Thiago Lacerda interprtando "Hamlet", de William Shakespeare, direção de Ron Daniels |
CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de
Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)
O maior mérito do Hamlet, de
Shakespeare, dirigido por Ron Daniels foi trazer o trash do velho mundo para as
antigas colônias portuguesas, com citações de sua história recente. O
espetáculo é dividido em dois atos, e só ficamos sabendo das intenções do
diretor quando cai o telão e o céu nublado é substituído por ruelas onde o lixo
impera. Uma Dinamarca pós- hecatombe? E o segundo ato se inicia!
Passa-se tanto tempo assim, até que possamos
nos interessar pelo espetáculo, pelos atores, e pela história que estão nos contando?
Sim, já tivemos Hamlet
sapateando, dançando balé, exibindo insuspeitados talentos para a esgrima; para
a loucura ou para o palco de histórias palacianas: mas nunca tínhamos visto um Hamlet
tão cais do porto... ! Será isso mesmo que o diretor quer apresentar, um Hamlet
das ruas escuras, do lixo, dos ratos? Quer apresentar a alma escura do poder? A
reação dos puros à alma impura dos poderosos?
O primeiro ato parece um mau drama,
onde tudo dá errado, onde os atores não sabem dizer as suas falas e onde não há
sangue, nem veias. Será proposital? Não acreditamos que tal descompasso seja
experimentado por profissionais. E não sabemos que passe de mágica os transforma,
no segundo ato: do amorfo Polônio surge um
divertido primeiro coveiro (Roney Facchini). O “intrometido” e “burro” Polônio,
segundo Hamlet, deve ser assim como nos apresenta Facchini?
Ou, escondido por detrás de Reinaldo,
o servidor de Polônio, deve surgir o homem do povo de Fernando Azambuja, o
coveiro, com toda a sua vontade de entender o mundo? E, quem é apaixonado por
Selma Egrei, como deve receber a sua Rainha Gertrudes? Ela só adquire vida um
pouco antes de morrer! É possível aos atores fiquem irreconhecíveis, a serviço
do espetáculo? Na verdade, há momentos em que a Rainha aparece, principalmente
quando contracena com o filho, ou quando foge, horrorizada, do Rei assassino.
Gertrudes é uma mulher século XXI? Não
fica muito claro, mas talvez seja essa a proposta.
Quanto ao Rei Claudio, o ator é-me
desconhecido. Portanto, é impossível saber se Eduardo Semerjian teve, em sua
carreira, melhores momentos como ator, mas em Hamlet ele ainda deve provar que pode ser o Rei Claudio. Ou talvez
essa estética sem alma faça parte da moderna encenação de Hamlet? Ou dessa
experiência do diretor?
Em todo caso, pelas perguntas,
quer-me parecer que o Príncipe da Dinamarca, versão Ron Daniels, o brasileiro
que fugiu do terror, pegou-me de surpresa. Os povos do além-mar há muito tempo
vivem de suas cabeças coroadas, isso é ponto pacífico. Há um “know-how”, vindo
da Ilha e adjacências, para lidar com o
insólito. Fantasmas, impulsos, sexo reprimido, agressividade, impunidade, são
bons argumentos. Não entendo como é possível não colocar tudo isso em um só momento,
e uma só intensidade, e levar o público à loucura? Há, na platéia, um povo
sequioso, que nunca viu Hamlet, não conhece teatro, e muito menos Shakespeare.
É obrigação do artista dar a esse tipo
de espectador um bom espetáculo!
O ator Thiago Lacerda entrega sua
alma, mas acontece que ele não a possui, apesar de sua grande ternura pelo
personagem. Não sei quem a roubou, a alma de Hamlet. Talvez o diretor? É impressionante ver aquele gigante carregar a
doçura e não conseguir transmiti-la! Há algo errado. Hamlet desistiu de sua
luta, antes de começá-la!
O pai de Hamlet e o primeiro ator,
interpretados por Antonio Petrin, estão monocórdios. Os dois amigos trapaceiros
e de nome histórico Rosencrantz e Guildenstern, estão presentes na
interpretação de Chico Carvalho e Ricardo Nash, porém poderiam estar mais vivos!
A grande surpresa da noite é a
simplicidade e a delicadeza do ator que interpreta Horácio (Rafael Losso), um
verdadeiro sensitivo. Anna Guilhermina às vezes carrega Ofélia em seus braços, e sua cena com o irmão
Laertes (Marcos Suchara), é um dos bons momentos da peça. Mas as cenas não tocam o
público! Estranhamente, neste Hamlet, não há teatro.
