Lady Macbeth (Claudio Fontana), Macbeth (Marcello Antony) Shakespeare (foto João Caldas) |
CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Acho que fui a
única crítica do Rio de Janeiro que gostou do "Macbeth" dirigido por
Gabriel Villela, e aqui apresentado no fim de semana (dias 10 a 14 de outubro,
no Teatro dos 4). Enfim, o julgamento crítico acaba ficando algo muito
subjetivo. Vamos aos pontos positivos: antes de tudo, a segurança dos atores, a
impostação da voz, a sua movimentação. Francesca Della Monica, com a sua
"antropologia da voz", diz-nos: "Em Macbeth, Shakespeare
renuncia à convenção aristotélica de espaço único, fazendo explodir a ação em
uma multiplicidade de ambientes físicos e simbólicos".
Na montagem de Villela, o simbólico é enfatizado pelo diretor. A tal ponto, que causa
estranheza aos mais ortodoxos admiradores do dramaturgo, pois muitas
vezes a palavra, neste espetáculo, é trocada pelo gesto enfático. Unindo-se à proposta, a iluminação de Wagner Freire enfatiza o clima simbólico, com suas lamparinas e pontos de luz. O trabalho
de movimento de Ricardo Rizzo se harmoniza com o todo, estabelecendo o desempenho preciso dos atores. Ainda
sobre a ficha técnica: a ambientação musical de Ernani Maletta capta o ritmo da palavra falada - e como os atores de Villela externam bem esse ritmo! e o responsável pela trilha sonora, ainda o diretor Villela, tem a sensibilidade de colocar, pontuando o final da tragédia, a modernidade incontestável de uma frase musical de Jim
Morrison na música "The End", repetindo o refrão: "This is the end, my friend".
Tocamos em seis pontos importantes que dão
força ao espetáculo. O sétimo (não obrigatoriamente nessa ordem) é o figurino,
de Shicó do Mamulengo e Gabriel Villela,
onde funciona perfeitamente uma estética que une Oriente e Ocidente, neste
país cosmopolita que é o Brasil. É a marca registrada do diretor: das cabeças
coroadas da velha Europa às mais ousadas representações do barroco nordestino brasileiro. Dessa vez foram destacados os colarinhos engomados de um passado
longínquo. Usanças de uma época, são concessões aos velhos símbolos. Quanto ao mais, temos os bordados espelhados da Índia, os adereços estilizados de Shicó,
coroas, guilros e arames, representando as "tecedeiras" do
nordeste brasileiro. Eles enfeitam as cabeças coroadas. São rendas, teares, agulhas, que se transformam em
espadas, em cetros - em palácios, estabelecendo uma dinâmica que dá vida ao espetáculo. E
tudo termina em rock.
Aliás, depois do Macbeth de Fauzi Arap
(onde os atores declamavam Shakespeare ao som de rock!), nada mais provocador
apareceu nos palcos brasileiros em relação a Macbeth, ultimamente. O espetáculo
de Villela está recheado de símbolos, talvez por isso tanta liberdade com o
texto (tradução de Marcos Daud), pois os gestos e os olhares substituem as
enfatizadas passagens de ação e horror. O assassinato dos filhos e da esposa de
Macduff (Helio Cicero) fica, assim, só na vingança. Não há o habitual impacto
da narrativa com a chegada dos assassinos, e o terror de Lady Macduff, pois os
fatos, simplesmente, só foram relatados!
Talvez o horror da nossa imaginação seja mais terrível que a cena em si. Talvez. Esse
corte pode ser considerado (por alguns) a grande falha do espetáculo. Mas foi
assim que o diretor pensou a ação que iria contar. Mexer com o texto também faz
parte das encenações bem sucedidas. Outra foi a bondade de Duncan (Helio
Cicero) ser confundida com placidez. Entretanto, Duncan é apresentado, neste
espetáculo, como um Rei simpático e cheio de urbanidade.
