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sábado, 31 de março de 2018

"O REI DA GLORIA"


IDA VICENZIA
 (da Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT)
(Especial)

 Anderson Cunha (Foto Rodrigo Castro)

REI  DA  GLORIA
     ... Eu gosto de escrever assim. Solta. Dessa vez é sobre o monólogo criado por Anderson Cunha, interpretado por ele mesmo, em cartaz até dia 1º de abril na Sala Espelho, Espaço Baden Powell. A encenação fala de moradores de rua e outros personagens que animam as ruas do bairro da Gloria, no Rio de Janeiro. Atenção: poderia ser qualquer rua, de qualquer bairro desta cidade confusa, mas Anderson aceitou em cheio, escolhendo esse bairro onde tantos acontecimentos confundem ainda mais essa cidade.

     Há muitos monólogos por aí... Alguns excelentes. Este é um deles. Sua construção vem de muito longe, preenchendo momentos da formação de seu autor. Composição, direção e atuação do espetáculo foram surgindo no trabalho daquele menino da Casa da Gávea, o aprendiz de ator de Paulo Betti, sempre distribuindo, para os frequentadores da Casa, um sorriso acolhedor e esperto. Às vezes a bondade se manifesta assim. Esse menino era Anderson Cunha, o autor do monólogo hoje em questão! Fiquei curiosa. Queria saber o que ele tinha para nos dizer, agora, sobre a tão dolorosa questão dos moradores de rua. E ele tem, agora, muita poesia para nos dar!

     (Mas isso não é uma crítica de teatro! Afinal, o que é uma crítica de teatro? A respeito desse assunto reforço a minha opinião sobre a liberdade do artista (pois o crítico também o é...) e levo comigo na memória o meu vale mecum, a minha liberdade! As andanças que realizei na Sorbonne, afinal, valeram para alguma coisa, pois a crítica teatral está precisando de liberdade, e os franceses sabem muito bem o significado dessa palavra...)

    Mas continuemos (entusiasmei-me falando sobre liberdade..., e Anderson Cunha nos dá uma lição sobre o assunto!).  No texto do poeta/dramaturgo encontram-se miríades de detalhes, observações e depoimentos... do autor, através de seus personagens - alguns poéticos, outros irônicos. Mas sempre sábios. Em seu texto aparecem vários tipos de seres humanos, desde o traficante que vende olhares luminosos... até o gênio invisível. Sobre essa condição de ser invisível (o homem de rua), Anderson tem um texto maravilhoso. Há Bóson, o Ser incompreendido, e o pastor autoritário (e inovador),  afinal, duas poções de uma mesma identidade! MC, o cantor infeliz. E  muitos outros personagens, alguns “esboçados”,  pois nem sempre presentes – sua voz em off – mas sempre nos fazendo pensar. E pensei, naquele momento, pois não sabia!  “Quem será o autor?”. (Gosto disso, de ser surpreendida). E nosso “complexo de vira-latas” veio a tona e me fez pensar que talvez se tratasse de algum autor estrangeiro, talvez um dramaturgo francês de vanguarda? Os autores brasileiros encenam tantos autores estrangeiros...

    (Vamos à crítica!)

     Claro, aquele olhar bondoso referido acima, a respeito de Anderson Cunha, tem uma explicação: trata-se de um poeta! E ele nos conquista definitivamente quando o  “louquinho de cima de  árvore”, casa escolhida por ele, com medo das enchentes. Bóson é seu nome - se revela um poeta em sua maneira de ver o mundo. Sua visão é coroada pela descrição de um pássaro! Que momento lindo! Um poeta descrevendo a conformação de uma ave, seu porte, seu canto! O “quero-quero”,  com aquele grito  valente, independente!  E a descrição do poeta: “seus pés parecem estar vestindo saltos altos" – e um sapato vermelho! O topete do quero-quero, tão radiosamente construído (ele descreve os tons com que a cabeça do pássaro foi pintado, do topete até o bico), reflete a sua personalidade. Só ouvindo Bóson, o poeta (que leu Shakespeare inteiro quando tinha quatro anos!).

     Que fim levou esse poeta? E, também, que fim levaram o cantor MC, ou o Pastor, que está procurando o “homem adjetivo”?!  Ou Rico Star, o traficante de beira de rua, vendendo objetos usados, na calçada do bairro da Gloria daí o título da peça:  “O Rei da Gloria”. Os moradores de rua – todos  reis!? 

     Mas continuemos.  Temos um grande dramaturgo entre nós! Lembram da historia da virgem grávida que se transformou em comoção da cidade? E Rebeca, a apaixonada que se transforma em pesadelo para o cineasta que registra os moradores e os acontecimentos do bairro?
     Anderson se transforma sutilmente nestes vários personagens. Há vozes femininas em off. Nada contra as mulheres, mas sim contra a má interpretação dada à mulher, na nossa sociedade. Ah! Essa mania que as mulheres têm de fazer, do amor, o ar que elas respiram! E o cineasta chamou de Rebeca, a sinestésica (em poucas palavras, a que transforma, desfigura, a emoção ...)  e conseguiu se ver livre dela!

     Todos os personagens possuem uma “amarração” final – o que não deixa de ser um desafio para o autor. Mas não vamos nos preocupar se MC se suicida, ou se Bóson é reconhecido, ou não (parece que lhe dão um choque elétrico, irreparável, como estes que dão nos seres ultrassensíveis... os loucos!). Vários destinos são explicados, no final. Pode ser modificado - ou não – o final. Tal decisão compete ao autor. Na verdade, o público fica impressionado com a perfeição entre ator e espetáculo. NÃO PERCAM!  




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