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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

"A SANTA JOANA DOS MATADOUROS"


Adassa Martins, Vilma Melo e Luisa Arraes em 'A Santa Joana dos Matadouros', de Bertold Brecht. Tradução Roberto Schwarz. Direção Marina Vianna e Diogo Liberano. (Foto Thaís Grechi)



IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

      Enfim estamos recomeçando o ciclo Bertold Brecht! Esperamos que este A SANTA JOANA DOS MATADOUROS seja o primeiro de muitos que virão. Engraçado, já tão acostumados estamos com o título "Santa Joana dos Matadouros" que pensamos ser o "artigo" "A" antes do título apenas uma maneira de caracterizar a diferença dessa montagem. Não é. Fica a dúvida.
     O texto escrito por Brecht e traduzido por Roberto Schwarz está um pouco alterado, digamos, na versão dramatúrgica de Diogo Liberano, mas reconhecemos que a criatividade da presente montagem torna mais acessível a estrutura do texto do alemão. Percebemos um Brecht mais "palatável" (leia-se atualizado), para as gerações menos sofridas, politicamente, na direção de Marina Vianna e Diogo Liberano. Unindo a bem sucedida direção temos a atualização, principalmente estética (em uma criação absolutamente genial de Bia Junqueira e Laura Samy, respectivamente Arte e Movimento), deixando-nos cheios de esperança no possível fascínio imorredouro do teatro épico.  
     Mas não é só de estética que vive o atual espetáculo. O texto, escrito entre o final da década de 20 e início dos anos 30, do século passado, nos reporta ao momento em que Bertold Brecht "vivia" a mais desesperada aula de capitalismo, em seu exílio estadunidense. O personagem Mauler, o capitalista (interpretado por João Velho), apresenta-se, inteiro, em seu dualismo sentimental. Ele é o retrato do "homem do capital" norte-americano, personagem que pensa se justificar através de ações magnânimas.    
     Mauler é o "Comandante" de um momento exemplar do capitalismo selvagem. Dizem que o dramaturgo alemão inspirou-se em J. D. Rockfeller para criar esse Mauler que se sentia um nobre idealista, a se preocupar com os sentimentos dos menos privilegiados. Embora "o rei dos matadouros de Chicago" tivesse um temor insano da proximidade "dessa gente de pouca moral", ele sempre dá um jeito de raciocinar que "é no trabalho que se entendem proletariado e capital!" Na adaptação (excelente) de Liberano, há momentos que Mauler chega a se inspirar em Ijucapirama, de Gonçalves Dias, para cantar a  força de seus subordinados. Non sense! Mas João Velho o faz com tal seriedade que ficamos em dúvida se é Gonçalves Dias, mesmo, que está sendo citado...
     Brecht escreveu as seguintes palavras para Mauler: "Pobre de mim! Um duplo desejo remói meu coração. Sinto-me  atraído por um nobre ideal e, inexplicavelmente, também o lucro chama por mim!". No texto, o tresloucado gestor encontra em quem personificar seu "nobre ideal": nada menos do que na idealista, santa e louca, Joana Dark, a líder dos Boinas Negras, que pensa enfrentar a crise de 1929 com sopa e hinos religiosos para os desempregados. Joana é interpretada por Luisa Arraes, em entrega emocionante.
     A peça é uma sequência de momentos essenciais, tendo ótimas interpretações, como a de Leonardo Netto dando vida ao astuto corretor Slift; ou Vilma Melo, uma excepcional atriz, interpretando a viúva Luckernidle. Ou ainda Gunnar Borges e Leandro Santanna, cujas interpretações se destacam em vários momentos. Porém Sávio Moll, o Cridle, "herdeiro" das idéias de Mauler, acaba dirigindo-se à platéia, em um quase monólogo sobre o desvario do mercado  -  e o faz com tal intensidade, que nos recorda 'um certo senador Marco Antonio' às avessas. Esse defende "um homem honrado", Julio Cesar: Cridle defende o pouco honrado "jogo do capital".
     A peça é uma avalanche de acontecimentos, sem repouso ou compaixão. E é isso mesmo o que o nosso Brecht queria. Desde o início do espetáculo, com as palavras da devota Marta, dos Boinas Negras, interpretada pela doce Adassa Martins, palavras nas quais comenta a pirâmide humana que é a nossa sociedade - até o final do espetáculo, quando dois atores unem-se, em reconhecimento e dúvida, sobre os acontecimentos que acabaram de presenciar, e jogam para a platéia, em um final "brechtiano":
     - Mas  isso  um  dia  vai  mudar" - diz um dos atores.
     E o outro responde:  - "Sim. Um dia". 
     ... esse comentário é feito muito discretamente, como "um piscar de olhos de brechtianos para brechtianos". Imaginamos que a platéia pensa no que está acontecendo em nossos dias, e na possibilidade de tudo mudar. Está em nossas mãos. O desejo de Brecht - 'mudar o mundo', através de um  público pensante, continua cada vez mais vivo, neste espetáculo.
     E, ainda: estamos na presença de uma celebração do teatro moderno, ou pós-moderno (como queiram), cuja leveza e mobilidade solucionam os possíveis problemas de multidão e suporte, dos espetáculos de Brecht. Para isso, contamos com a Arte de Bia Junqueira, principalmente o recurso das camisetas representando o povo e os trabalhadores, e o das caixas  representando o movimento concreto da fábrica, e de outras cenas. Impossível não mencioná-los. Esses recursos, em especial o das camisetas, que oferece várias possibilidades de interpretação, uma vez que podem representar os trabalhadores, a massa humana do povo, ou ainda ilustrar pensamentos e momentos. Muito bom.

     A Iluminação de Paulo Cesar Medeiros. A Direção Musical de Rodrigo Marçal e Arthur Braganti - que está presente, em cena, fazendo música - e a Direção de Movimento de Laura Samy (a registrar o encadeamento e a força dessa direção de Laura), são  todos eles momentos de extrema beleza e sincronia, nesse espetáculo tão incomum. ACONSELHA-SE, COM VEEMÊNCIA, ASSISTI-LO!                   

6 comentários:

  1. Grande Ida!! Obrigado pelo texto! beijos

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Só tenho dúvida sobre o Ijucapirama... bjs

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  4. Grande Ida, sua cultura sempre me extasia. Maravilhosa crítica. Será que ainda dá tempo de assistir? Vi muita coisa de Brecht na vida, mas nunca assisti a essa peça. Vou me informar. Beijos.

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  5. Achei muita boa sua análise, Ida. Pelo blog podes aprofundar aspectos que nos jornais somos tolidos, pois no máximo temos 3.000 carcteres e corremos o risco de reduzirmos as montagens. Passei a falar na primeira do plural porque também escrevo críticas, são ocasionais, mas escrevo. Tenho uma coluna em Manaus. Nos falamos. Abraços.

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  6. Darth Vader, gostaria de ler as suas criticas. Obrigada pela interessante observação. Abraços!

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