Adassa Martins, Vilma Melo e Luisa Arraes em 'A Santa Joana dos Matadouros', de Bertold Brecht. Tradução Roberto Schwarz. Direção Marina Vianna e Diogo Liberano. (Foto Thaís Grechi) |
IDA VICENZIA
(da Associação
Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Enfim estamos recomeçando o ciclo Bertold
Brecht! Esperamos que este A SANTA JOANA DOS MATADOUROS seja o primeiro de
muitos que virão. Engraçado, já tão acostumados estamos com o título "Santa
Joana dos Matadouros" que pensamos ser o "artigo" "A" antes
do título apenas uma maneira de caracterizar a diferença dessa montagem. Não é. Fica a dúvida.
O texto escrito por Brecht e traduzido por
Roberto Schwarz está um pouco alterado, digamos, na versão dramatúrgica de
Diogo Liberano, mas reconhecemos que a criatividade da presente montagem torna
mais acessível a estrutura do texto do alemão. Percebemos um Brecht mais "palatável"
(leia-se atualizado), para as gerações menos sofridas, politicamente, na
direção de Marina Vianna e Diogo Liberano. Unindo a bem sucedida direção temos
a atualização, principalmente estética (em uma criação absolutamente genial de
Bia Junqueira e Laura Samy, respectivamente Arte e Movimento), deixando-nos
cheios de esperança no possível fascínio imorredouro do teatro épico.
Mas não é só de estética que vive o atual
espetáculo. O texto, escrito entre o final da década de 20 e início dos anos 30,
do século passado, nos reporta ao momento em que Bertold Brecht
"vivia" a mais desesperada aula de capitalismo, em seu exílio
estadunidense. O personagem Mauler, o capitalista (interpretado por João Velho),
apresenta-se, inteiro, em seu dualismo sentimental. Ele é o retrato do
"homem do capital" norte-americano, personagem que pensa se justificar
através de ações magnânimas.
Mauler é o "Comandante" de um
momento exemplar do capitalismo selvagem. Dizem que o dramaturgo alemão
inspirou-se em J. D. Rockfeller para criar esse Mauler que se sentia um nobre
idealista, a se preocupar com os sentimentos dos menos privilegiados. Embora
"o rei dos matadouros de Chicago" tivesse um temor insano da
proximidade "dessa gente de pouca moral", ele sempre dá um jeito de
raciocinar que "é no trabalho que se entendem proletariado e capital!"
Na adaptação (excelente) de Liberano, há momentos que Mauler chega a se inspirar
em Ijucapirama, de Gonçalves Dias, para cantar a força de seus subordinados. Non sense! Mas João Velho o faz com tal
seriedade que ficamos em dúvida se é Gonçalves Dias, mesmo, que está sendo
citado...
Brecht
escreveu as seguintes palavras para Mauler: "Pobre de mim! Um duplo desejo
remói meu coração. Sinto-me atraído por
um nobre ideal e, inexplicavelmente, também o lucro chama por mim!". No texto, o tresloucado gestor encontra em quem personificar seu
"nobre ideal": nada menos do que na idealista, santa e louca, Joana
Dark, a líder dos Boinas Negras, que pensa enfrentar a crise de 1929 com sopa e
hinos religiosos para os desempregados. Joana é interpretada por Luisa Arraes,
em entrega emocionante.
A
peça é uma sequência de momentos essenciais, tendo ótimas interpretações,
como a de Leonardo Netto dando vida ao astuto corretor Slift; ou Vilma Melo,
uma excepcional atriz, interpretando a viúva Luckernidle. Ou ainda Gunnar
Borges e Leandro Santanna, cujas interpretações se destacam em vários momentos.
Porém Sávio Moll, o Cridle, "herdeiro" das idéias de Mauler, acaba dirigindo-se
à platéia, em um quase monólogo sobre o desvario do mercado - e o
faz com tal intensidade, que nos recorda 'um certo senador Marco Antonio' às
avessas. Esse defende "um homem honrado", Julio Cesar: Cridle defende o pouco honrado
"jogo do capital".
A peça é uma avalanche de
acontecimentos, sem repouso ou compaixão. E é isso mesmo o que o nosso Brecht
queria. Desde o início do espetáculo, com as palavras da devota Marta, dos
Boinas Negras, interpretada pela doce Adassa Martins, palavras
nas quais comenta a pirâmide humana que é a nossa sociedade - até o final do
espetáculo, quando dois atores unem-se, em reconhecimento e dúvida, sobre os
acontecimentos que acabaram de presenciar, e jogam para a platéia, em um final
"brechtiano":
- Mas
isso um dia
vai mudar" - diz um dos
atores.
E o
outro responde: - "Sim. Um
dia".
... esse comentário é feito muito
discretamente, como "um piscar de olhos de brechtianos para
brechtianos". Imaginamos que a platéia pensa no que está acontecendo em
nossos dias, e na possibilidade de tudo mudar. Está em nossas mãos. O desejo de
Brecht - 'mudar o mundo', através de um público pensante, continua cada vez mais vivo,
neste espetáculo.
E, ainda: estamos na presença de uma
celebração do teatro moderno, ou pós-moderno (como queiram), cuja leveza e
mobilidade solucionam os possíveis problemas de multidão e suporte, dos espetáculos
de Brecht. Para isso, contamos com a Arte de Bia Junqueira, principalmente o
recurso das camisetas representando o povo e os trabalhadores, e o das caixas representando o movimento concreto da fábrica,
e de outras cenas. Impossível não mencioná-los. Esses recursos, em especial o
das camisetas, que oferece várias possibilidades de interpretação, uma vez que
podem representar os trabalhadores, a massa humana do povo, ou ainda ilustrar
pensamentos e momentos. Muito bom.
A Iluminação de Paulo Cesar Medeiros. A
Direção Musical de Rodrigo Marçal e Arthur Braganti - que está presente, em
cena, fazendo música - e a Direção de Movimento de Laura Samy (a registrar o
encadeamento e a força dessa direção de Laura), são todos eles momentos de extrema beleza e
sincronia, nesse espetáculo tão incomum. ACONSELHA-SE, COM VEEMÊNCIA,
ASSISTI-LO!
Grande Ida!! Obrigado pelo texto! beijos
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSó tenho dúvida sobre o Ijucapirama... bjs
ResponderExcluirGrande Ida, sua cultura sempre me extasia. Maravilhosa crítica. Será que ainda dá tempo de assistir? Vi muita coisa de Brecht na vida, mas nunca assisti a essa peça. Vou me informar. Beijos.
ResponderExcluirAchei muita boa sua análise, Ida. Pelo blog podes aprofundar aspectos que nos jornais somos tolidos, pois no máximo temos 3.000 carcteres e corremos o risco de reduzirmos as montagens. Passei a falar na primeira do plural porque também escrevo críticas, são ocasionais, mas escrevo. Tenho uma coluna em Manaus. Nos falamos. Abraços.
ResponderExcluirDarth Vader, gostaria de ler as suas criticas. Obrigada pela interessante observação. Abraços!
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