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quarta-feira, 27 de abril de 2016

"DOROTEIA"


                                                   "Doroteia", de Nelson Rodrigues, direção
                                                                        Jorge Farjalla
                                                         atrizes Murtinho, Spiller, Deschamps e Farias.
                                                                          (Fotos Carol Beiriz)    

                        IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
     (Especial)
         
     "Doroteia", escrita por Nelson Rodrigues em 1949, oferece uma visão extravagante sobre a mulher e suas limitações. Apesar de o autor ter identificado esta peça como "uma farsa irresponsável" - ou por causa - tudo é permitido fazer-se com ela, em termos de montagem. Um exemplo do que estamos falando é a realizada no Rio de Janeiro, neste mês de abril, com direção de Jorge Farjalla, no belo espaço cênico do Teatro Tom Jobim, no Jardim Botânico.
     Em tempo: "Doroteia" foi a peça escolhida pela atriz Rosamaria Murtinho para celebrar os 60 anos de sua carreira como atriz. Pelo que pudemos observar, foi uma escolha desafiadora, pois Rosa interpreta D. Flavia, a mais velha das três mulheres que não dormem porque não querem sonhar... com homens! Essa historia ultrapassada - um mito, como querem alguns - apresenta a mulher com medo do homem e do sexo, preferindo todo o prazer que podem usufruir do sexo pela masturbação. Enfim, é um quadro que se adapta a uma época repressiva, a primeira metade do século XX, quando a mulher só podia escolher entre ser prostituta ou santa. As mulheres de Nelson, como sabemos, não se adaptam a nenhum destes rótulos, elas são, em geral, umas loucas.
     Loucura é o procedimento de D. Flavia, interpretada com garra e sofrimento por Rosamaria Murtinho. O que torna hilária, em nossos dias, tal historia, é que as mulheres, atualmente, estão preocupadas com outros temas, ficando a repressão e a feiúra para tempos passados. Mas sempre é bom lembrá-las, ainda mais na concepção alucinada (no bom sentido) de Jorge Farjalla.
     Três viúvas, interpretadas por Rosamaria Murtinho, Alexia Dechamps e Jaqueline Farias se retiram, em isolamento, o qual só lhes proporciona mal estar e angustia. Em sua vida lúgubre eis que surge a "mulher" - a prostituta bela,  que também vai ser corrompida pelo ódio ao homem. Diz Sábato Magaldi que Nelson Rodrigues está falando em arquétipos, mitos e inconsciente primitivo, mas o que vemos, com certeza, na encenação de Jorge Farjalla, é um grupo de mulheres vivendo a tragédia da finitude e do abandono. Vejamos o que o diretor mineiro fez, em sua versão da peça do autor pernambucano, dando-nos tragédia grega e teatro simbolista (aquele das pausas, luz e sombra, etc...)
     O jovem diretor mineiro, que admira e trabalha as peças de Nelson Rodrigues há vários anos, pensa um destino mitológico para essas "feras  insepultas", essas viúvas de roupagens setecentistas e pegada trágica. Porém, as mulheres de Farjalla (e de Nelson, nesta peça), não oferecem a grandiosidade da causa do amor traído, elas apenas destilam ódio ao masculino. Mas, o bom de se ver, na peça de Farjalla, são as surpresas, interrupções que certas cenas nos proporcionam, como o monólogo de Alexia Deschamps, que não imaginávamos uma atriz com tal ritmo teatral e tal poder de comunicação, ou de Dida Camero, como D. Assunta da Abadia, cuja intervenção dá energia "e voz cáustica" aos acontecimentos da mansão da D. Flavia. Ótimos, os desempenhos das duas. E Anna Machado, interpretando Das Dores, a filha que não sabe estar morta. Este é o mais inusitado e original do texto de Nelson Rodrigues, mas registramos também a viúva Carmelita, de Jaqueline Farias, papel bem defendido, apesar de não apresentar  maiores momentos, a não ser por ocasião de sua morte... mas aí nos antecipamos aos acontecimentos.