Os símbolos, Lady Macbeth (Claudio
Fontana), os carrega com mais desenvoltura entre seus véus. Inesquecível a simbólica
cena dos dois esposos, esvoaçando como dois morcegos noturnos, ao encontro de
sua própria desgraça. O sangue que escorre desse trono fracassado é
representado por fios de seda caindo das mãos ensanguentadas dos esposos (e das
mãos do assassinado Duncan). Cenas extremamente visuais, como visuais são as
marcações dos atores, dirigidos por César Augusto, Ivan Andrade e Rodrigo Audi,
com supervisão geral de Gabriel Villela. O diretor seguiu à risca as
orientações da Cia "Os Homens do Rei" (só para lembrar: Jaime I, sucessor de
Elizabeth, filho de Mary Stuart, era também um apaixonado
pelo teatro!). Naquele tempo não havia mulheres no palco. No Macbeth de Villela também não. E Claudio Fontana faz com
galhardia o papel do efebo.
Entre as cenas inesquecíveis temos ainda a
da morte da Lady, voltando ao útero da criação, útero esse encarnado na figura
do autor/narrador (Shakespeare?), interpretado por Carlos Morelli. Ele é o dono
do destino de Lady Macbeth. O oitavo ponto culminante do espetáculo é a
cenografia de Márcio Vinicius. Enquanto no The Globe eram feitas passagens com telões indicando os lugares percorridos e as cenas declamadas, Márcio Vinicius coloca a ação entre teares, esculturas
representando árvores, muita renda e tecidos nordestinos, caixotes, malas, e bancos. O cenário é
provocante, instigante, é um campo de batalha desarrumado, como é desarrumado o
espírito da peça. É a região onde tudo pode acontecer. Sim, dirão os que me
lêem agora, há nesta crítica muita descrição da ficha técnica, mas Shakespeare
é texto... é interpretação.
Pois bem, falta pouco, já falei do
trabalho de Francesca com a antropologia da voz. Falarei agora da "força
de intenção", de Babaya, preparadora vocal, e a projeção da voz dos
atores. Diz Babaya: "cuido da palavra [...] a montagem proposta por
Gabriel Villela tem traços épicos [...] e isso exige uma projeção vocal de
grande intensidade, mas o diretor quer delicadeza, simplicidade na
interpretação e evitar os "exageros".
Perfeito. E percebemos, como resultado de seu trabalho, a respiração de
Marcello Antony (Macbeth), chegando a surpreender o acerto nas inflexões do
personagem: perplexidade, fúria, ambição, medo - tudo isso representado pelo
tom da voz e a convincente expressão facial, sem exageros. Sem querer parecer
iconoclasta, digo que Gabriel Villela foi ao ponto, com essa criação do
guerreiro infame: os demais participantes, com exceção da Lady Macbeth, parecem
coadjuvantes frente à magnitude desse excelente personagem. Destacam-se, além do
casal, as três bruxas que desafiam o público, interpretadas por Marco Furlan,
José Rosa e Rogerio Brito.
Há também atores que marcam seus personagens, neste Macbeth, e damos
como exemplo o Banquo de Marco Antonio Pâmio; o Malcolm, de Marco Furlan, e os
vários papéis em que se desdobra Rogerio Brito, principalmente o porteiro da
noite, com as sacudidelas sonoras de ombros, guizos e moedas, e seu humor, - abrindo as tão aclamadas intervenções do povo nas peças de Shakespeare. É sua,
também, a interpretação do velho, que exclama: "Os poderes celestiais
estão demonstrando o seu desagrado". Essa constatação é lamentada por
todos os personagens "do bem", na tragédia. Entretanto, o
"diretor geral" teve a delicadeza de não fazer nenhuma ligação com as
coisas do nosso país, demonstrando com isso sensibilidade, ao mesmo
tempo em que soube atender aos insights
psicológicos do autor. Única falha, para quem gosta de efemérides assustadoras:
as aparições do fantasma "não" têm os apelos aterrorizantes de
montagens anteriores, embora a perplexidade e o terror estejam estampados nas
expressões do Rei usurpador.
A união São Paulo/Minas Gerais esteve, mais
uma vez, bem representada. É sempre um prazer ver os espetáculos assinados por
Gabriel Villela. Desejamos um pronto regresso de sua Cia ao Rio de Janeiro,
pois muita gente não teve oportunidade de assistir a esse Macbeth!
Excelente visão da peça,gosrtei muito da peça !!!
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