a verdadeira relevância aos acontecimentos. Ela é o olhar do "outro".
     Na história, os proprietários invadem a casa, para vendê-la. Em consequência, planeja-se o desalojar de um deles (PauI?), e quebrar a sua paz. A venda da casa é o motivo para o reencontro dos três. Porém, isso já não tem mais importância, o que lhes assalta, agora, é a necessidade de agir. Sente-se a ameaça do vazio, e tudo o que se percebe é refletido na expressão dos personagens. Essa peça, como todas as deste autor, foi escrita para ser preenchida com o olhar do outro.
     O personagem de Cristina Flores parece oscilar entre amores, risos nervosos e ações desmedidas. Uma atuação marcante, pois aceita/ recebe, o clima de Lagarce com um desafiador sentido de cena. Há risos incontidos, há agitação. E o olhar maduro da adolescente faz o contraponto, invocando a responsabilidade de viver.
     Muito já foi dito, e explorado, sobre arranjos de família e "seus negócios". Em geral, esse desligamento do aspecto material é tratado como se fosse uma irresponsabilidade de classe. No caso de Lagarce, um burguês francês - nessa grande sociedade burguesa que é a França - a alienação dos personagens só é comparável ao irracional dos aristocráticos personagens de Tchecov em "O jardim das cerejeiras". O desembaraçar-se das coisas materiais, esse  descompromissado olhar para as coisas da vida (a venda da casa é apenas uma metáfora desse descompromisso), dos personagens de Lagarce (e de Tchecov) refletem o absurdo desse teatro de absurdos. Em Lagarce há uma visão renovada sobre esse teatro.
     São tantas as perguntas que nos propõe esse texto impenetrável (e, por isso mesmo, interessante), que o autor nos desconcerta com os encontros e desencontros captados nesta peça. Os atores enfrentam o desafio, e há momentos em que os próprios personagens tomam consciência do clima de "estranhamento", tão bem captado pelo diretor. Esse sentimento é intensificado pela presença da luz de Renato Machado, seu clima fluído, como um retorno ao simbolismo que a tudo envolve.
      Sons, cenário e figurinos, colaboram para criar o clima da peça. O "esquecimento". Será essa uma maneira correta de "ler"Lagarce? O autor pós-moderno parece estar sempre envolvendo tempos e falas com um simples olhar. Ficamos com o som de Ivan Sugahara e a luz de Machado para dar credibilidade à cena. O cenário e os figurinos, modernos, de Ellen Millet complementam a ação.
Na Produção, Tarik Pugina; Assessoria de imprensa, Claudia Cavalcanti. Tradução, Alexandra Moreira da Silva. Aconselhamos uma visita a este autor tão intrigante. É bom ver bom teatro!


2 comentários:

  1. Extraordinária análise, que só uma mulher culta e profunda conhecedora e amante do teatro seria capaz de fazer.

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  2. Muito obrigada pelos elogios. Eu não mereço tanto. Te amo! bjs

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