     Em termos de interpretação, Leticia Spiller, como a titular "Doroteia", poderia ser mais "diabólica" em sua bondade e arrependimento. Uma Maria Madalena arrependida? Como seria essa atuação? Leticia Spiller sempre nos oferece atuações explosivas, com seu canto e nudez infratoras, embora essa Doroteia não nos ofereça nada além do esperado. Não há grandes momentos para a pecadora, e o texto de Nelson Rodrigues, principalmente Doroteia, poderia proporcionar grandes momentos para Leticia: estes o diretor  Farjalla os criou. E aí vem a observação sobre "música e cenário": ao som de uma floresta ameríndia, com seus "troncos-cobras medusianas", vamos delimitando a ação - e tornando-a crível! - com suas litanias e "misas criollas" que dão o tom para a ação, complementando a fala das atrizes e alcançando o surreal do espetáculo. A nudez de Doroteia é um desses momentos. Sim, porque a montagem de Farjalla é surrealista!... e simbólica. Daí a sensação de alguma coisa estranha rondar a ação, algo estático e nebuloso... Às vezes o diretor consegue passar essa sensação. Sim, para assistir a "Doroteia de Farjalla", há que ter um contato mais direto com "o simbolismo". 
     ... Tal "escola" é refletida no cenário "penumbroso" de José Dias e na música que a acompanha, sendo "Besa-me Mucho" o único tema que a extrapola, dando "respiração" à prostituta Doroteia, em uma linguagem que alcança as intenções do autor. E, ao mesmo tempo que a peça "Doroteia" é a apoteose das "fofoqueiras" de Nelson, dando-nos o clima de mentira e despudor (e a música original de João Paulo Mendonça, Leila Pinheiro, Fernando Gajo e Rafael Kalil nos dão esse clima), há momentos em que pisamos em terra firme, pois "Doroteia", assim como as personagens de Tennessee Williams, também necessita "da bondade de estranhos" e, nessa categoria, citamos o diretor Farjalla, que tornou possível uma leitura diferenciada dessa peça tão cheia de armadilhas.       
     O cenário poderoso de José Dias, com seus troncos de árvores e os  claro/escuros (iluminação de Patricia Ferraz, Jorge Farjalla e José Dias),  nos dão o clima de horror que a rigidez da casa das três mulheres necessita. Na concepção do cenário, o espaço cênico pode se transformar em uma selva "medusiana", na qual os monstros estão soltos... Também encarregado dessa fantasia está João Paulo Mendonça, o diretor musical, seus músicos e os homens jarros (e botas), que nesta montagem se materializam (André Americo, Daniel Martins, Du Machado, Fernando Gajo Pablo Vares e Rafael Kalil). Eles fazem um bom contraponto com a solidão e o desespero das cinco mulheres.
     Neste clima estranho se desenrola o drama que Sábato Magaldi considerou "mítico", fixado por Lulu Areal fixa esse "clima estranho", acentuado pelos figurinos dos músicos, parecem ter saído de uma miscigenação com a floresta e seus mitos. E, voltando a Letícia Spiller e sua "vaporosa" Doroteia (do início da peça), e D. Assunta da Abadia (Dida Camero), dois vitais exemplos do que poderia ter sido o ritmo do (já cansado) comando da matriarca, personificada por Rosamaria Murtinho (D. Flavia). O único grande momento da matriarca é quando ela determina, em voz possante, a morte das viúvas que a traíram - ao se emocionarem com os corpos dos homens nus. (Para quem não sabe: "Doroteia" é a apoteose das mulheres que renegam os homens). Assistência de direção: Diogo Pasquim e Raphaela Tafuri. Podemos considerar um dos melhores momentos dessa montagem as "litanias" e o ótimo ritmo caribenho da "Misa Criolla" (trechos), que relembra a marca latino-americana das peças de Nelson Rodrigues! VALE A PENA ASSISTIR   "DOROTEIA"  -   É  UM  ESPETÁCULO CURIOSO.     EM CENA  ATÉ  PRIMEIRO   DE   MAIO.                        
 

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