IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos
de Teatro - AICT)
(Especial)
Há algumas coisas
interessantes a salientar, nesta estranha manifestação artística que assistimos
no dia 18/09/2014. Para começar, o título já é intrigante: "Na República da
Felicidade". Mais nos intriga ainda a reação do público a partir das
primeiras falas dos atores. Há uma risada quase geral - principalmente dos
jovens na platéia - quando certos personagens, como por exemplo a avó (Cris
Larin), manifesta os seus pontos de vista sobre a vida. Há singularidades em
todos os personagens.
Vemos a peça se iniciar
como uma cena corriqueira, um jantar em família. O texto é dividido em
capítulos, e este a que nos referimos se chama "A Desconstrução da Família",
ou algo assim, mostrando aspectos da incongruência da relação familiar. Tudo
bem encenado, atores que dão conta de seu recado. Porém, há algo estranho que
nos prende a atenção, apesar da cena tantas vezes repetida das relações
familiares. Há um certo estranhamento que gostaríamos de rotular de
"teatro do absurdo", mas não é nada disso o que o autor Martim Crimp
se propõe. Parece-nos, no decorrer das cenas, que o autor possui uma linguagem
teatral que não se preocupa com os cânones, ele está absolutamente empenhado em
passar a sua estranheza a respeito da vida e seus acontecimentos.
Principalmente quando se refere aos tempos atuais. Aí nos deparamos com uma
cena impressionante, talvez a segunda, quando os personagens são tragados pela
internet. Eles parecem relatar a vida "do outro lado", onde há o
perigo de ser "deletado" a cada momento.
Há também uma cena na
qual temos a impressão de que o autor - e o diretor - brincam com os improvisos que acontecem nas
escolas de teatro - a noiva e o noivo, e sua dificuldade em entender o que
sentem. Há momentos ótimos, na peça, e aos poucos a gente entra na brincadeira
(?). Não sei se este tipo de teatro "is not my cup of tea", ele é uma
experiência. O que sei é que o espetáculo oscila entre um assunto extremamente
sério e angustiante, misturado à desorientação musical e farsesca da
descontração. Há um músico em cena, o que dá fôlego ao todo. Ele se chama Luciano
Moreira. Não há necessidade de os atores apresentarem-se com vozes afinadas
(alguns a têm), pois o mais importante que eles querem mostrar não está ali,
naquele momento e naquela música. Elas são muitas, as músicas, ilustrando todas
as cenas. Pela ironia do texto de algumas delas - ficamos com a impressão que aí
tem dedo de Crimp. Pasmem, trata-se de um anti-musical.
É atualíssima a passagem
das duas garotas (Clarisse Zarvos e Tainá Nogueira) ao confrontar a maneira
suspeitosa e brutal de encarar as pessoas que acontece, em certos aeroportos de
"países estrangeiros", em sua paranóia. Com este viés crítico
aparecem também Luciana Fróes e Cris Larin, na cena da crítica às "cabeças
de vento" de nossa sociedade, ou aos maus costumes da mesma. O assunto é
"isso não tem nada a ver com política".
Mas isso também não tem
lá muita importância, diante do mal-estar totalizante dos personagens diante da
vida em si. É interessante ver o teatro colocar de forma tão clara este caos em
que estamos metidos, todos nós. Há uma qualidade teatral em tudo isso? Há, sim,
apesar de suas cenas descosidas, a verdade se impõe. Dizem que isto é teatro
pós-moderno. Ao colocar Cris Larin em primeiro plano, não é uma indicação de
destaque, mas de estranhamento do desempenho desta atriz. Ela é responsável por
momentos que esclarecem as intenções do autor. Muitos o fazem, porém com uma
leitura menos explícita. Há momentos perfeitos, como os que citei, e há
momentos confusos, porém, diante da verdade de cada personagem, eles funcionam.
Ironicamente, fazemos uma leitura com "começo, meio e fim", como nas
melhores tragédias convencionais. E concluímos, sim, que o ser humano é
inviável. E é isso que Felipe Vidal, Luciana Fróes (vejo-a pela primeira vez em
cena; tem grande, e refinada, sensibilidade), estão querendo mostrar, no texto
de Crimp.
Há ainda Clarisse
Zarvos e Tainá Nogueira; Gabriel Salabert e Sergio Medeiros, respectivamente o
pai e o avô, todos jogando com a sua verdade e a do seu personagem. Felipe
Vidal surge como o tio Beto. Este personagem, e sua mulher Madalena (Bianca
Messina), fazem um corte cênico na narrativa, aprofundando o mal estar. Há algo
a destacar na direção de Vidal: o elenco se apresenta confortável em cena, para
contar esta história de flashes sobre o nosso presente, e sobre o que ainda
está por vir. Tal "terremoto" tinha que vir justamente de um inglês!
Não sei qual a razão, mas eles têm lá a sua maneira de mexer com as nossas
cabeças. Olhem, o dia da estréia não tem nada a ver com o descosido desta peça,
não. A verdade é que ela se quer assim. É possível até que este seja o futuro
de nossa história.
Na ficha técnica temos na tradução Daniele Avila Small e Felipe Vidal. No figurino, Flavio
Souza acertando em seus, algumas vezes belos, figurinos femininos, como o da
cena final de Madalena. Em geral os atores se apresentam em trajes contemporâneos, descontraídos. Há Pedro
Kosovski na interlocução artística; e a cenografia, simples e funcional, é
de Aurora dos Campos. Tomás Ribas sempre acertando em suas idéias sobre
iluminação. Direção musical, Luciano Moreira e Felipe Vidal. As novas escolhas
teatrais, como o do Complexo Duplo (bom nome, não?), proporcionam uma troca viva
com o público. Às vezes vivas demais. Seu propósito é confundir.
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