Mas há um grande momento, que coloca
um pouco da intenção do diretor: é quando a realidade entra em cena, e vemos o artista
se colocando, inteiro, em uma experiência de vida. Só não sabemos o porquê de Hamlet
ser torturado, pois o príncipe sempre foi tratado com amor pelos que o cercam. Talvez
por ser teatro contemporâneo? Mesmo no navio em direção à Inglaterra, e durante
a sua relatada fuga, não há agressividade, não há tortura. Talvez seja a
necessidade do diretor, saído do Brasil nos anos 70, de mandar o seu recado: não
só o castelo de Elsinor possui os seus fantasmas – e é preciso exorcizá-los.
A ficha técnica fez um bom
trabalho. Captou bem. O cenário é impressionista, belo, forte. André Cortez
está de parabéns. Os figurinos de Cássio Brasil atingiram o que se propunha a
estética do diretor, mas Cássio não é perdoado ao vestir tão mal uma bela
mulher: a Rainha Gertrudes. O desenho de
luz funciona muito bem, é de Domingos Quintiliano. As coreografias de luta
foram criadas por Ricardo Rizzo e a trilha sonora por Aline Meyer. A tradução (moderna,
com termos atuais), da peça de Shakespeare, é feita pelo diretor e por Marcos
Daud. Concepção e direção de Ron Daniels. Os sentinelas do início da peça, e os comediantes
do segundo ato - os atores visitantes do
castelo de Elsinor, estão bem representados por André Hendges, Marcelo Lapuente
e Everton Romito, que também interpreta Osric, o bobo da corte. O capitão do
exercito é interpretado pelo ator Rogério Romera.
Olá, sou Eduardo Semerjian, que faz o Rei Cláudio nessa montagem. Acabei de ler sua crítica, e confesso, a senhora também é-me desconhecida. Seu breve currículo impressiona e tenho o maior respeito por isso, e por isso não quero que leve a mal o que vou lhe dizer. Honestamente.
ResponderExcluirPrimeiro, vendo o seu mesmo breve curriculo, diz na última frase "Minha preocupação é apontar acertos e erros, sempre de maneira poética.". Por mais que a senhora tenha estudado e seja membro de um órgão (possivelmente) francês de críticos, dizer que aponta erros e acertos me parece uma certa presunção. Como se a Arte, especificamente no nosso caso a teatral, fosse uma ciência exata, onde há acertos e erros. Claro, há o que se comunica com o público e o que se mantém em contato com o texto (sem fugir dele, quero dizer), mas pelo que li, nossos "erros mais graves" foram de interpretação e direção. A parte técnica foram "acertos". Admito que quando a senhora assistiu a peça possa ter sido uma má noite pra nós, atores, e aí que se há de fazer? Estamos lá nos arriscando mesmo. Mas será que todos os atores foram tão ruins, e merecedores de tanto desprezo. Não quero falar em causa própria então nem falarei de mim. Se tenho experiência anterior ou não, é algo que a senhora pode ver na própria Internet. se tenho alma, ou não, espero que Mephisto não a tenha levado. Mas dizer que as interpretações de Thiago, Roney e outros não tinham alma. Dizer que "Thiago Lacerda não possui alma, apesar da entrega", parece-me (usando seus termos) um erro. E finalmente (não vou falar detalhe por detalhe, pois não há espaço), dizer que não há teatro? Perdoe-me, mas acho que assim como provavelmente nós estávamos numa má noite, a senhora também estava pensando em algo externo ao que acontecia lá. Pode-se gostar ou não, mas não haver teatro, é uma frase excessivamente agressiva e grosseira do ponto de vista de uma análise de um espetáculo. Temos discordâncias graves sobre o que a senhora escreveu e o que fizemos no palco. E por isso, precisava escrever-lhe essa mensagem. Boa sorte para a senhora.
Prezado Eduardo,
ResponderExcluircreia, não me é fácil fazer um julgamento duro como o que eu fiz de Hamlet, versão Ronald. Para o AICT só envio críticas favoráveis. Trata-se de uma corrente muito gentil de apreciação entre países. Desejo de coração que um dia possa fazer uma avaliação positiva de seu trabalho.
Também desejo-lhe sorte.
Abraço,
Ida Vicenzia